O pixuleco inflável e Lula. Ou: totem e tabu, por L. Pedrozo e W. Nozaki

O pixuleco inflável e Lula. Ou: totem e tabu

Leticia Pedrozo e William Nozaki

Totens 

Nos últimos dias vimos a repercussão desenfreada nos noticiários, nas conversas de esquina, nas redes sociais, de um curioso caso: a morte e a vida de um boneco inflável, o enche e o murcha de um imenso balão de ar representando Lula. No ponto de partida uma passeata de oposição ostentando o superlativo bonecão de posto logo esfaqueado pelos partidários de Lula e do lulismo; na linha de chegada uma ressurreição do Pixuleco vítima de atentado com direito a uma patética escolta da polícia militar e cercado por gradis de proteção; entre uma ponta e outra partidários da situação e da oposição esbravejando: “infla!”, “desinfla!”, em um debate inflamado (ou seria melhor dizer mesmo inflado?).

Há pouco mais de um mês um atentado com uma bomba caseira no Instituto Lula causou menos comoção nacional do que o golpe com um estilete escolar desferido contra o tal boneco inflável. Ao que tudo indica a preocupação com a integridade física de Lula é menor do que a preocupação com a integridade plástica do seu boneco. Estaríamos diante de um caso em que a representação simbólica tornou-se maior do que a própria figura representada?

Ingênuos aqueles que se referem a mitos e alegorias como meros retratos da realidade. Desde a Grécia os mitos fotografam a realidade com a peculiaridade desafiadora de manter o espectro simbólico que cabe em uma cena, um fato ou um acontecimento que seja incômodo, o mito de algum modo faz surgir o desejo de ser fixado, narrado, relembrado ao longo da história.

A tônica das manchetes que noticiaram o caso promoviam a “humanização” do boneco que foi “esfaqueado” e não rasgado; “atentado” e não furado; “assassinado” e não murchado. Aliás, o próprio boneco, a despeito da roupa desabonadora de detento, guarda feições bonachonas de um Lula tristonho, mas afetuoso. O efeito provocado, paradoxalmente, pode ser comparado àquele do gigante boneco do filme Ghostbusters, o que era para ser um fantasma assustador tomando as ruas da cidade converte-se em um mimo gigante e fofo que desperta risos. A propósito, não seria o próprio Lula dotado daquela imaterialidade de que só os fantasmas e mitos desfrutam?

É inegável a comoção em torno do boneco que apesar de fazer referencia ao Lula vai além desta figura pública. A cara estampada de Lula neste totem bonachão, que tem até agenda marcada pra desfilar pelo Brasil feito uma turnê, além de representar a figura tão criticada e estampada nas capas de revistas e jornais como sinônimo da corrupção abarca também toda a relação de ambivalência em torno de um líder: ser simultaneamente amado e odiado.

O totem nas sociedades primitivas compunha justamente o retrato desta ambiguidade, o líder primordial era odiado e o líder morto passava a ser amado.

O mito do parricídio resgatado como alegoria é uma tentativa de encontrar um lugar do sujeito na lei. A ficção não é em essência uma enganação, mas é precisamente aquilo que nos permite não negligenciar o simbólico. Há atualmente um objeto simbólico andando pelas ruas de São Paulo, e do Brasil, que foi assassinado, que foi ressuscitado, que foi defendido e defenestrado.

Tabus

O ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, ao analisar o governo Lula, chama a atenção para aquilo que classifica como uma espécie de não-reconhecimento pleno das conquistas desse período, tudo se passa como se uma parcela da sociedade não conseguisse admitir que deve parte da sua melhora de vida, e da sua própria existência, às políticas do lulismo. A ampliação dos mercados de trabalho e de consumo beneficiou o conjunto da sociedade brasileira, de trabalhadores a banqueiros. Se, por um lado, a redução da pobreza e a melhora na distribuição de renda criaram novos desejos de ascensão e novas demandas de políticas, por outro lado, quebraram o monopólio das elites e das classes médias no acesso ao mercado simbólico de distinções e privilégios. A concertação social lulista deu vida ao “corpo do pobre” que passou a existir em lugares antes por eles inabitáveis: filas de caixas eletrônicos, corredores de aeroportos, lojas de shoppings centers etc. Ao fazer ombrear lado a lado subalternos e classes médias Lula despertou nessa última o desejo da sua própria eliminação.

Mas o problema é mais profundo e não se encerra nessa dicotomia, ou polarização, entre pobres e ricos. O projeto socioeconômico lulista padeceu de pelo menos duas lacunas:
(i) Ao optar pelo reformismo soft se abriu mão de enfrentar a tempo, por exemplo, questões estruturais como a mudança do sistema tributário regressivo que beneficia as elites em detrimento dos trabalhadores e a transformação do sistema político que privilegia o poder econômico em detrimento do voto popular.

(ii) Ao priorizar estritamente a dimensão econômica do projeto de desenvolvimento se abriu mão de realizar uma disputa simbólica, de hegemonia, e, ao invés de realizar uma reforma das comunicações ou uma potencialização da política de cultura se preferiu renomear os trabalhadores de “nova classe média” terceirizando a disputa de opinião para a grande imprensa e para o discurso de mercado, daí o surgimento de certa onda conservadora e o avanço de certo discurso meritocrático.

O contato desses dois fios desencapados só poderia mesmo gerar um curto-circuito. No momento do esgotamento do ciclo econômico, marcado ainda pela instabilidade política e por escândalos de corrupção, uma parte da base social do governo tem optado por desembarcar desse projeto. De alguma maneira os limites do governo Dilma são expressão do limite do lulismo, a baixa aprovação do governo e a baixa popularidade da presidenta talvez sejam sintoma de um desejo inculcado de esquecimento do lulismo. Em resumo, assim como parte da classe média gostaria de eliminar Lula parte das camadas populares gostaria de se esquecer do lulismo.

No entanto, é importante ressaltar: denegrir a imagem do ex-presidente Lula é ainda o manter vivo,  negligenciar suas políticas e o avanço que desencadeou para o país é assassiná-lo simbolicamente,  construir um boneco com o nome dele não é outra coisa senão transformá-lo em um totem que carrega essa ambivalência. Disso decorre uma contradição: o esgotamento do projeto lulista caminha de par com a reafirmação do poder de Lula. 

Paradoxalmente, não há luta por esquecimento que não seja imediatamente demanda por rememoração. Interpretar o atual cenário sem levar em consideração esta condição simbólica é o mesmo que interpretar mitos ao pé da letra. Assim é que ao se anunciar o fim de Lula é dele que não se para de falar, noutras palavras: ao se desejar o fim de Lula é o seu poder que não cessa de ser inflado. 

Leticia Pedrozo é psicanalista e William Nozaki, economista.
 

William Nozaki

9 Comentários

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  1. Os oposicionistas não se

    Os oposicionistas não se deram conta de que caracterizaram Lula como um homem triste a sofrer por se sentir tão injustiçado.

    Ele seria não um corrupto, mas um preso político criminalizado pelo sucesso de suas próprias políticas para acabar com a fome, a miséria, a pobreza; para promover a educação, a saúde, a habitação popular, o saneamento, mesmo que ainda de pouca qualidade; para criar condições para melhor distribuir a renda; para atender reivindicações históricas de índios, quilombolas,negros mulheres, deficientes, lgbt’s, pescadores, empregadas domésticas, etc; para suprir o país de sistemas de energia confiáveis; para transpor e suprir água para resolver o problema secular da seca no Nordeste, etc. É uma lista interminável de ações visando solucionar os diversos problemas do país na área econômica, na área social, na área ambiental, na área energética, na área trabalhista, na área dos direitos humanos, na área da política externa, etc.

    Lula, Dilma e o PT não podem ser perdoados por tanto sucesso.

    Os políticos e as oposições os odeiam, porque sabem que jamais farão um governo tão exitoso quanto os do PT..

    Os ricos os odeiam, pois não querem admitir que tenham ganho tanto dinheiro em seus governos.

    Os funcionários públicos os odeiam, porque acham pouco os ganhos reais superlativos que obtiveram em seus governos, desde proventos, planos de carreira, benefícios, etc.

    Os militares os odeiam, porque foram destinados recursos para modernizar e reequipar as FFAA, oferecendo-lhes, concretamente, as condiçõs para defender a soberania nacional, libertando-os da dependência do imperialismo americano.

    A PF e o MP os odeiam pois sabem que as instituições foram modernizadas, reequipadas e tiveram as suas autonomias respeitadas em seus governos.

    As classes médias abastadas os odeiam pois viajavam ao exterior para gastar bilhões de dólares todos os anos e eram obrigadas a ouvir elogios aos governos petistas.

    As classes que ascenderam a pirâmide social (ou pelo menos parte delas) os odeiam pois não admitem que foram as políticas implementadas pelo petismo que lhes propiciaram melhorar um pouco de vida.

    As multinacionais do petróleo os odeiam pois foi-lhes tirada a possibilidade de apoderarem-se do petróleo do pré-sal.

    E por aí vai se disseminando o ódio.

    E tudo isto num ambiente de mais ampla democracia, do mais rigoroso republicanismo, do maior respeito pela liberdade de expressão e de imprensa.

    É tanto ódio que Lula, Dilma e o PT podem acabar em algumas fogueiras como aquelas da klu klux klan.

    Por issto, companheiros, durmam de sapatos e com uma 45 na mesinha de cabeceira.

    Lembrem-se do que fizeram com Tiradentes, Prestes, Gregório Bezerra, Jango, Juscelino, Rubens Paiva, Vlado Herzog, Manuel Filho, Honestino Guimarães e milhares de outros.

    1. O ódio e as Heranças

      É muita errância em torno do ódio.

      A cortina de fumaça da disseminação do ódio não é perene.

      A percepção das campanhas de ódio não são triunfantes a esse ponto. Elas precisam ser recicladas a cada dia em torno de novos balões, infláveis como o simulacro do Lula. Bocó do perfurador, que não entendeu que a campanha é furada, e que o horizonte do processo denuncista pode ser esclarecedor. O descrédito ronda a mídia; vide o caso Temer, balão de ontem, esgarçado hoje.

      O 45 na mesinha de cabeceira seria determinante se estivéssemos em um enredo hollywoodiano dirigido pelo John Huson, ou pelo Mel Gibson. Esse é o cenário da fantasia do bolsonarismo. 

  2. quem tem medo do Lula?

    soh faltou! Falar de medo ou outras assim!

    Como de outros e o caso do Dirceu tambem. Acredito que sobre o Dirceu tem muito mais do que o de Lula!

    exatamente! 

    “Assim é que ao se anunciar o fim de Lula é dele que não se para de falar, noutras palavras: ao se desejar o fim de Lula é o seu poder que não cessa de ser inflado. “

    Ufa!!!

     

  3. A análise do Reich sobre o

    A análise do Reich sobre o fascismo é mais apropriada, ainda que distante muitas décadas.

    A frustração dos desejos de consumo conspícuo e de pretensão social tem uma influência na formação da mentalidade reacionária que está sendo negligenciada (assim como a análise de Reich sobre a estrutura familiar patriacal autoritária, ainda no início da década de 30, o foi).

    Diferentemente da sociedade alemã da época de Hitler os fascistas que saem às ruas com camisa da CBF nao estão dspostos a se submeterem a uma ordem autoritária, somente. Querem ser o próprio líder no combate ao “petista eterno”, único elemento a aglutinar a miríade de visões perturbadas da conjuntura. Não buscam o “assassinato ritual”, mas a humilhação profunda, unico meio de purgarem a própria angústia. Na Alemanha foi o Hitler quem apontou os judeus e comunistas como bode expiatório. Aqui o bode expiatório já foi apontado e marcado, mas a liderança para encarnar o papel de algoz número 1 não foi construída.

    Lula conseguiu um “poste” para sucedê-lo. A direita reacionária ainda não encontrou o seu para encarnar o discurso que é publicado nos meios de comunicação.

    Aécio tentou (e continua tentando), mas soou falso; sua história pregressa não se ajusta ao papel.

    Bolsonaro é reconhecido como um estúpido por quase todos os setores, inclusive na Direita.

    Joaquim Barbosa ninguém sabe o que pensa sobre coisa alguma, inclusive já criticou os meios de comunicação chamando-os de “de direita”. Pegou mal pra ele nos círculos reacionários.

    José Serra só voltará a ser levado a sério se cumprir a missão que lhe foi designada: entregar o presal.

    Alckmin é o mais viável dentre esses da oposição. Conhece bem o bloco reacionário e é bem conhecido por eles; cumpre as missões que lhes são designadas e é bastante obediente e previsível. Já deu muitas e muitas provas de lealdade, inclusive quando fingiu civilidade com Dilma abrindo espaço para Aécio (que vem fracassando até agora, causando impaciência e, inclusive, racha no golpismo).

    O fato é que a direita ainda não decidiu se começa a procurar um nome novo ou insiste nesses já batidos. Aqui no Rio, por exemplo, o RJTV está em campanha aberta do Eduardo Paes e do seu sucessor nas eleições já no ano que vem. Porém ainda não encotraram o tom certo do discurso e da interpretação. Embora ele, Paes, tenha tido um passado antipetista muito forte sua passagem à frente da administração municipal aconteceu em aliança com o PT. Isso com certeza dá engulhos no bloco reacionário; e se expressa no esforço desajeitado de ocultar que esse montão de obras viárias e olímpicas são feitas em parceria com o governo federal.

  4. Caixas de Pandoras

    O artigo a quatro mãos deixa as pistas de cada mão em sua composição.

    No entanto, a costura dos sentido inserido por cada uma mãos, não aponta para um mesmo horizonte.

    A costura das duas análises careceu do reconhecimento do Tabu que foi posto à prova: o tabu da sociedade dos desiguais, que carregamos desde a colônia, dos incompetentes que dependem das diretrizes da metrópole para se erigirem enquanto corpo totêmico (o velho vira-latas rodrigueano, o jeca-tatu lobatiano, o mulato malemolengo do Sílvio Romero). O corpo totêmico desabado pelo lulismo é o do Deus-Objeto oferecido às ordas consumidoras pelos oráculos midiáticos através do marketing de out-doors e clips televisivos, para deleite das massas, que eles julgam ignaras.

    O Totem importado, modelo arriado, profanado pela presença dos que não se adequam à mitologia estabelecida, se debate, atribuindo aos recém chegados aos templos do consumo a imagem com que se olhavam nesse espelho narcísico: a ‘nova classe média’, como que, se oferecendo aos neófitos a possibilidade de serem agregados ao campo da representação dos distintos. A metáfora atrás da qual o perfil da elite se esconde: ‘classes médias’, para um país sem elites (a figura paterna castradora escondida por detrás dos que pretendem se associar à sua mítica).

    Nossa Direita, crédula do monopólio de suas Luzes, não se dá conta das impermeabilidades que os diversos lugares sociais oferecem ao discernimento.

    Não é o Lula o Totem. O Lula está mais para o herói trágico que usa as armas totêmicas para limitar seus poderes totêmocos,  tentar para destrui-los, e que paga seu preço pela ousadia.

    O herói trágico que paga pelos trabalhos que não realizou, para poder ser entronizado no campo das divindades constituidas. E aí a análise política peca, por não dar conta de que, os trabalhos não realizados (reforma política, reforma tributária, lei dos médios) não o foram por uma opção, mas por uma impossibilidade que morava no Congresso Nacional, onde o conservadorismo de parte da base parlamentar que sustentava o governo não permitiria a aprovação de tais mudanças.

    O que falta responder, é a questão que a teoria do caos nos aponta: a reversibilidade imaginada pelas legióes de coxinhas em busca da ressurreição dos mitos derreados seria factível? O regressismo à moda Cunha, tentando reverter práticas sociais consolidadas tem seu preço no imaginário social. 

    Que se abram as Caixas de Pandora!

  5. L U L A estará recebendo

    L U L A estará recebendo nesses dias mais dois títulos ” doutor honoris causa” de duas universidades argentinas de duas universidades argentinas. Seria o seu décimo primeiro título. Maravilha!

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