por Rogério de Moraes
Quando ouvimos “queijo”, virá à nossa mente uma peça cilíndrica romba de cor esbranquiçada, com diâmetro maior que a altura. É a experiência direta com o objeto físico. Poderá chamar-se cheese (para os povos de língua inglesa) ou queso (para os povos de língua espanhola). Não importa: com a apresentação da palavra, todos se remeterão à imagem do objeto descrito.
Mais ainda: a expansão deste conceito, propiciada pela experiência com o mundo, fará com que se reconheça o “queijo” como uma peça que pode ter também o formato de uma cunha, com coloração que poderá variar do branco ao marrom, assumindo ainda cores inusitadas como o verde ou o negro. Ele poderá estar pintado de vermelho, apresentar-se ralado ou aos pedaços e ainda assim será reconhecido como “queijo”.
Quando, no entanto, esta experiência com o mundo se aprofunda e se complexa, ao significado “queijo” se somam conceitos e vivências relacionadas com o sabor, cheiro, processos variados de fabricação e manuseio, variedades, lembranças de infância, piadas, preços, gôndolas de supermercados, carroceiros vendendo-os, a mãe aprontando o café da manhã…
À ideia do objeto físico, portanto, se associam significâncias várias, as quais superam o simples significado da palavra “queijo”.
A capacidade humana de recolher informações da natureza, apreender e definir seus significados e atribuir-lhes significância, organizar mentalmente estes dados de forma adequada e expressar como linguagem a síntese mental desta observação é a culminância da herança humana. A isto se atribui nosso sucesso como espécie.
Você sai para o trabalho, observa o céu e vê as nuvens adensadas e escuras, o modo como a temperatura caiu, o vento balançando as árvores, sente o aumento da umidade do ar e expressa com clareza: – Vai haver uma tempestade!
O linguista Joaquim Matoso Câmara Júnior ensina que
“cria-se na linguagem um “mundo” ou “cosmos”, embora não necessariamente coincidente com a intepretação racional ou lógica. Os homens passam a compreender o espaço vital de certa maneira, e, partindo da compreensão comum, concretizada na língua, podem-no fazer assunto de comunicação entre si”.
Segundo este mesmo autor, a exteriorização de estados psíquicos, no entanto, pode ser observada nos animais. O modo como o cão late revela com clareza a alegria, a raiva, a dor física ou o desespero e na língua portuguesa existem verbos específicos que caracterizam estes estados: latir, ladrar, ganir ou uivar.
Isto, por si só, não seria o suficiente para caracterizar a expressão animal como linguagem pois
“o grito doloroso do cão, por exemplo, não se equipara a uma nossa frase exclamativa – ai que dor! Nesta, a exteriorização psíquica se processa na base de duas representações mentais, aí articuladas: o conceito da “dor” ou sensação dolorosa, tratado convencionalmente até como um ser, e o conceito da “intensidade” das nossas sensações, formulada no elemento “que””.
É deste modo que, mesmo quando emitimos, semelhante aos sons inarticulados dos animais, gritos como manifestação de raiva, dor ou desespero, estamos utilizando uma forma “superior” de comunicação em relação a eles, pois estes sons
“apresentam uma significação mais ou menos permanente e são passiveis de se dividirem em elementos sônicos definidos: são as ONOMATOPEIAS e INTERJEIÇÕES, que assim constituem um setor de transição para a linguagem representativa elaborada.”
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Quando ainda estudava em …………….., lembro-me de ter sido abordado na rua por uma vizinha com seu filho pequeno ao colo, o qual estava resfriado, e apresentava-me a seguinte preocupação:
– Ele está com um caroço no pescoço, em cima da veia artéria! Será que não é perigoso?
Esta foi a primeira, mas não a última vez, que ouvi frase parecida. Minha primeira reação teria sido a de rir, pois imaginei-me falando-a para um de meus professores e a consequente espinafração que receberia. No entanto, educadamente contive-me e entabulei uma conversação que a acalmasse.
De fato, veia e artéria são conceitos estanques entre si. Possuem significação permanente distintas sob o ponto de vista estrutural e funcional.
Porém, este tropeço no modo de codificação de nossa comunicação não foi suficiente para impedir que eu a compreendesse.
Caroço = gânglio linfático infartado
Veia artéria = Veia Jugular
Na verdade a criança apresentava uma inflamação das vias aéreas superiores (IVAS), causada por uma virose, com a consequente inflamação do sistema linfático adjacente. PONTO!
Do mesmo modo que ela disse “caroço” e “veia artéria”, poderia ter dito em grego, inglês ou russo. O significado seria o mesmo pois, assim que ela me indicou, compreendi exatamente o que queria dizer.
A significância envolvendo estas coisas, porém, eram completamente distintas, ainda que pudessem ter alguns pontos de congruência. Os conhecimentos sobre dados de saúde pública, sobre os possíveis agentes causais, a fisiopatogenia, fisiopatologia, sinais e sintomas clínicos, exames subsidiários, evolução, complicações e tratamento foram obtidos e elaborados por processos diferentes.
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Mas, pensando bem, não é assim que se estabelecem TODAS as relações onde um leigo procura a orientação de um profissional, qualquer que seja ele? O primeiro tenta apresentar seu problema utilizando de significados permanentes do modo o mais preciso possível, dentro de seu mundo e realidade, e o segundo reinterpreta estes significados e lhes atribui as significâncias que lhe são afins. Então o profissional dará seu conselho. Se o consulente não entendeu, tenta-se novamente e de novo, até que a comunicação seja eficiente.
Em um caso extremo, mesmo que um paciente grite, vocifere, urre e xingue, não estará ele também exteriorizando seu estado mental com clareza, ainda que de modo pouco elaborado?
Por que então rir ou debochar?
Simples: se um colega utilizar-se de significados não formais na frente de um professor que vai esculachá-lo por conta disto, você, um observador, vai solidarizar-se com quem?
Dependendo da resposta, podemos prever se você é um bom profissional ou não.
Qualquer outra consideração fica ou pra um outro momento ou pra você que teve a paciência de ler até aqui!
Abraços generalizados!
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Texto magistral! Li de uma
Texto magistral! Li de uma assentada, como que fisgado pela argumentação, mas mais ainda pelo humanismo implícito!parabéns ao autor!
A prinicpal postura de um
A prinicpal postura de um profissional na semiologia médica é primeiramente, #ForaTemer, e a empatia.
Pessoas letradas e supostamente bem formadas
invariavelmente se atrapalham com as palavras. É típico do ser humano. Bobagem nossa, ser humano, usar contra o semelhante.