Izaias Almada
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
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Somos milhões de Cunhas, por Izaías Almada

 

do Blog da Boitempo

Somos milhões de Cunhas, por Izaías Almada

Penso que há bons anos não via uma frase sintetizar tão bem o estágio político e civilizacional de boa parte da sociedade brasileira. A faixa estendida durante uma das últimas manifestações contra o governo, mirando alvo esquerdista – mais especificamente os governos do ex-presidente Lula, da atual presidente e o Partido dos Trabalhadores – foi de uma precisão mais que cirúrgica, e porque não dizer profética, sobre as entranhas de um país que, desde a sua colonização, continua a se revelar perverso, covarde e hipócrita. Atirou no que viu e acertou no que não viu. A cordialidade brasileira é um mito para inglês ver.

E não adianta alguém dizer que estou generalizando, que é um exagero, porque é exatamente isto o que estou fazendo: generalizando. Chega de bom mocismo, hipocrisia e do jogo do faz de conta. O vandalismo e as frases excretadas em folhetos atirados no funeral de ex-presidente da Petrobrás José Eduardo Dutra há poucos dias não me deixam mentir.

Saímos das margens da ditadura de fato para nadarmos até a outra margem, a da democracia consentida, feita de uma justiça mais do que cega e de discursos ocos de justiça social. De análises feitas em cima da perna e de uma inacreditável esperança de “união do país” pela democracia, dos lugares comuns como “o Brasil é maior que a crise que enfrenta” e coisas do gênero.

Somos uma mistura de cidadãos como o “Marrudo” e um pouco como o Ernesto, fiscal da prefeitura. Querem ver?

01 – Marrudo, cujo nome verdadeiro ninguém sabia ao certo, era exímio caranguejeiro. Tão exímio que, na sua última proeza, conseguiu esconder numa velha garagem da zona norte da cidade um Nissan Sentra, ano 2014, sem que os vizinhos dessem por isso. Esperou três meses para tirar o carro da garagem, tendo tomado o cuidado de trocar-lhe as placas. Por experiência própria e até por discretos contatos em delegacias de bairros sabia ser três meses o tempo mais do que suficiente para o dono do veículo surrupiado receber o dinheiro do seguro.

No dia de estrear o novo carrão, Marrudo acordou cedo, engoliu o café às pressas e foi até a papelaria comprar o adesivo especial que escolhera para colocar no vidro traseiro do carro. Aí pelas dez e meia da matina, com o coração palpitando, ligou a máquina, abriu a porta da garagem com cuidado e saiu sem muito estardalhaço de casa. No vidro de trás o adesivo vistoso refletia a confiança e a fé de seu novo dono: PRESENTE DE DEUS.

02 – Tão logo se aposentou, o “seu” Napoleão, com a ajuda da mulher Diná, montou a sonhada lojinha de doces e salgados para os lados de Vila Formosa, onde a máquina de fazer café, novinha em folha, era o orgulho dos donos. Inaugurada a lojinha, a freguesia foi aparecendo, inclusive o fiscal da prefeitura, de nome Ernesto, há trinta anos como fiscal, servindo a vários partidos de diferentes prefeitos. Passou para ver “se estava tudo em ordem”. E estava.

Para não perder a viagem, o tal Ernesto, pediu uma “contribuição” para a inspeção feita, no que foi logo contestado pelo dono. Com jeito o fiscal encontrou logo a maneira delicada de dizer que, se não recebesse a contribuição, viria alguém para aplicar uma multa ao estabelecimento. “Nós, os fiscais, somos uma família há muitos anos e dessa o senhor não escapa”, sentenciou. E saiu porta afora. Dona Diná, que ouvira a conversa, sentou-se ao lado do marido e desabafou: “é isso aí, só podia ser com um prefeito do PT… Tudo ladrão”.

Perceberam, não, irmãos? Que tal orar num templo de seiscentos milhões de reais, ou até em outro mais simples, bater no peito e levantar as mãos para os céus? Apontar o dedo para a corrupção alheia e fazer aquela carinha “de não tenho nada a ver com isso”. Ou de “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Como alguns milhões de outros brasileiros que se têm na conta de bem informados, Marrudo, “seu” Napoleão e dona Diná, adoram a novela das oito e o Jornal Nacional. O Faustão, o Fantástico, o BBB… Mas vamos adiante.

Marta e Cunha

03 – A senadora Marta Suplicy, descontente com o rumo tomado pelo Partido dos Trabalhadores ingressa no PMDB e em solenidade no Congresso, ao lado dos presidentes das duas casas legislativas, ambos do PMDB, afirma que irá combater firmemente a corrupção no país. Nada como a coerência, a abnegação e a convicção ideológica da maioria dos nossos representantes no Congresso Nacional. No caso, a luta de classes um dia acabaria vindo à tona.

04 – Jurandir, que graças ao hábito de só ir para a cama por volta das três da madruga depois de umas latinhas de cerveja, ganhara o carinhoso apelido de “vigilante noturno”.

Considerava Fernandão seu melhor amigo, desde que este lhe proporcionara ir trabalhar como free-lance numa produtora de filmes publicitários. Fernandão era um entre vários produtores da Cosmopolitan Filmes e Vídeos Ltda., encarregado, entre outras tarefas, de conseguir locais para filmagens e contratação de modelos. Várias vezes fora aconselhado a abrir sua própria firma para dar notas fiscais de seus cachês. Teimoso, Jurandir disse que comprava suas notas e não queria complicações com contadores. Resolvia tudo o mais rápido possível. Como muitos à sua volta o Fernandão gostava de dizer: “pagar imposto para que? Não ganho nada com isso e os políticos é que metem a mão na grana…”.

A senhora Marta Suplicy, veterana política e sexóloga paulista, e o Fernandão sabem onde metem os bedelhos, com certeza. Sempre ao lado do bem, a senadora não iria trocar de partido se não soubesse que a troca continuaria a lhe granjear louvores pelos seus esforços contra a corrupção, os chamados desvios do seu antigo partido. Afinal, nem todo dinheiro enviado para a Suíça poderá ser considerado um dinheiro “sujo”.

Sob “certos aspectos”, grande parte da elite econômica brasileira já introjetou na sociedade, através de seus principais porta-vozes na imprensa, e isso desde o final do império pelo menos, que existe uma “corrupção do bem” e uma “corrupção do mal”. E, portanto, transferir conceitos para frases como “bandido bom é bandido morto” para “petista bom é petista morto” é apenas uma questão de tempo e loquacidade. Impressiona, sobremaneira, o silêncio do Ministério da Justiça.

Natural que se construísse também no país uma “justiça para o bem” e outra “justiça para o mal”. Justiça para o bem é aquela que solta ‘habeas corpus’ em 48 horas para meliantes de gravata Hermés, que deixa nas gavetas do judiciário alguns processos que irão prescrever num prazo previsto e favorecerão construtores de aeroportos em causa própria, mas com dinheiro público. Justiça que partidariza a própria justiça e, nos últimos anos, transformou o STF num anfiteatro de peças e shows, alguns deles impróprios a menores de idade, deixando de lado a discrição com a qual devem se comportar os mais altos magistrados da nação. Já não tão altos assim, é verdade… Justiça para o bem é essa que tem a qualidade moral do governador de São Paulo que torna secretos por 25 anos os documentos do ‘metrolão’ paulista. Documentos secretos de uma obra pública? Estranho, não?

Justiça para o mal é aquela que vê – além de negros, pobres, nordestinos e algumas minorias – comunistas e petistas para todos os lados. Ou bolivarianos, como gostam de dizer alguns que não entendem nada de bolivarianismo. Justiça para o mal é aquela que permite a um delegado da PF (não confundir com Prato Feito) abrir processo contra uma faxineira que comeu um de seus bombons sem autorização. É aquela justiça que prende petistas por “ouvir dizer”, julga-os e os condena mesmo sem provas, mas não investiga bandidos com contas secretas na Suíça, por exemplo.  Ou o Banestado, ou Furnas, ou a Privataria, ou, ou, ou… Que não vê nada de mais em juízes relatarem e julgarem processos em que têm interesses pessoais em jogo.

E assim caminha o Brasil nesse já quase final do ano de 2015. Entre a irresponsabilidade política da direita, esse ajuntamento de intolerantes que resolveu achincalhar com a constituição do país em nome de uma democracia que ninguém sabe qual é, e a inabilidade da esquerda, até o momento, para enfrentar essa intolerância e os desatinos que se cometem diariamente. Desatinos de um moralismo que nada mais faz do que tentar esconder os dejetos mal cheirosos da desigualdade social que já dura entre nós há mais de quinhentos anos.

É verdade: somos milhões de Cunhas. Pena que a maioria de nós não tenha contas na Suíça ou outros paraísos fiscais, não é mesmo?

marta cunha renan

***

Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mimO medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

14 Comentários

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  1. hipocrisia de alto nível

    Izaias,

    Mais que perfeito.

    Este é o texto que eu gostaria de ter escrito, mas não tive capacidade suficiente para fazê-lo. Sintetiza em poucas linhas a incrível zorra que está acontecendo na cabeça de milhões de brasileiros, de praticamente todos os que aprendem diariamente com Bonner a respeito da vida nacional.

    E não estou me referindo ao tal do zé povinho, que naturalmente tem mais dificuldade para analisar assunto como pedalada fiscal, mas à turma do andar de cima, cada vez mais hipócrita e que recusa terminantemente o contraditório, a turma que defende os justiceiros de Copacabana, pois pretos e pobres não podem ir à praia, será que nazismo define corretamente o estado de espírito desta cambada ?

    A propósito, desde Cesar Maia que arrastão só acontece na praia do Arpoador, se prolongando até as duas primeiras  quadras de Ipanema. Exclusividade esquisita, muito esquisita.

    O argumento cretino de estação do metrô se desfaz naturalmente, pois Copacabana tem estação de metrô há mais de 15 anos e nunca teve nenhum arrastão por lá. Bastam dois neurônios para se compreender como este negócio de arrastão sempre funcionou, mas reconheço que em algum momento o desenho safado, bastante safado possa vir a ser alterado.

    1. Bravo!

      Bravo, Alfredo.

      Bravo, Izaías.

      Muitos de nós estamos angustiados com tudo isso que está acontecendo no Brasil, essa guinada à direita dos nossos parlamentos, a recaída conservadora nos usos e costumes, a violência fascista dos “indignados” on-line e dos revoltadinhos de shopping. 

      Mas mais que indignados nós estamos com medo. A nossa voz não é mais ouvida nas ruas porque não abrimos a boca – por medo. Há poucos anos eram os direitistas que tinham receio de falar, sentiam-se esmagados pela “onda vermelha” que varria então a América Latina. Andavam assustados, sem reação.

      Saíram do armário ano passado, durante a campanha presidencial. Talvez antes até, nas chamadas “jornadas de junho de 2013”. Ali, quem sabe, sentiram a esquerda “piscar” e sacaram que era chegado o momento de meterem os pés na porta da democracia e colocar pra fora todo o seu egoísmo, todo o seu preconceito, toda a sua revolta contra o pouco, muito pouco, que foi feito nos últimos anos em favor dos despossuídos de sempre.

      Hoje somos nós que silenciamos, medrosamente.

      Apenas sussurramos. E entre nós.

  2. Justiça do bem é também

    Justiça do bem é também aquela que manda o Fanton colocar escuta na cela do Yussef e quando foi descoberto processa o Fanton e seu companheiro, os remove para o interior, etc. Processa os “bem mandados” para não perder tudo que fez até agora. Mas, se sabia que é errado, por que mandou grampear? O cinismo manda lembranças. 

  3. Brilhantes as crônicas de

    Brilhantes as crônicas de Izaías Almada. Esta, têm alto valor literáro e jornalístico, em que pese o uso de alguns personagens fictícios.

  4. O que dói mais é ver o Brasil

    O que dói mais é ver o Brasil real estampado nos últimos tempos. E ver que com relação ao Brasil estive, tal qual Aureliano Babilonia, enfiada numa sala de miragens em toda a minha vida adulta. 

    A respeito do Brasil recomendo a leitura do livro Recordação do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. É minha leitura atual. Talvez se o tivesse lido mais cedo não me deixaria enganar por tanto tempo pela imprensa brasileira. E descoberta das descobertas, o jornal em que Isaías trabalha chama-se O Globo.

  5. Somos milhões de Cunhas, por Izaías Almada

    Izaias, moro em BH e sou mineira. Foi com grande constrangimento que vi a faixa “somos todos cunha” afixada nos portões do Palácio da Liberdade. É com grande constragimento que vejo os acontecimentos do nosso país refletidos em BH por pessoas absolutamente ignorantes.

  6. Milhões

    O artigo é um LIBELO contra a hipocrisia dominante, são pessoas que nas páginas sociais postam ou pregam o ódio, a itolerancia, o preconceito dizendo “Morra Dilma, vá se f….., Lula ladrão bom é Lula morto e, na página seguinte, postam mensagens, pedindo proteção à Deus, dizendo Nossa Senhora ilumine nossos lares e nos dê proteção” Hipocrisia pura. Seu artigo Izaías merece constar no anais da imprensahonesta brasileira, parabéns.

     

  7. Isso é o resultado do

    não enfrentamento ao PIG por parte do Lula e por ele ter bancado de republicano ao escolher errado os ministros do STF. A direita raivosa sempre escolheu seus amiguinhos para o STF.  

  8. Bravo Izaias!

    Quando estava na Faculdade de Comunicação, nos fizemos uma camiseta com os dizeres “Nos dominamos o mundo, nos dominamos você!”. A pretensão dos garotos de faculdade me lembram hoje ironicamente e amargamente o quanto, ao fim e ao cabo, éramos alienados e dominados pelo que nos supuséssemos fazer parte. 

  9. O texto seria perfeito se o

    O texto seria perfeito se o PT fossse esquerda… Só que não!!!

    Tio levy bradesco (com letra minúscula pois ele merece) agradece a briguinha direita x esquerda (enquanto ele imagina uma forma de entregar a previdência para os fundos de pensão internacionais ou então tirar o mala do Tombini do BACEN pra poder jogar a Selic em 20%).

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