Trabalho de mestrado desenvolve software para democracia participativa

Jornal GGN – As manifestações de junho demonstraram a falta de representatividade dos políticos eleitos. Em resposta, a dissertação de mestrado de Tiago Novaes Angelo usa matemática aplicada e cria um software que destaca os conceitos mais importantes da opinião coletiva.

Um software voltado para a democracia participativa

Por Carlos Orsi

Do Jornal da UNICAMP

Programa desenvolvido na FEEC reúne conceitos da matemática e da filosofia

Muitos analistas viram as manifestações que levaram milhares de brasileiros às ruas em junho de 2013 como sinal de uma crise de representatividade: parcela importante dos cidadãos não se sentiria mais devidamente representada pelos políticos eleitos. Medidas como reforma política e uma Assembleia Constituinte foram sugeridas para mitigar o problema, mas talvez a adoção de novas ferramentas tecnológicas também possa ajudar – ou, ao menos, é o que sugere a dissertação de mestrado “Extrator de Conhecimento Coletivo: uma ferramenta para Democracia Participativa”, defendida por Tiago Novaes Angelo na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp.

Juntando conceitos de uma área da matemática conhecida como Teoria dos Grafos, e da filosofia do pensador francês da cultura virtual Pierre Lévy, Angelo construiu um software para reunir, extrair e sintetizar o conhecimento a respeito de questões de política pública contido nas opiniões da população afetada por essas políticas.

O programa reúne textos curtos de opinião produzidos pela população consultada e os condensa na forma de grafos – um tipo de diagrama construído matematicamente, no caso a partir da frequência com que as palavras são usadas e das relações entre elas – onde os conceitos mais importantes da opinião coletiva emergem em destaque. 

“Quem sabe o que fazer, dentro de uma certa realidade, é quem vive naquela realidade”, disse o pesquisador. “Por isso, não é a mera opinião deles: é uma opinião contextualizada por quem vive aquela realidade. É um conhecimento que eu ou você não temos”.

Pedra no caminho

Grafos são diagramas formados por pontos, chamados de “nós” ou “vértices”, unidos por linhas, chamadas “arestas”. Esses diagramas podem ser usados para representar e estudar vários tipos de relação que podem ser interpretadas como redes de elementos individuais – por exemplo, o sistema Immersion, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) cria grafos a partir de uma lista de endereços de e-mail, onde cada nó representa um contato presente na lista, e as arestas mostram como esses contatos se comunicam entre si. 

Num grafo, o tamanho de cada nó pode refletir sua importância – no caso do Immersion, se aquele contato é um grande emissor ou receptor de mensagens – e as arestas podem receber pesos, refletindo a intensidade da conexão (ainda nesse exemplo, se os dois contatos se comunicam com frequência), ou mesmo direção, sendo então representadas como setas.

No sistema criado por Angelo, os nós são as palavras presentes nos textos opinativos redigidos pela população, e as arestas têm tanto peso quanto direção. “Imagine, por exemplo, que a população de um bairro é chamada a opinar sobre a educação das crianças dali”, disse ele. “Se um grande número de pessoas achar que a escola deve ser privatizada, digamos, as palavras ‘escola’ e ‘privatizar’ vão aparecer em destaque, e fortemente ligadas”.

Um teste para exemplificar o sistema, apresentado na dissertação, envolveu a análise do poema “No Meio do Caminho”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). O grafo resultante trouxe, em destaque, três palavras – “pedra”, “caminho” e “meio” – fortemente ligadas entre si, com pesos altos nas arestas que as conectam umas às outras.  

“Se eu tiver que pegar a frase que representa esse poema, seria esta aqui, que representa o pensamento maior: ‘no meio do caminho tinha uma pedra’”, disse o pesquisador. “E é interessante, veja: os nós, as palavras que de fato sobraram, são essas, e os pesos se concentram mesmo em pedra, meio, caminho. O programa mapeia o texto original, e me dá ‘no meio do caminho tinha uma pedra’ como ideia principal”.

Entre as dificuldades de implementação estão o problema dos sinônimos – se muitas palavras diferentes são usadas para dizer as mesmas coisas, a rede fica dispersa e é mais difícil extrair conhecimento dela – e das dificuldades ortográficas. Na versão testada na dissertação, houve um processo de correção ortográfica antes de os textos darem entrada no software.

Democracia

Angelo afirma que, mesmo destacando algumas palavras e descartando outras, o sistema ainda é capaz de preservar alguma informação referente ao contexto em que o texto original foi elaborado. “Aí entra um pouco da maravilha da rede complexa. Ela tem essa coisa, digamos assim meio mágica, chamada de métricas de rede complexa, que é você conseguir através de cálculos sobre a rede localizar onde a informação está concentrada sem perder o contexto”. Isso se dá graças aos pesos e ao direcionamento das arestas. “O software distingue entre ‘João matou Maria’ e ‘Maria matou João’”, exemplifica.

O pesquisador também faz uma distinção entre seu software e outros sistemas de inteligência artificial já em uso, como programas que geram textos jornalísticos a partir do input de dados brutos, como estatísticas e resultados esportivos: em 2011, a empresa Narrative Science ficou famosa quando um de seus robôs virtuais produziu uma notícia sobre o resultado de um jogo de beisebol considerada mais informativa que a escrita por um jornalista esportivo humano. 

“Se a gente produz algo assim, teríamos que ter um padrão, um relatório baseado nos dados de uma planilha. São eles que levam a um padrão de resposta”, disse ele. “A ideia aqui é não ter um padrão de resposta. O conhecimento vem do coletivo. Ele não vem de uma máquina, de um terceiro. É uma técnica de inteligência artificial, mas a inteligência não está na técnica em si, está nas pessoas que estão falando. A frase tem que vir mesmo das pessoas, não do programa”.

 “Como a gente trabalhou com democracia, é muito perigoso fazer um programa que fale pelas pessoas”, disse. “O programa vai tentar combinar as opiniões e fazer emergir o conhecimento coletivo. E não que o conhecimento seja construído por uma máquina. Queremos fugir um pouco da ideia de uma máquina que construa isso, porque foge da ideia de democracia que queremos – democracia vem do povo. O instrumento tem que ser um mediador, ele não tem que ter fins próprios, ele é um mediador entre o coletivo e a deliberação politica”.

Representação

A ideia do sistema, disse ele, não é substituir a democracia representativa, mas subsidiá-la com mecanismos de democracia participativa. “As pessoas escreveriam sobre alguma coisa e o programa geraria uma tabela de ideias, e essa tabela de ideias poderia servir de base para os representantes eleitos tomarem as decisões políticas”, exemplificou. “Eles podem usar o material gerado como motivo para fazer um plebiscito, transformar as ideias num projeto de lei e colocar para votação. Num mundo ideal, que as pessoas que tenham consciência sobre alguma coisa, digam alguma coisa, forme-se uma tábua de ideias e aquelas ideias cheguem aos representantes”.

Angelo reconhece que qualquer tentativa de levar o sistema para o mundo real terá de lidar com dois tipos de fraude, a tecnológica, pela violação do sistema em si, e a manipulação por lobbies – com grupos organizados combinando como farão suas apresentações ao sistema, garantindo que certas palavras e ideias tenham destaque especial.

“A fraude é uma questão de segurança, senhas, criptografia”, disse ele. “Uma possibilidade é experimentar algumas ferramentas, entre elas, o uso de assinatura virtual para poder submeter um relato ao sistema”.

Já a questão do lobby pode ser contornada, diz ele, com a universalização do sistema. “O lobby é tão mais eficiente quanto menos plural for a população”, pondera. “Como é hoje em dia? Hoje em dia a internet já atinge 50% das pessoas no Brasil. Os smartphones logo vão estar na mão de todo mundo. E a ideia é ter, de fato, a opinião de todo mundo. Por isso que a gente precisa de um sistema de computador”, explica. 

“Por que a democracia direta não dá certo atualmente? Ou não deu certo no século 18, quando as ideias de democracia ressurgiram? Porque não existia uma forma de ouvir 10 mil pessoas ao mesmo tempo. Aí formavam-se lobbies: um grupinho de cinco, vinte pessoas vinha e impunha a sua posição. Mas gente tem a esperança, é claro, de que num futuro muito próximo a internet atinja de fato todo mundo”, disse.

Futuro

O pesquisador trabalha numa ampliação do sistema para sua tese de doutorado. Ele procura formar uma equipe para pôr no ar um site de webdemocracia, onde o software possa ser testado online e em tempo real. “Esse programa vai receber relatos, e mostrar os resultados. E vamos montar equipes para trabalhar com módulos específicos, por exemplo, um módulo de sinônimos, que é uma coisa complexa de se fazer”. O site deve estar funcionando no início do ano que vem.

Publicação

Dissertação: “Extrator de Conhecimento Coletivo: uma ferramenta para Democracia Participativa”
Autor: Tiago Novaes Angelo
Orientador: Ricardo Ribeiro Gudwin
Coorientador: Cesar José Bonjuani Pagan
Unidade: Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC)

 

Redação

2 Comentários

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  1. DEMOCRACIA DIRETA É O CÚMULO DA RACIONALIDADE!

    Na democracia representativa, os políticos não dão atenção aos nossos especialistas em cada área do conhecimento. Preocupam-se apenas em que será mais vantajoso para seus bolsos, o que pagará mais propina. Ou seja, privilegiamos a corrupção e a roubalheira, em detrimento da ciência e do conhecimento.

    A iniciativa dos nossos jovens é magnífica, precisamos andar em direção à democracia direta. Entretanto, não podemos esquecer de que nosso principal obstáculo não são as estradas, porque ainda não temos o veículo, o espaço para andar, e nem sequer temos o direito de tentar andar a pé mesmo. A democracia direta está proibida no Brasil. Somente deputados e senadores tem direito de deliberar sobre as leis, e também para convocar plebiscitos e referendos. Ou seja, nosso maior desafio é escrever esse direito na lei; e somente através dos políticos é que conseguiremos isso. Portanto, nossa luta deve passar pela divulgação em massa dessas informações, assim como a pressão sobre os políticos eleitos, e também sobre quem está prestes a isso, como a Dilma.

    Estamos discutindo e recebendo sugestões para uma iniciativa popular de lei nesse sentido, quem quiser participar é muito bem vindo:

    https://jornalggn.com.br/blog/democracia-direta/governo-digital

  2. Democracia direta em um

    Democracia direta em um estado único?

    Democracia direta  com voto em lista?

    Antes temos que ter uma federação de verdade não de papel.

    Antes temos que ter voto distrital.

    Depois democracia direta.

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