Um silêncio a cada esquina, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Um silêncio a cada esquina

por Fábio de Oliveira Ribeiro

No dia 18/08/2017 tive a honra de presenciar o lançamento de “Um silêncio a cada esquina”, editora Luminária Acadêmica, Porto Alegre, 2017, de autoria da jovem pesquisadora Mariana Luciano Afonso. O evento ocorreu na sede do CIM, Rua Cel. Xavier de Toledo, 210, salas 111/112, São Paulo, SP.

A obra é o resultado de uma pesquisa de campo realizada com prostitutas da Praça do Canhão, em Sorocaba –SP, a partir de janeiro/2012. Durante a pesquisa a autora teve contato com 60 mulheres e 6 travestis em situação de prostituição portadores de “…histórias de vida e de trabalho significativas para refletir sobre o objeto proposto. Além delas, foram entrevistados também seis representantes das instituições citadas (a ONG, o conselho de Segurança e a Associação religiosa).” (p. 47).

Apesar de ser uma das maiores cidades do país (Sorocaba tem 629.231 habitantes segundo o censo de 2013) “…nunca foi realizado nenhum estudo sobre aspectos relacionados à prostituição na cidade.” (fls. 100). Ao revisar a bibliografia, a autora encontrou “…66 estudos que de alguma forma tratam da temática da prostituição.” (p. 21). Alguns deles, foram objeto de exposição e reflexão no livro em questão.

Ao pesquisar estudos na área de Psicologia Social com objeto semelhante Mariana L. Afonso constatou que o mais antigo data 2001. Os pesquisadores, porém, não levaram em conta as representações sociais que as prostitutas fazem de si mesmas, da sua atividade e da maneira como essa é encarada pela sociedade. A autora também pesquisou como as próprias prostitutas encaram a regulamentação de sua atividade.

Num dos capítulos, a autora aborda o referencial teórico que utilizou (teoria das representações sociais). Ela afirma que “Esta perspectiva da representação social seria, portanto, um importante instrumento para a Psicologia Social – bem como para áreas correlatas das Ciências Humanas. Por ser capaz de articular o psicológico e o social como um processo dinâmico, que permite a compreensão do pensamento social e das subjetividades, ajuda, então, a desvendar os mecanismos de funcionamento da elaboração social do real, tornando-se fundamental no estudo das idéias e condutas sociais.” (p. 39).

Os dados foram coletados de forma semiestruturada para dar liberdade maior às entrevistadas. As informações foram ordenadas, classificadas e escrupulosamente analisadas. Para escrever a obra a autora selecionou sete entrevistas que, de uma maneira ou de outra, abordaram as questões referidas por todas as outras entrevistadas descartando as redundâncias.

O livro “Um silêncio a cada esquina” tem o mérito de suprir uma lacuna. De fato, “…pesquisas como essa torna-se social e cientificamente relevante, pois busca conhecer melhor uma população marginalizada em situação de vulnerabilidade social, com a possibilidade de ajudar a pensar políticas públicas voltadas para suas necessidades específicas, além de geral conhecimentos sobre o dia a dia da prostituição, que podem contribuir com o atual debate a respeito da regulamentação ou não regulamentação desta atividade como profissão.” (p. 33).

O contato da pesquisadora com as prostitutas ocorreu sem a mediação de cafetões e proxenetas. Portanto, as informações obtidas são valiosas porque não sofreram distorções decorrentes de algum tipo de coação. O tema “…da regulamentação da prostituição é um objeto social relevante para as prostitutas, constituindo-se como tema de diálogo em seu cotidiano, que é legitimado nas conversações do dia a dia, por meio da formação de representações sociais. Ressalta-se, assim, a importância de estudar as representações sociais das mulheres em situação de prostituição sobre a regulamentação da sua atividade, a fim não somente de ouvir a voz deste sujeito social marginalizado, mas, sobretudo, registrá-la e sistematizá-la pra que o debate  acerca da regulamentação possa ser enriquecido também com o ponto de vista das principais afetadas.” (p. 40).

A autora teve a preocupação de dar um panorama histórico da prostituição no mundo, no Brasil e em Sorocaba-SP. Ela também aborda a forma como a legislação brasileira trata a questão e discute de maneira detalhada os Projetos de Lei sobre a prostituição que já foram apresentados e que estão em discussão no Poder Legislativo.

Do ponto de vista jurídico o livro contém uma omissão. No capítulo 2.4 a autora não fez qualquer referência explicita ao estupro presumido (art. 217-A, do Código Penal), corrupção de menores (art. 218, do Código Penal), satisfação de lascívia mediante a presença de menor (art. 218-A, do CP) e o favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, do CP).  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm

Estes tipos penais punem aquele que explora e aquele que se satisfaz sexualmente à custa de menores e vulneráveis. Portanto, poderiam ter sido referidos pela autora, inclusive porque num outro capítulo ela mesma discutiu a criminalização do consumo de prostituição em alguns países europeus. Mariana L. Afonso não é advogada, portanto, a omissão que ela cometeu é perdoável. Numa próxima edição da obra a autora certamente poderá suprir esta lacuna.

No dia do lançamento do livro fiquei muito impressionado ao folhear a obra e ao escutar a preleção da jovem pesquisadora. Como disse naquela oportunidade, já presenciei palestras de centenas de juristas, sociólogos, antropólogos, historiadores e psicólogos, mas somente tive o prazer de conhecer dois cientistas sociais. O primeiro foi Florestan Fernandes, a segunda foi a autora do livro.

A leitura de “Um silêncio a cada esquina” é agradável. Na verdade não consegui parar de ler o livro até terminá-lo hoje pela manhã. A obra confirmou a primeira impressão que tive sobre a jovem Mariana L. Afonso. O livro dela tem tudo para se tornar um clássico, uma referência importante e inevitável no campo que ela resolveu estudar.

“Todo artista tem de ir aonde o povo está.” Em sua música Nos bailes da vida,  Milton Nascimento enunciou um belíssimo ideal estético: o de que a arte deve ser produzida em contato com o público levando em contra seu cotidiano.

O cientista social também deveria ir onde o povo está. Isto, porém, é bem mais difícil, pois vivemos num país cuja elite é desterritorializada e vive sonhando com a Europa, EUA e a Ásia. As realidades e necessidades de seus próprios conterrâneos parecem não interessar muito aos cientistas brasileiros. O mesmo parece se aplicar aos estudiosos da prostituição no Brasil, pois como afirma Mariana L. Afonso “Alguns autores (OLIVEIRA, 2008; RODRIGUES, 2010) defendem que a questão do estigma é tão central que, se não existisse preconceito, não haveria basicamente nenhum problema ou sofrimento relacionado à vivência na prostituição. As prostitutas que entrevistei discordam.” (p. 156).

Destaco abaixo, os fragmentos de entrevistas que mais me impressionaram:

“Tem gente que fala que o dinheiro é fácil, não é fácil, mas ele é rápido.” (p. 153)

“…espero que você nunca tenha que chegar nesse ponto que a gente está.” (p. 158)

“Deixo meu  corpo e saio fora.” (p. 167)

“A gente é uma atriz ali. Tudo fingimento.” (fls. 167)

“Parece que não estou ali .” (fls. 168)

“Prostituição é escravidão.” (fls. 174)

“… a prostituição é igual à droga, ao vício da droga. Quem entra nas drogas não consegue sair. A prostituição é a mesma coisa…” (p. 174/175)

Com base nos depoimentos, a autora concluiu que a prostituição não é encarada pelas próprias prostitutas como um trabalho qualquer (como dizem algumas feministas e os defensores da regulamentação da atividade). Elas não se sentem felizes com o que fazem. As que tiveram experiências profissionais diferentes e caíram na prostituição por causa de problemas econômicos (a maioria delas), fazem uma clara distinção entre a atividade delas (estigmatizado e desvalorizado) e o trabalho socialmente valorizado.

Numa relação de trabalho convencional, protegida pela legislação em vigor, o assédio sexual, a ameaça e a violência física acarretam consequencias jurídicas para o empregador. A prostituição expõe as mulheres que a praticam a ameaças de agressões, agressões consumadas e às perversões sexuais dos clientes (das quais apenas as prostitutas jovens e que estão em melhores condições podem se libertar). Os clientes que comentem abusos, violências e ameaças raramente sofrem qualquer punição e quando isto ocorre a vítima não obtém nenhuma compensação econômica. Este detalhe não foi explorado pela autora, provavelmente porque ela não é advogada.

As prostitutas entrevistadas por Mariana L. Afonso relataram que se sacrificam para criar os filhos. Como diz a autora “… as representações sobre o início na prostituição estão todas ancoradas nos filos, ou, mais especificamente, em um aspecto da maternidade que é o de serem provedoras. O outro aspecto é que isto faz com que elas rompam com a dicotomia instaurada pela dupla moral (RAGO, 2011a ; ROBERTS, 1992) que coloca de um lado as mulheres ‘puras’, ‘de família’, ‘mães’ e de outro ‘as pervertidas’, as prostitutas. O rompimento se dá uma vez que se tornam prostitutas para poderem ser melhores mães”. (p. 146). Entre as entrevistadas, todas elas mães (vide o quadro acima), algumas relataram o uso de bebidas alcoólicas e drogas para suportar as contradições da atividade.

No Brasil a legislação civil, a doutrina e a jurisprudência, tendem a levar sempre em conta os interesses dos filhos pequenos quando estes são expostos ao abandono ou ao contato com mães que praticam a prostituição ou que abusam de álcool e drogas.

Situação de fato em que a menor foi abrigada logo a pós o nascimento, por meio de medida protetiva, em decorrência do abandono da genitora, que vive em situação de prostituição, além de ser dependente química. Conjunto probatório que evidencia histórico de negligência da mãe biológica há longa data, ensejando a sua destituição do poder familiar sobre anteriores 05 filhos em precedentes ações análogas. APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70060437373, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sandra Brisolara Medeiros, Julgado em 26/11/2014)

Seria interessante saber como as prostitutas lidam com o temor de perder a guarda dos filhos pequenos. Devido ao objetivo bem definido na pesquisa (“as representações sociais de prostitutas sobre a regulamentação da ‘profissão’.”, p. 11) esta questão não foi abordada. Todavia esta é uma questão relevante que poderia ser objeto de regulamentação, afastando de vez o temor que as prostitutas eventualmente tem de perder a companhia dos filhos por causa da atividade que realizam.

Mariana L. Afonso fez o impensável. Ela foi fazer ciência onde as prostitutas estão e levou em conta o que elas disseram. O livro dela, portanto, contraria uma tendência histórica da academia no Brasil.

A ciência jurídica brasileira, por exemplo, continua a ser formulada sem levar em conta nossa realidade, pois seus referenciais teóricos são importados. Tudo aquilo que Roberto Lyra Filho produziu continua sendo ignorando tanto pelos legisladores quanto pelos juízes.

O estudo do Direito que nasce das relações sociais travadas pelos brasileiros pobres ainda não conseguiu obter legitimação acadêmica, reconhecimento judiciário. Não por acaso, os Projetos de Lei comentados no livro “Um silêncio a cada esquina” foram elaborados sem levar em conta o cotidiano das prostitutas e as representações sociais que as elas, as próprias prostitutas, fazem de si mesmas. Além disto, como afirma a pesquisadora os legisladores parecem estar mais inclinados a cuidar dos interesses econômicos dos mercadores do sexo, dos cafetões e dos proxenetas (cuja atividade seria descriminalizada).

Em nosso país os cientistas sociais, especialmente aqueles que pertencem à minha área de atuação (Direito), granjeiam reconhecimento intelectual em virtude de se esforçar para introduzir e adaptar á nossa realidade teorias produzidas no exterior. Muitos deles olham o Brasil, mas enxergam apenas as sociedades estrangeiras em que foram construídos os conceitos sofisticados que eles utilizam para tentar modelar o Brasil, escrever teses, publicar livros e conquistar posições nas universidades.

Neste exato momento estamos vendo o usurpador Michel Temer impor ao país reformas inspiradas no neoliberalismo (o neoliberalismo foi concebido pelos monetaristas norte-americanos). Aqueles que combatem as inovações neoliberais dizem que o PT e Lula são vítimas de Lawfare (conceito inventado por John Carlson e Neville Yeomans). Resumindo: todo o debate político, econômico e jurídico parece estar sendo feito com base em conceitos importados.

Esta contaminação por idéias importadas também pode ser observado no campo de estudo de Mariana L. Afonso. O representante do CONSEG entrevistado pela autora, que apóia a regulamentação da profissão e deseja que as prostitutas sejam afastadas do local onde trabalham em Sorocaba-SP, demonstrou ter concepções européias de controle sanitário e social da prostituição do século XIX. Contrária à regulamentação da profissão, a Associação Religiosa que atua com as prostitutas está presente na Bélgica, Itália e Portugal e sua atuação parece ser inspirada num movimento da Igreja para salvar prostitutas na Europa durante o século XII.

É nesse contexto saturado de teorização desligada do nosso cotidiano que nasceu o livro “Um silêncio a cada esquina”. A autora percorreu um caminho oposto. Ela generosamente foi ao encontro das prostitutas. Ao invés de criar e difundir representações próprias sobre a atividade delas, Mariana L. Afonso proporcionou as entrevistadas a oportunidade de representar a si mesmas. Ao final ela organizou o material colhido para dar coerência e profundidade ao que viu, ouviu. O resultado é um livro que certamente entrará para a história das ciências sociais no Brasil.

Os méritos do livro, porém, não se resumem á pesquisa de campo. Após definir seu objeto, a autora fez um minucioso inventário de toda a produção acadêmica sobre o tema. Mariana L. Afonso forneceu os contornos das principais controvérsias sobre a prostituição e de que maneiras elas têm sido estudadas. Num país autoritário como o Brasil, em que o produzir Leis é algo que se faz de cima para baixo (quase sempre sob inspiração de modas importadas), a jovem pesquisadora procurou captar como as prostitutas representam a si mesmas no mundo, como elas acreditam que são vistas e, mais importante, como elas encaram as tentativas de regulamentação de sua profissão. A pesquisa dela, portanto, pode ser considerada tributária da perspectiva do Direito Achado na Rua do saudoso Roberto Lyra Filho.

Como já foi dito anteriormente, o “Um silêncio em cada esquina” contém um esboço histórico da prostituição no mundo e no Brasil. A obra aprofunda a discussão do tema levando em conta as três formas de tratar a questão: abolição, regulamentação e proibição. À discussão da situação atual no Brasil segue-se uma detalhada exposição dos Projetos de Lei que se referem à prostituição.  No último capítulo da obra a autora trata das representações que as prostitutas fazem destas propostas legislativas.
 
Há livros que são canoas, com eles nunca conseguiríamos atravessar oceanos. Outros são vistosos transatlânticos, mas eles não conseguem seguir um rumo definido, encalham antes de chegar ao porto ou afundam no escolho do pedantismo. Alguns são lagos profundos sempre confinados por suas margens. Poucos são os livros vastos como os oceanos que se expandem ao infinito transportando cada leitor à praia que ele desejava chegar. Este é o caso da obra de Mariana L. Afonso. Boa leitura.

O livro em questão pode ser adquirido pela internet https://editoramultifoco.com.br/loja/product/um-silencio-cada-esquina-representacoes-sociais-de-prostitutas-sobre-regulamentacao-da-profissao/.

Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário

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  1. um….

    E existe algum serviço publico decente e relevante nas cidades satelites do Tucanistão? Sorocaba é a principal delas. Administradores do Caixa Náo Contabilizado (metáfora para corrupção) do PSDB. Pannunzio do lado de Serra. Amary do lado de Alckmin. Processos engavetados às centenas. Lembram da historia do Promotor de Justiça da cidade e a chantagem sobre o Sindicato, há alguns meses? Dos Hospitais Psiquiátricos (o maior centro nacional) e as quase 300 mortes inexplicáveis reveladas por Emissora de TV? Todos do Secretário Municipal de Saúde. Todos fechados às pressas. Da Rod. Raposo Tavares SP 270, uma das primeiras a ser privatizada, esperando por duplicação há 20 anos? Agora, da Prostituição na cidade, que é omitida e negligenciada pelas autoridades municipais e MP. Alguma novidade? Assistência Médica e Social, além de acompanhamento para a mitigação de seus efeitos como a propagação de DST’s e continuidade da marginalidade e pobreza destas pessoas não é favor das Autoridades Públicas. É Dever Constitucional. Mas o Trabalho da Pesquisadora revela a mediocridadedas políticas públicas nacionais e em especial, desta cidade. Nenhuma novidade nesta realidade contínua, discriminada e lamentável.       

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