A vez do Petróleo na Era Vargas, por José Augusto Ribeiro

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por José Augusto Ribeiro 
 
Prezado Nassif,
 
Acabo de ler seu artigo sobre o projeto do Pedro Parente na Petrobrás e associei o que você escreveu ao que eu escrevi em meu livro A Era Vargas, de 2001, no qual estou trabalhando para desdobrá-lo em seis volumes que possam ser lidos independentemente um do outro e publicá-lo nos próximos dois anos, de modo a estarem todos disponíveis em 2020, nos noventa anos da Revolução de 30.
 
Como você, com certeza, vai voltar muitas vezes ao tema Parente/Petrobrás, e o tema vai ser um dos principais da campanha eleitoral, mando em anexo, trechos da Era Vargas que vão até além de seu protesto.
 
Não é só a questão da integração que está em jogo. É a questão do refino, base de uma indústria petrolífera sólida mesmo em países que não disponham de petroleo em seu território ou no mar, como ficou demonstrado desde os anos 20 do século passado, com a criação da YPF argentina e das refinarias do Uruguai, que não produz petróleo bruto.
 
Esperando que esse material seja útil para seu trabalho, obrigado pela atenção e o abraço do Zé Augusto Ribeiro.

A ERA VARGAS, trechos sobre política do petróleo

Por José Augusto Ribeiro

1931

A VEZ DO PETRÓLEO

Enquanto ganhava algum tempo para fortalecer-se na questão da siderurgia, o governo provisório cuidava também da questão do petróleo. Até aquele momento – apesar de uma luta de décadas em todo o mundo pelo controle de reservas e mercados petrolíferos, e de guerras, revoluções e golpes de estado em vários lugares, inclusive na América Latina (caso do México, mergulhado numa revolução interminável, iniciada em 1910) – até aquele momento o governo brasileiro não interviera na questão do petróleo e os governos estaduais podiam outorgar e outorgavam sem qualquer controle ou critério grandes concessões a grupos estrangeiros.

A Royal Dutch Shell, por exemplo, atuava no Brasil desde 1921, dispondo de enormes áreas de concessão que obtivera por meio de uma subsidiária, a Companhia Brasileira de Petróleo. A Standard Oil, futura Exxon,  tinha como intermediária a Companhia Geral de Petróleo Pan-Brasileira. Só em 1921, as duas tinham assinado cerca de 120 contratos de concessão.

Em 1927, o deputado Ildefonso Simões Lopes, do Rio Grande do Sul, fizera um discurso de grande impacto na Câmara, denunciando o perigo dessas concessões descontroladas. O Estado do Amazonas, o de maior extensão territorial no Brasil, concedera grande parte de seu território a empresas petrolíferas. Das seis áreas em que fora dividido o Estado, quatro estavam em poder de testas de ferro da Standard Oil.

Em julho de 1931, Getúlio tomou a primeira de uma série de decisões que se prolongariam até o ano de sua morte, 1954, e que foram determinantes nos acontecimentos de sua vida e do país – a começar por um decreto que suprimia a prerrogativa até então exercida sem qualquer controle pelos governos estaduais, de outorgar concessões a quem quer que fosse para a exploração de reservas de petróleo. Pelo decreto de julho de 1931, qualquer concessão ou simples autorização de pesquisa e prospecção passava a depender da concordância do governo federal.

Ainda não era a definição de uma política petrolífera completa, mas já era a adoção de um critério válido para todo o país – um critério que preservava a soberania do Brasil  e o interesse nacional. Enquanto não se discutia e decidia o regime da indústria do petróleo no Brasil, acabava-se, pelo menos, com a farra das concessões, que retalhavam o território dos Estados e permitiam a entrega, por exemplo, de maior parte do grande Estado do Amazonas aos testas de ferro de grupos estrangeiros cuja identidade nem sequer era conhecida.

O decreto de julho de 1931 colocou sob controle do governo federal todas as futuras concessões e também, em grande medida, as que já tinham sido outorgadas pelos Estados. Só assim seria possível inventariar as possibilidades da indústria petrolífera no Brasil e discutir seu futuro e definitivo regime.

A questão do petróleo seria objeto, no primeiro governo Vargas, de novas e importantíssimas decisões em 1934 e 1938, e no seu segundo governo figuraria como uma de suas prioridades e resultaria na criação da Petrobrás.  

No caso do petróleo, naquele momento, o governo provisório de Getúlio não tinha como ir além dessa primeira medida de controle. No caso da siderurgia, sim, ele devia manter-se na ofensiva, tomando sempre a iniciativa.

O Brasil não tinha condições de financiar a pesquisa de possíveis reservas de petróleo e a construção de refinarias, estas o ponto de partida de uma indústria petrolífera – até por não se ter certeza da quantidade e da possibilidade de extração do petróleo ainda não descoberto em seu território.

1938

Com base no Código de Minas decretado dias antes da entrada em vigor da Constituição de 1934, Getúlio conseguira anular as autorizações para a pesquisa de petróleo outorgadas antes da Revolução de 30 a grupos multinacionais e seus representantes, sobretudo no Estado do Amazonas, fatiado em seis áreas, quatro das quais dadas a um mesmo grupo norte-americano.

Além disso, a Constituição de 1934 permitira a empresas “organizadas no país”, que podiam ser controladas por estrangeiros, requerer e receber autorizações ou concessões para a exploração de minérios, o que incluía o petróleo. Apesar dessa permissão, nem a Shell, nem a Standard Oil nem qualquer outra das grandes multinacionais do petróleo apresentara qualquer proposta de pesquisa ou exploração. O que interessava a esses grupos era apenas comprar áreas presumidamente petrolíferas, para mantê-las como reserva estratégica.

Já em abril de 1938, e com base na Constituição de 10 de novembro de 1937, o governo adotaria uma decisão mais importante até que a proposta de criação da Petrobrás, em dezembro de 1951, no primeiro ano do segundo governo Vargas: a nacionalização das reservas brasileiras de petróleo.

Se a proposta de criação da Petrobrás desencadeou grande controvérsia e a campanha interna e internacional que levaria Getúlio ao suicídio em agosto de 1954, por que não aconteceu a mesma coisa em 1938? Possivelmente porque a situação internacional era melhor para o Brasil em 1938 do que na década de 1950 e porque Getúlio pôde agir  com ousadia, na certeza de que o Presidente Roosevelt obrigaria o governo dos Estados Unidos e as multinacionais do petróleo a respeitarem a decisão brasileira.

No momento em que Getúlio agiu, em abril de 1938, as manchetes dos jornais de todo o mundo registravam o choque da nacionalização do petróleo no México, decretada pelo governo do General Lázaro Cárdenas.

– A atitude do General Lázaro Cárdenas – escreveu o jornalista Mário Vitor em seu livro A Batalha do Petróleo Brasileiro – era um exemplo para todos aqueles que, no Brasil, se preocupavam com a defesa das riquezas minerais, notadamente o petróleo. Era uma preocupação que datava dos idos de 1927, quando [Ildefonso] Simões Lopes [deputado do Partido Republicano Riograndense, em discurso na Câmara Federal] advertira contra a investida dos estrangeiros na aquisição de áreas presumidamente petrolíferas. Em abril de 1938, já desabavam sobre o México as mais terríveis pressões da diplomacia inglesa e norte-americana. Era chegado, portanto, o momento propício para a adoção de medidas preventivas em defesa do petróleo brasileiro.

A PRIMEIRA  NACIONALIZAÇÃO DO PETRÓLEO BRASILEIRO

Na longa história das revoluções e do petróleo mexicano, muitos tinham sido os atos de intervenção política e militar dos Estados Unidos, a começar pela anexação de cerca de metade do território mexicano, quase cem anos antes. Desta vez, porém, os Estados Unidos não intervieram –  não por magnanimidade, mas porque o governo Roosevelt sabia da inevitabilidade da guerra entre as grandes potências e precisava preservar seus interesses estratégicos maiores no conjunto das três Américas.

Uma intervenção militar direta no México e qualquer intervenção oblíqua no Brasil seriam um desastre político para os Estados Unidos – ainda mais com a Argentina já seriamente inclinada pela Alemanha de Hitler (e com o Uruguai e o Chile igualmente ameaçados).

Roosevelt ficara aliviado com o desfecho da crise brasileira em  1937 e com o fato de Getúlio ter garantido sua permanência no poder por meio do golpe de 10 de novembro. Roosevelt contava com a lealdade de Getúlio, mas sabia que o compromisso maior deste não poderia ser com os Estados Unidos: teria de ser com  os interesses brasileiros.

Foi assim que Getúlio pôde realizar, a partir de 11 de abril de 1938, a primeira nacionalização do petróleo brasileiro.

O princípio da nacionalização já tinha sido estabelecido pela Constituição de 1937. A Constituição de 1934 permitia a exploração de minas e jazidas minerais (o que incluía o petróleo) por empresas “organizadas no Brasil”. Uma subsidiária da Shell ou da Esso poderia tranquilamente, com a ajuda de alguns testas-de-ferro nativos, naturalmente bem pagos,  registrar-se como empresa organizada no Brasil e habilitar-se a concessões para a pesquisa e extração de petróleo.

Por isso e para evitar que tais grupos invocassem direitos adquiridos previamente, o Código de Minas, decretado dias antes da vigência da Constituição de 1934, criara mecanismos de defesa das reservas brasileiras. Esses mecanismos tinham permitido ao governo, bem antes do golpe do Estado Novo, anular as inacreditáveis concessões petrolíferas outorgadas antes da Revolução de 1930.

A Constituição de 1937 substituira o conceito de empresas “organizadas no Brasil” por dois princípios bem mais rigorosos.

O primeiro repetia a norma do decreto assinado por Getúlio nos primeiros meses do governo provisório da Revolução de 30, para impedir e anular as concessões irresponsáveis que vinham sendo feitas por alguns Estados:

“Art. 143 – O aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais depende de autorização federal.”

O segundo  dizia:

“Parágrafo 1º. – A autorização só poderá ser concedida a brasileiros ou empresas constituídas por acionistas brasileiros.”

Uma empresa simplesmente organizada no Brasil poderia ter alguns acionistas minoritários brasileiros, titulares de duas ou três ações, como aconteceria ao longo de décadas com os diretores brasileiros da Light, que explorava serviços de eletricidade no Rio e em São Paulo. A maioria das ações pertenceria, como na Light, aos  donos estrangeiros. Já uma empresa constituída exclusivamente por acionistas brasileiros não seria tão facilmente controlável do estrangeiro. Se fosse, as multinacionais não lutariam tanto nem gastariam tanto dinheiro para amaciar, em países como o Brasil, as leis sobre capitais estrangeiros e remessa de lucros.

É possível que Getúlio já pensasse, em 1938, na solução do monopólio estatal que nos anos 50 seria adotada na Lei da Petrobrás. Essa foi uma das alternativas propostas em estudo do Estado-Maior do Exército, chefiado pelo General Gois Monteiro. Mas a prioridade, em 1938, era a siderurgia: o Brasil já explorava e exportava minério de ferro e praticamente não produzia aço, precisando importar até enxadas. O petróleo ainda não tinha sido descoberto em nenhum ponto do território brasileiro e o Brasil não dispunha de qualquer refinaria para o desdobramento de seus derivados.

O conjunto de decretos sobre petróleo que Getúlio assinou a partir de abril de 1938 partia de um pressuposto definido e defendido pelo General Júlio Caetano Horta Barbosa, futuro presidente do Conselho Nacional do Petróleo: o de que a base da indústria do petróleo é o refino – e as refinarias devem preceder, se necessário, a exploração e a própria descoberta de petróleo. Para Horta Barbosa e sua equipe, a chave da indústria do petróleo estava na refinação, existindo ou não petróleo nacional: só quem refinasse  estaria em condições de fixar os preços dos derivados. O mercado do óleo bruto era livre no mundo e a indústria do refino deveria preceder a descoberta do óleo.

Essa não era uma afirmação arbitrária e fora comprovada pouco antes em dois países vizinhos do Brasil, a Argentina e o Uruguai.

QUEM NÃO REFINA NÃO CONTROLA

A Argentina dispunha de sua estatal petrolífera, a YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales), já nos anos 20. No começo, a YPF limitava-se a produzir petróleo. O refino e o mercado estavam sob o controle das multinacionais, especialmente a West India, subsidiária da Standard Oil, e os preços da gasolina e da nafta eram determinados em Nova York.

Um dos diretores da YPF, o General Enrique Mosconi, propôs ao Presidente da República, o velho líder radical Hipólito Yrigoyen, a construção de refinarias pela empresa estatal. Mosconi, anos antes, comandara uma base das primeiras unidades da aviação militar da Argentina. Um  dia os aviões não puderam decolar, por falta de combustível: o governo atrasara o pagamento e o vendedor sustara o fornecimento.  

Mosconi, alarmado, passou a estudar a questão do petróleo e afinal foi chamado para a diretoria da YPF. Assim que a primeira refinaria entrou em funcionamento, a YPF conseguiu baixar o preço da gasolina, dos 30 centavos de dólar fixados pela Standard Oil para 20 centavos.  Só a refinaria de La Plata, que custara 24 milhões de pesos, permitiria à Argentina, até 1935, economias de mais de 400 milhões.

Em 1930, Yrigoyen foi derrubado, no golpe de Estado direitista do general José Félix Uriburu, no momento em que negociava com o governo da União Soviética a compra de gasolina a 12 centavos o litro. Um dos primeiros atos do governo Uriburu foi romper relações comerciais com a União Soviética

O Uruguai, que não produzia petróleo algum, montara também um parque de refino e já refinava mais de metade de seu petróleo importado.

É claro que as multinacionais reagiram. Não no Uruguai, mercado muito pequeno. Na Argentina, em 1935, elas se associaram a grupos locais e importaram grande quantidade de petróleo bruto, para vender a preços abaixo da tabela e com grandes comissões aos intermediários. Era uma operação de dumping, para liquidar a YPF. O Presidente da República já não era o general Uriburu, mas o general Agustin P. Justo, eleito com o apoio dos radicais e até dos socialistas, mas que não tinha força suficiente para resistir ao cerco sem concessões.

O governo, para não permitir a liquidação da YPF, teve de autorizar a entrada das multinacionais no mercado, concorrendo com ela. O patrimônio da Standard Oil passou para o governo por cerca de 100 milhões de dólares e foi transferido à Shell, que daí em diante dividiria seus lucros com o governo. O acordo previa também que a Shell deixaria o mercado brasileiro livre para a Standard Oil.

Getúlio sabia bem da situação da Argentina, ficara amigo do Presidente Justo, a quem tinha conhecido em janeiro, na inauguração da ponte Uruguaiana-Paso de los Libres, e concluira que na questão do petróleo só poderia agir com audácia se agisse com inteligência – e que também não seria inteligente agir sem audácia. Esse caminhar sobre o fio de uma navalha ficaria mais claro nos episódios seguintes da luta contra a Itabira Iron e pela criação da indústria siderúrgica no Brasil – mas hoje ele parece claro também na questão do petróleo.

O governo brasileiro já tinha a seu favor os dispositivos da Constituição de 1937 que faziam depender de autorização do governo federal o aproveitamento dos recursos minerais e só permitiam essa autorização a brasileiros ou empresas cujos acionistas fossem todos brasileiros.

Assim, o decreto de 11 de abril, o primeiro da legislação petrolífera de 1938, repetia a norma constitucional e entrava em casos particulares – da mesma forma que o Código de Minas de 1934.  O Código de Minas anulara as enormes e irrefletidas concessões de terras supostamente petrolíferas de antes de 1930. O decreto de 11 de abril de 1938 fazia a mesma coisa, mas com maior competência jurídica, ao dizer – e aqui temos de traduzir o rigor da linguagem legal para a clareza da linguagem leiga – que a lei não reconhecia o domínio de particulares, isto é, a propriedade privada, sobre jazidas de petróleo e gases naturais, pelo fato de não ter sido descoberta nenhuma jazida suscetível de utilização industrial ao longo de todo o período que se estendia até a  decretação do Código de Minas, em julho de 1934.

Até o Código de Minas, o proprietário da superfície era considerado proprietário também das riquezas do subsolo. Um parágrafo desse decreto  acrescentava ficarem “de nenhum efeito os manifestos e registros de jazidas de petróleo e gases naturais que porventura hajam sido efetuados com fraude da lei”.

O FIM DOS GRANDES LATIFÚNDIOS SUBTERRÂNEOS

O decreto desapropriava sem indenização todos os latifúndios subterrâneos que os grandes grupos multinacionais da indústria petrolífera vinham acumulando – frequentemente por meio de concessões como aquelas do Amazonas, que retalhara esse Estado, o maior do Brasil, mais extenso que a maioria dos países do mundo, em seis concessões, quatro das quais ao mesmo grupo norte-americano. Tal acumulação fora consumada por meio de acordos, sacramentados por escrituras, entre os proprietários da superfície e empresas petrolíferas interessadas apenas no subsolo e seus recursos minerais.

…………………

O decreto de 11 de abril liquidava antecipadamente qualquer alegação de direito adquirido que viesse a ser apresentada contra as suas disposições.  

Assim, eram tornados nulos os contratos assinados entre os Grupos Shell e Standard Oil e vários proprietários de terras nas áreas de São Paulo e Paraná. Como diria o General Horta Barbosa, o objetivo da Standard Oil e da Shell era, “à sombra de nossa legislação anterior ao Código de Minas, apossar-se das terras supostamente petrolíferas, impedindo, de fato, toda e qualquer possibilidade de pesquisa.”

Mal os escritórios de advocacia e consultoria contratados pelos grandes grupos multinacionais começavam a situar-se diante dessas anulações, mais amplas que a mais atrevida reforma agrária, e Getúlio, no dia 29 de abril, assinou o decreto (nº 395) que nacionalizava também a industria do refino de petróleo.

Até então, as medidas de defesa do petróleo brasileiro poderiam ser consideradas reações poéticas do governo da Revolução de 30 e do governo constitucional de 1934: anular concessões anteriores, concentrar no governo federal o poder de deferir novas concessões, separar a propriedade da superfície da propriedade do subsolo – tudo isso poderia ser contornado pelo poder maior, o poder econômico de quem controla o refino do petróleo e, controlando o refino, controlará todo o mercado.

Agora, porém, com o decreto de 29 de abril, o governo brasileiro intervinha também na fração mais rica da indústria petrolífera – o setor da refinação. Até então, qualquer empresa poderia construir e operar refinarias de petróleo no Brasil.

Nenhuma se interessara por isso,  embora, vizinhos do Brasil, a Argentina tivesse montado o parque de refino que lhe economizava e já dava tanto dinheiro e o Uruguai refinasse mais de metade de seu consumo de petróleo. Por esse decreto, só poderiam operar no Brasil refinarias de capital social constituído exclusivamente por brasileiros natos, titulares de ações nominativas. Além disso, a direção e a gerência das empresas refinadoras teriam de ser confiadas exclusivamente a brasileiros natos.

O decreto, refletindo as conclusões e preocupações dos generais Horta Barbosa e Ibá Jobim Meirelles, era ainda mais rigoroso que o de 11 de abril, que não exigia brasileiros natos nem como acionistas nem como diretores e gerentes das empresas. E concentrava no governo federal a competência exclusiva de autorizar a instalação de qualquer refinaria ou depósito, assim como de limitar a capacidade de produção e a natureza e qualidade dos produtos refinados. E declarava de competência exclusiva do governo federal o poder de autorizar, regular e controlar a importação, a exportação e o transporte de petróleo e seus derivados – aí incluídos a construção de oleodutos e a distribuição e o comércio do petróleo.  

Embora nada fosse estatizado ou monopolizado, o decreto submetia o conjunto da indústria e do comércio de petróleo e seus derivados ao governo federal – o que não era novidade nem extravagância, porque todos os países, sabendo-se às vésperas de uma guerra mundial de escala sem precedentes, tratavam de proteger-se com medidas semelhantes.

Dois setores altamente lucrativos mas não estratégicos do ciclo da economia petrolífera, também sujeitos ao controle do governo federal, foram deixados, na prática, em poder das multinacionais – a distribuição e o varejo. Com isso ficavam amaciadas as resistências desses grupos, que, de fato, preferiram os lucros imediatos da nova situação aos riscos da resistência e da luta pelo domínio do refino e, em seguida, da extração do petróleo bruto.

O CONSELHO NACIONAL DO PETRÓLEO

Também pelo decreto de 29 de abril foi criado o Conselho Nacional do Petróleo, mas este só passou a ter existência e poderes efetivos por outro decreto, de julho (nº 538) que lhe dava poderes para opinar sobre a conveniência da outorga de autorização de pesquisa e concessões de lavra de jazidas de petróleo, gases naturais, rochas betuminosas e pirobetuminosas.

Em geral, o conjunto de decretos de 1938 sobre o petróleo é tratado como se tivesse havido apenas um, o de criação do Conselho Nacional do Petróleo, CNP, sendo tudo mais consequência disso. É claro que, no início, o CNP parecia ser mais importante que os atos de nacionalização das reservas petrolíferas do país. O CNP foi o órgão capaz de fazer valer tudo o que tinha sido disposto nos decretos anteriores. O CNP foi o antecessor da Petrobrás e, mesmo depois do surgimento desta, desempenhou ainda por muitos anos um papel normativo de enorme importância.

(No arrastão neoliberal da década de 1990, o CNP foi substituído pela Agência Nacional de Petróleo, ANP. Na prática, a  tarefa da ANP não era defender os interesses brasileiros  na questão do petróleo, mas conceder a grupos estrangeiros áreas nas quais a Petrobrás tinha verificado a existência de possibilidades de extração de boas e lucrativas quantidades de petróleo.)

Um terceiro decreto, de dezembro de 1938, declarava depender do governo federal a autorização para o funcionamento de empresas destinadas ao aproveitamento de recursos minerais: só seriam autorizadas empresas constituidas exclusivamente de acionistas brasileiros. Esse decreto referia-se a recursos minerais em geral – o petróleo e os outros. Porque a luta não era apenas pelo petróleo. Era também, e prioritariamente nesse momento, pelo ferro e pelo aço.

Com base nos decretos de abril, foi nomeado presidente do Conselho Nacional do Petróleo o general Horta Barbosa, que definira e defendera, como prioridade de um projeto de indústra petrolífera, a montagem de um parque de refino, modelo adotado nos decretos de 1938. O Conselho era constituido de representantes dos Ministérios da Guerra, Marinha, Agricultura e Viação e Obras Públicas e de organizações representativas da indústria e do comércio.

Ainda em 1938, o General Horta Barbosa visitou a Argentina e o Uruguai, para observar os progressos da indústria petrolífera nos dois países paises – cuja prioridade continuava a ser um conjunto de refinarias. De volta ao Brasil, Horta Barbosa idealizou um plano para a indústria da refinação, baseado na construção de uma refinaria para 10 mil barris diários no Rio. Essa refinaria utilizaria petroleo importado e seu lucro liquido seria empregado na intensificação da pesquisa.

A Segunda Guerra Mundial, deflagrada em setembro de 1939, retardou esse projeto. Em 1945, terminada a guerra, Getúlio planejava aplicar na construção das primeiras refinarias brasileiras de petróleo o saldo comercial que o Brasil acumulara nesses anos  – de 700 a 800 milhões de dólares em valores da época, alguns bilhões em dinheiro de hoje. Getúlio, porém, foi deposto em outubro, cinco meses depois da rendição da Alemanha e seis depois da morte de Franklin Delano Roosevelt. Talvez para não ter a possibilidade de fazer isso…

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1939

JORRA PETRÓLEO EM LOBATO

Em janeiro de 1939, a história do Brasil mudaria de curso em consequência daquilo que na hora poderia ter parecido aos menos informados um acontecimento secundário.  Um pequeno acontecimento no lugar chamado Lobato, no Recôncavo Baiano, perto de Salvador.

Essa história foi reconstituída pelo depoimento de um dos pioneiros da pesquisa de petróleo no Brasil, Oscar Cordeiro, a outro pioneiro, o mais discutido deles, o escritor Monteiro Lobato:

– Em dezembro [de 1938], os testemunhos já começavam a dar sinais de impregnação de petróleo, segundo as análises do dr. Froes de Abreu, um homem de bem naquela quadrilha. Aqueles sinais de petróleo próximo agitaram o Departamento. Mandaram para Lobato o engenheiro Custodio Braga e logo depois … Moacir da Rocha… Desconfiei de alguma ursada – e foi o que não tardou. Certos, no Departamento Mineral, de que o petróleo do Lobato saía mesmo, o pirotécnico do Departamento, Luciano Jacques de Morais, oficiou ao Conselho Nacional do Petróleo, sugerindo a conveniência da paralisação da perfuração do Lobato…  Gritei, berrei, esperneei e continuei nos trabalhos da perfuração, mas parece que vieram ordens para me afastar… Resisti a tudo e fiquei, mais atento que nunca.

– No dia 20 de janeiro entramos numa camada de arenito bastante impregnada de petroleo. Custódio, Moacir e Miranda (José Miranda, outro técnico) costumavam ficar na cidade; quem dirigia o serviço era o perfurador Ernesto, apenas. Arquitetei um plano. Dei  jeito de um velho operário amigo de Ernesto convidá-lo a passar o domingo fora. No dia 21, sábado, ele fechou o serviço ao meio dia e foi para casa. Fiquei sozinho no campo, alegre, ansioso, satisfeito, torcendo por dentro para que não me aparecesse nenhum sabotador. O último testemunho retirado do poço mostrava-se impregnadíssimo, mas Ernesto, que nunca vira petróleo, não dera atenção. No dia 22, domingo, fui cedíssimo para Lobato e tive a mais formidável sensação  de minha vida.

– O petróleo manava da boca do poço e corria pelo chão, rumo ao leito da estrada de ferro. Voltei correndo para casa. Mandei telegramas para Getulio, Horta Barbosa, Froes e outros, menos a Fernando Costa, que era Ministro novo [da Agricultura] e cujas idéias sobre petróleo eu desconhecia. Segunda feira o Interventor [Artur Neiva] foi com uma comitiva visitar o Lobato. Fui com eles e encontrei o Braga e seus companheiros desapontadíssimos com o desastre de um petróleo que eles tinham ordens para sabotar e que saira na ausência deles, de noite… Encontramos a boca do poço obstruida e o petróleo que havia escorrido rumo ao leito da estrada de ferro fora oculto por uma camada de areia. “Então, o que há?” foi a pergunta de todos. E eles, com caras criminosas: “Não há nada.”

– Mas os presentes insistiram na retirada dos tampos que obstruíam o poço. Braga alegou que era trabalho demorado, de horas. O Interventor disse que esperaria – e o sabotador não teve mais remédio, foi obrigado a dar ordens aos operários. Removidos de pronto os embaraços, a sensação dos presentes foi prodigiosa, ao verem o petróleo do Brasil borbotar daquele poço. Estava acabada a lenda do não há petróleo no Brasil. O prêmio que tive foi o decreto do sr. Getulio Vargas nacionalizando as minas de Lobato, sem a menor indenização. Fui corrido de Lobato, fui expulso do meu campo. E como não encontrasse fundamento para me submeter ao Tribunal de Segurança, o governo demitiu-me da presidencia da Bolsa de Mercadorias, instituição por mim fundada e da qual fui presidente por 12 anos.

Oscar Cordeiro acreditava-se vítima de uma conspiração de funcionários corruptos, pagos pelas multinacionais para impedir, de qualquer maneira, que se descobrisse petróleo no Brasil. Essa conspiração certamente existira e ainda existia, mas nesse momento havia um fato novo ou um conjunto de fatos novos,  resultantes dos decretos sobre petróleo de 1938.

Se o noticiário dos jornais não fosse suficiente, o governo disporia pouco depois do testemunho do engenheiro Froes de Abreu,  um de seus técnicos mais respeitados.

– O engenheiro Froes de Abreu também estivera em Lobato e voltara de lá convicto: era petróleo, sim. Ia dizer isso em seu discurso de posse na Academia de Ciências, no Rio, diante dos então donos da geologia brasileira. Mas os doutores da academia, à afirmação de Froes de Abreu de que o petróleo era uma realidade no Recôncavo Baiano, franziram a cara e sorriram irônicos, como se o novo acadêmico estivesse dizendo uma heresia. Froes insistiu na leitura de seu discurso e foi o tumulto. Um dos doutores, mais inflamado, chegou a gritar que só um doido ou um ignorante poderia acreditar na balela do petróleo baiano. Froes dobrou as laudas, deixou a tribuna, indignado e derrotado.

A notícia do jorro de petróleo, negro e forte, no primeiro poço de Lobato, fora publicada nos jornais de 21 de janeiro – acrescida de um detalhe significativo: o lençol petrolífero fora encontrado a apenas 210 metros de profundidade.

O governo não só não ignorou a notícia como providenciou a continuidade do trabalho em Lobato. Já a 8 de fevereiro, porém, um decreto de Getúlio, atendendo a ponderações dos órgãos de segurança nacional, declarou reserva petrolifera a área do Recôncavo, na Bahia, tendo como centro o poço nº. 163, situado em Lobato, nos arredores de Salvador, dentro da qual não seriam outorgadas autorizações de pesquisa nem concessões de lavra de jazidas de petróleo e gases naturais.

Oscar Cordeiro protestou, mas sua luta nesse momento não era mais com multinacionais corruptoras e funcionários brasileiros corruptos. Pelos decretos sobre petróleo de 1938, o governo tinha de tomar conta do poço de Lobato, especialmente depois de seus resultados positivos.

Da mesma forma que a autorização a Oscar Cordeiro, foram canceladas as de Edson de Carvalho em Riacho Doce (onde afinal não se encontrou petróleo), as de Monteiro Lobato em São Paulo e Mato Grosso (igualmente frustradas) e também as do industrial Guilherme Guinle, no Recôncavo.

Os decretos de 1938 não estatizavam, apenas nacionalizavam  a indústria do petróleo no Brasil.

– Mas o governo, claramente – escreve Mário Victor –  não queria correr o menor risco, mesmo com pioneiros como Oscar Cordeiro, de permitir a entrada clandestina dos grandes consórcios internacionais na pesquisa, extração ou refinação de petroleo: eles ficariam confinados às etapas, altamente lucrativas e sem qualquer risco, da distribuição e do varejo de derivados de petróleo.

Além do mais, seria inútil correr com a perfuração de poços de petróleo em Lobato antes de construir refinarias. O petróleo bruto extraído no Brasil teria de ser entregue às multinacionais, para refiná-lo fora do Brasil. Se voltasse, pagaríamos por ele em dólar, aos preços impostos pelas multinacionais.  

………………………..

1945

No início do ano [de 45], aliás, Lutero Vargas, o filho mais velho de Getúlio, fora alertado em Nova York por um grande empresário americano, provavelmente David ou Nelson Rockefeller, este Coordenador de Assuntos Interamericanos do Departamento de Estado, de que Roosevelt estava gravemente doente e sua morte era esperada para qualquer momento.

– Logo depois da morte de Roosevelt – dissera o interlocutor de Lutero Vargas – seu  pai será deposto, a pretexto de que chefia uma ditadura. Na verdade, querem derrubá-lo por causa de Volta Redonda e outras iniciativas dele. E o senhor verá que não derrubarão ditadores como Franco e Salazar. Nem Perón.

O primeiro ato do novo governo, chefiado pelo Presidente José Linhares, foi abrir a interesses estrangeiros a indústria de refinação de petróleo, publicando no Diário Oficial uma resolução nesse sentido do Conselho Nacional de Petróleo, para a qual o presidente desse órgão, coronel João Carlos Barreto, vinha pedindo sem resultado a autorização do Presidente Vargas.

1954

Muito antes do atentado da Rua Toneleros, talvez já nos dias da CPI da Última Hora, em 1953, amigos e colaboradores do Presidente, como Oswaldo Aranha e Tancredo Neves, esforçavam-se para conter ou, pelo menos, atenuar a fúria dos ataques dos “Diários Associados”, de Assis Chateaubriand, ao governo e à pessoa do Presidente.

Sem a televisão de Chateaubriand, Carlos Lacerda não levaria tão longe e tão fundo sua campanha contra o Presidente.

Esses esforços, segundo Tancredo Neves, resultaram inúteis. Mas no dia 16, associando-se pessoalmente a eles, o Presidente recebeu Chateaubriand no Palácio do Catete – encontro que seria revelado pelo próprio Chateaubriand na sessão do Senado de 24 de agosto, horas depois da morte do Presidente:

A EXIGÊNCIA DE CHATEAUBRIAND AO GENERAL MOZART DORNELLES

Chateaubriand também não revelou, no mesmo discurso, o encontro que tivera, em plena crise, com o General Mozart Dornelles, Subchefe do Gabinete Militar do Presidente Vargas e amigo de longa data de Chateaubriand. Da realização desse encontro e do que nele foi dito, o autor do presente livro teve notícia pelo Senador Francisco Dornelles, filho do General Mozart, primeiro em conversa particular e depois, no início de 2005, em depoimento para o documentário de televisão Tancredo Neves, Mensageiro da Liberdade.

Chocado com a virulência dos ataques de Lacerda ao Presidente Vargas, não só em seu jornal como nas televisões de Chateaubriand, a do Rio e a de São Paulo, o General Mozart procurou Chateaubriand e ouviu dele o seguinte:

Que Chateaubriand admirava e adorava o Presidente e que bastava o Presidente desistir da Petrobrás. Se o Presidente desistisse da Petrobrás, Chateaubriand tiraria Lacerda da televisão e entregaria a televisão a quem o Presidente quisesse para fazer a defesa de seu governo.

De volta ao Palácio do Catete, e chocado agora com a exigência de Chateaubriand, o General Mozart Dornelles decidiu aconselhar-se com o Ministro da Justiça Tancredo Neves, seu cunhado (o General era casado com Mariana Neves Dornelles, irmã de Tancredo).

Tancredo respondeu:

– Se é isso, você sabe, como eu sei,  que o Presidente morre mas não desiste da  Petrobrás.

 
 
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

1 Comentário

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  1. Com todos os seus erros e

    Com todos os seus erros e equívocos, Getúlio Vargas continua sendo o maior estadista que este país ja produziu. Efetivamente, chegou a dar a vida pelos interesses do Brasil. 

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