Ações afirmativas concretizam modelo de sociedade preconizado pela Constituição

As ações afirmativas se destinam à reparação de danos históricos responsáveis por ocasionar uma situação de desvantagem de determinada minoria ou grupo vulnerável

Por Luciano Aragão Santos

No Conjur

O Magazine Luíza se tornou o centro das atenções nas redes sociais em razão do seu programa de trainee 2021, que ofereceu vagas exclusivamente para candidatos negros. O programa trouxe à tona importante questão jurídica: se as ações afirmativas são instrumentos legítimos de redução da discriminação ou se geram a denominada discriminação reversa.

Além dessa controvérsia, outro ponto chama a atenção: as instituições e entidades que se posicionaram a favor do programa levantaram principalmente o fato de as ações afirmativas serem voltadas à reparação da discriminação histórica de que foi e é vítima a população negra no país.

De fato, as ações afirmativas se destinam à reparação de danos históricos responsáveis por ocasionar uma situação de desvantagem de determinada minoria ou grupo vulnerável. A ideia é que, através de medidas compensatórias e temporárias, a desigualdade desses grupos relativamente ao restante da sociedade seja minorada, garantindo-se, no longo prazo, condições efetivamente equitativas de oportunidades em todas as esferas da vida social, como o acesso à educação, a saúde, ao lazer e ao mercado de trabalho.

Uma vez reparado o dano e alcançada uma condição de razoável e adequada igualdade, as ações afirmativas perderiam sua razão de ser.

O Ministério Público do Trabalho (MPT), a esse respeito, editou a Nota Pública da Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho — Coordigualdade, na qual destacou a existência de posição institucional sobre o tema, já evidenciada na Nota Técnica GT de Raça nº 001/2018, que consigna [1]:

“Ações afirmativas são políticas públicas feitas pelo governo ou pela iniciativa privada com o objetivo de corrigir desigualdades dentre as quais as raciais, objeto desta nota técnica, presentes na sociedade, acumuladas ao longo de anos. Com efeito, uma ação afirmativa busca oferecer igualdade material de oportunidade a todos. E, em assim sendo, é um caso clássico de exemplificação de uma discriminação positiva e, portanto, legítima” [2].

Aumentando ainda mais toda a controvérsia, a Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou ação civil pública contra o programa de trainee, argumentando que “a contratação exclusiva de trabalhadores de determinada raça determinada raça ou etnia em detrimento de outras ao invés de promover igualdade de oportunidades gera exclusão de determinados (muitos, no caso) grupos de trabalhadores” [3].

A própria DPU, por meio do Grupo de Trabalho Políticas Etnorraciais, manifestou-se contra a ação civil pública proposta, argumentando que a empresa adotou ação afirmativa cujo objetivo é reduzir as desigualdades sociais e combater o racismo estrutural e institucional na sociedade brasileira [4].

Mas, diante de toda essa celeuma, será que as ações afirmativas se resumem a essa função, de reparação de danos históricos? Será essa sua principal função? Não entendemos assim.

Apesar de, inequivocamente, as ações afirmativas servirem ao propósito de reparar danos históricos que atingiram determinados grupos e de promover a responsabilidade social e coletiva pelos erros da gerações precedentes, essas políticas, para além das questões acima levantadas, devem ser compreendidas a partir do seu propósito e função prospectiva.

As ações afirmativas tem como fundamento os princípios da solidariedade e da diversidade. Assim, não se trata apenas da reparação de erros, mas também sobre o modelo de sociedade que foi propugnada pela Constituição Federal. Isso porque, com a inclusão proporcionada pelas ações afirmativas, pessoas de diferentes grupos passam a conviver no mesmo contexto social, o que favorece o diálogo, o conhecimento e a compreensão das necessidades e dos anseios legítimos desses diferentes grupos.

Dessa forma, as ações afirmativas vão além da função reparatória, avançando na promoção de uma sociedade inclusiva e plural, que valoriza a diversidade e proporciona o diálogo e convivência públicos dos diferentes grupos que a integram, o que favorece a construção de consensos em prol do bem comum.

Sandel destaca especificamente sobre as ações afirmativas para ingresso em faculdades:

“O princípio da diversidade se justifica em nome do bem comum — o bem comum da própria faculdade e também da sociedade em geral. Primeiro, defende que um corpo estudantil com diversidade racial permite que os estudantes aprendam mais entre si do que se todos tivessem antecedentes semelhantes. Assim como um corpo discente cujos componentes pertencessem a uma só área do país limitaria o alcance das perspectivas intelectuais e culturais, o mesmo aconteceria com um corpo estudantil que refletisse homogeneidade de raça, etnia e classe social. Em segundo lugar, o argumento da diversidade considera que as minorias deveriam assumir posições de liderança na vida pública e profissional, porque isso viria ao encontro do propósito cívico da universidade e contribuiria para o bem comum” [5].

As ações afirmativas servem, portanto, à concretização do modelo de sociedade preconizado pela Constituição Federal, promovendo a inclusão e diálogo público entre todos os grupos sociais. Servem, de fato, ao propósito de reparação de erros do passado, mas avança para além dessa questão, contribuindo para a construção de uma sociedade plural e inclusiva, baseada na cooperação social em torno de causas de interesse coletivo. Com mais ações afirmativas, talvez a sociedade brasileira alcance, no longo prazo, mais consensos em prol do bem comum.

[1] Nota pública da Igualdade. Disponível em: Coor https://mpt.mp.br/pgt/noticias/trabalhotecnico_24-2020_gerado-em-20-09-2020-16h26min14s.pdf . Acesso em: 07 de outubro de 2020.

[2] Nota Técnica GT de Raça nº 001/2018. Disponível em: https://mpt.mp.br/pgt/noticias/document.pdf . Acesso em 07 de outubro de 2020.

[3] Ação Civil Pública ACPCiv 0000790-37.2020.5.10.0015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/acao-dpu-magalu.pdf . Acesso em 07 de outubro de 2020.

[4] Nota Técnica nº 3 – DPGU/SGAI DPGU/GTPE DPGU disponível em: https://www.cartacapital.com.br/wp-content/uploads/2020/10/478966113-Grupo-DPU.pdf acesso em: 07 de outubro de 2020.

[5] SANDEL, Michael J. Justiça. Tradução de Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 280.

Luciano Aragão Santos é procurador do Trabalho, diretor-geral do Ministério Público do Trabalho e mestrando em Direito pela Universidade Católica de Brasília.

Redação

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