Arte Flamenga – Renascimento do Norte Europeu, por Rosângela Vig

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
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Do Obras de Arte

Arte Flamenga – Renascimento do Norte Europeu

Por Rosângela Vig

“O Belo enobrece a sensibilidade e sensifica a razão. Ele ensina a atribuir

um valor à forma. Com o belo aprende-se a amar as coisas 

sem egoísmo, apenas por causa de sua forma.” (SCHILLER, 2004, p.84)

Para Schiller (1759-1805), a obra bela se liga a questões éticas porque transcende o material, ao promover sensações subjetivas. O Belo, nesse sentido, sensibiliza, desperta sentimentos prazerosos no espírito, pela apreciação, pelo ajuizamento dos propósitos do artista. Nesse sentido, a grande obra permite ser descortinada sempre e dela serem extraídos novos significados, a cada novo olhar. Tal propósito ficou nítido na Arte do Renascimento e em especial na Pintura Flamenga, que floresceu entre os séculos XV e XVII, ao Norte da Europa. A Arte Flamenga, como é chamada, corresponde às produções artísticas da região de Flandres, na época, localizada na faixa entre a Bélgica, os Países Baixos e regiões vizinhas, como França e Alemanha1.

O local, na Idade Média, era formado por feudos, e recebeu a denominação de Países Baixos no século XVI, pelo Imperador Carlos V da Espanha. Faziam parte da região, sete províncias, incluindo Bélgica e Luxemburgo. No século XIX, Bélgica e Luxemburgo se separaram e apenas a Holanda passou a constituir os Países Baixos. O nome é devido ao local ser muito plano e por ter parte de seu território abaixo do nível do mar, protegido por diques e por barragens. O Norte da Europa foi profundamente afetado pela Reforma Protestante no século XVI e, após um período de lutas pelo poder e de crises religiosas, os reis da França e da Espanha impuseram seu domínio, na região. As mudanças no destino de Flandres deixaram nítidas marcas na Arte que ali se desenvolveu.

Fig. 1 – A Anunciação, Van Eyck, 1434-1436, National Gallery of Art, Washington. / Fig. 2 – São Jorge e o Dragão, Weyden, antes de 1432-1435, National Gallery of Art, Washington

O intercâmbio cultural, facilitado pelas rotas mercantis entre o norte e o sul da Europa, acabou por inspirar os artistas flamengos. Por lá, grandes nomes surgiram e a região ainda atraiu jovens pintores, de países vizinhos, que eram convidados para trabalhar nas cortes. Os pintores flamengos eram donos de uma incrível técnica realista e, aos primeiros deles, também são atribuídos o aperfeiçoamento e a popularização da pintura a óleo2. Sua Arte teve origem no final do período Gótico, também chamado de Gótico Tardio, no final da Idade Média. São considerados os fundadores da Escola Flamenga pré-renascentista, o “Mestre de Flémalle” (provavelmente Robert Campin) (1375-1444) e Jan Van Eyck (1380/90-1441) (Fig.1). Mais tarde, destacaram-se Rogier van der Weyden (1400-1464) (Fig.2), Petrus Christus (1410/20-1475/6), Hans Memling (1430-1494) e Hugo van der Goes (1440-1482).

Entre os artistas flamengos, havia uma cultura de observação atenta e detalhista da realidade e a valorização da forma tradicional da Arte. Tal atributo foi explorado de forma ilustre numa das mais belas obras de Van Eyck, A Anunciação (Fig. 1). Alvo de discussões entre historiadores, pela simbologia, tudo indica que a pintura seja parte de um tríptico. A imagem retrata o momento em que o anjo Gabriel anuncia à Virgem Maria que ela terá o filho de Deus. O cenário de fundo é o de uma igreja, em estilo gótico; o piso apresenta desenhos da cena do Antigo Testamento; e até mesmo as janelas apresentam referências religiosas. As roupas do anjo e da Virgem ainda demonstram minuciosa riqueza de detalhes no desenho, nas dobras, nas pregas e no caimento dos tecidos. A saudação a Maria está registrada com as inscrições “Ave Gra Plena” (Ave Maria cheia de Graça) do anjo; e a resposta da Virgem à Anunciação inscrita “Ecce Ancilla Dni” (Eis a serva do Senhor). Como as palavras são dirigidas a Deus, foram escritas de cabeça para baixo. O Casal Arnolfini3, também de Van Eyck, obra encomendada pelo rico comerciante Giovanni di Nicolao Arnolfini, provavelmente para celebrar seu casamento, apresenta detalhes da vida social e cotidiana da época e gera debates sobre seu significado simbólico. São extraordinários os detalhes do aposento, entre os quais o espelho convexo ao fundo, sobre o qual a cena se reflete; uma vela sobre o lustre, que pode significar a chama do amor; o par de tamancos à frente e um par de chinelos ao fundo, sobre o luxuoso tapete; o cachorro, que dá graça à cena; e a janela aberta, de onde vem a luz que incide sobre os móveis, sobre os objetos e sobre as pessoas. À cena doméstica da época, soma-se a noção de perspectiva e de profundidade.

Fig 3 – Jardim das Delícias Terrenas, Hieronymus Bosch, 1503/4, Museu do Prado, Madrid, Espanha

A partir do século XVI, a influência do Renascimento, resultou em pinturas notáveis. Nessa fase destacaram-se os artistas holandeses Hieronymus Bosch (1450-1516) (Figuras 3 e 5), Dirk Bouts (1415-1475) e Pieter Bruegel (O Velho)3 (1525/30-1569); e os alemães Albrecht Dürer (1471-1528), Matthias Grünenwald (1470-1528), e o grande retratista Hans Holbein (1497-1543) (Fig.4). A vida dos camponeses nas pequenas aldeias e seu cotidiano foi retratada de maneira célebre por Bruegel. Albrecht Dürer, inspirado nos clássicos gregos e romanos, baseou-se em uma observação detalhada da realidade, para reproduzir fielmente a natureza.

A incrível técnica e a exploração de temas profanos da Arte Flamenga ficaram nítidas na excepcional obra de Bosch, O Jardim das Delícias Terrenas (Fig.3). O tríptico, destinado a um palácio aristocrático, apresenta um painel central de 2,15 m por 1,90 m, e dois painéis laterais de 2,15 m por 95 cm. O Paraíso Terrestre, do lado esquerdo, embora não se pareça com aquele descrito pela Bíblia, tem como elementos centrais, Deus, Adão e Eva, recém-criada. Próximo a eles, emergem de um lago, criaturas rastejantes e assustadoras, em meio a outros animais. O Jardim das Delícias está no painel central e corresponde aos prazeres da carne. Entre detalhes inocentes e eróticos, há homens e mulheres nus em meio a uma estranha natureza, com animais e plantas bizarros e grotescos. No centro do painel, está a Fonte da Luxúria, onde há mulheres sedutoras. O painel do lado direito apresenta uma cena abominável do inferno, com punição pelos pecados carnais, por meio da tortura. Fazendo uso impecável de detalhes e de cores, Bosch conseguiu retratar de forma surpreendente as inquietações do espírito humano, referentes aos prazeres materiais, à fragilidade humana e à busca pelas virtudes e pela espiritualidade. O tríptico fechado, ainda apresenta a imagem do globo terrestre, pintado em branco e preto, contrastando com o colorido do interior. A revolucionária obra que inquietou os surrealistas no século XX, é a concepção pessimista de um mundo dominado pelo pecado. Para o monge espanhol José de Siguenza (1544-1606), as pinturas de Bosch eram “uma sátira pintada dos pecados e desvarios da humanidade” (José de Sigüenza, WELTON, 2014, p.127).

Fig. 4 – Edward VI quando Criança, Hans Holbein, 1538, National Gallery of Art, Washington  Fig. 5 – A Morte e o Avarento, Bosch, 1485-1490, National Gallery of Art, Washington  

A partir do século XVI, a influência do Renascimento, resultou em pinturas notáveis. Nessa fase destacaram-se os artistas holandeses Hieronymus Bosch (1450-1516) (Figuras 3 e 5), Dirk Bouts (1415-1475) e Pieter Bruegel (O Velho)3 (1525/30-1569); e os alemães Albrecht Dürer (1471-1528), Matthias Grünenwald (1470-1528), e o grande retratista Hans Holbein (1497-1543) (Fig.4). A vida dos camponeses nas pequenas aldeias e seu cotidiano foi retratada de maneira célebre por Bruegel. Albrecht Dürer, inspirado nos clássicos gregos e romanos, baseou-se em uma observação detalhada da realidade, para reproduzir fielmente a natureza.

A incrível técnica e a exploração de temas profanos da Arte Flamenga ficaram nítidas na excepcional obra de Bosch, O Jardim das Delícias Terrenas (Fig.3). O tríptico, destinado a um palácio aristocrático, apresenta um painel central de 2,15 m por 1,90 m, e dois painéis laterais de 2,15 m por 95 cm. O Paraíso Terrestre, do lado esquerdo, embora não se pareça com aquele descrito pela Bíblia, tem como elementos centrais, Deus, Adão e Eva, recém-criada. Próximo a eles, emergem de um lago, criaturas rastejantes e assustadoras, em meio a outros animais. O Jardim das Delícias está no painel central e corresponde aos prazeres da carne. Entre detalhes inocentes e eróticos, há homens e mulheres nus em meio a uma estranha natureza, com animais e plantas bizarros e grotescos. No centro do painel, está a Fonte da Luxúria, onde há mulheres sedutoras. O painel do lado direito apresenta uma cena abominável do inferno, com punição pelos pecados carnais, por meio da tortura. Fazendo uso impecável de detalhes e de cores, Bosch conseguiu retratar de forma surpreendente as inquietações do espírito humano, referentes aos prazeres materiais, à fragilidade humana e à busca pelas virtudes e pela espiritualidade. O tríptico fechado, ainda apresenta a imagem do globo terrestre, pintado em branco e preto, contrastando com o colorido do interior. A revolucionária obra que inquietou os surrealistas no século XX, é a concepção pessimista de um mundo dominado pelo pecado. Para o monge espanhol José de Siguenza (1544-1606), as pinturas de Bosch eram “uma sátira pintada dos pecados e desvarios da humanidade” (José de Sigüenza, WELTON, 2014, p.127).

Fig. 6 Lot e suas Filhas, Albrecht Durer, por volta de 1496-1499, National Gallery of Art, Washington.  / Fig.7 – A Lição de Anatomia do doutor Tulp, Rembrandt, 1632, Mauritshuis, Haia. / Fig. 8 – Garota ou Moça com Brinco de Pérola, Vermeer, 1665/1666, Mauritshuis, Haia. 

O impressionante realismo da obra Flamenga também ficou estampado nas obras de Hans Holbein. Na figura 4, o artista retratou o príncipe Edward VI ainda bebê, com uma das mãos segurando um cetro e com a outra em um gesto de abençoar. A criança está próxima a um parapeito, destinado à realeza e a figuras sagradas. A obra, feita em 1538, ainda apresenta um poema em Latim e há minuciosos detalhes de suas vestes. A obra Os Embaixadores4 de Hans Holbein, foi uma das primeiras pinturas a mostrar duas figuras em tamanho natural.

No século XVII, em virtude das Flandres fazerem parte do Império espanhol, a aproximação artística entre ambas se intensificou, e toda a beleza Arte Flamenga acabou por adquirir as feições do Barroco. A pintura de Peter Paul Rubens (1577-1640), influenciada pela beleza da obra do amigo espanhol Diego Velázquez (1599-1660), adquiriu colorido e dinamismo. Esse espírito vigoroso da obra de Rubens ainda inspirou seus conterrâneos como o pintor Antoon Van Dyck. Enquanto isso, na recém-criada República da Holanda, Rembrandt (Fig.7) (1606-1669) e Johannes Vermeer (Fig.8) (1632-1675) apresentavam um estilo descritivo e austero, com cenas do cotidiano. Embora pouco se saiba sobre a obra da figura 8, que surgiu pela primeira vez em 1881, num leilão, em Haia, cuja autoria é atribuída a Vermeer, o que chama a atenção é o efeito da luz sobre os rosto da moça, sobre os tecidos e sobre o brinco de pérola.

Em 1640, a morte de Rubens e em 1648, o fim da Guerra dos Oito Anos, maracaram o declínio cultural de Flandres, que só renasceu em 1830, com a Revolução Belga. A Arte produzida a partir de então, passou a ser considerada belga. A pintura flamenga foi fruto de uma cultura visual baseada na observação cautelosa da realidade, associada a um caráter simbólico. Esse traço resultou em obras que deixaram evidentes a habilidade dos artistas e sua capacidade criativa e interpretativa do mundo real. E talvez ainda seria justo terminar o texto com a frase de um grande artista, como segue

“Gostaria de pintar retratos que daqui a cem anos aparecessem como

uma revelação (…) não por fidelidade fotográfica, mas antes (…) pela

valorização de nossos conhecimentos e de nosso gosto presente na cor,

como meio de expressão e de exaltação do caráter.” (VAN GOGH, 2007, p.48)

A compreensão da bela Arte vai além da forma e da cor, está na natureza expressiva e metafórica de cada detalhe, de cada minúcia. A contemplação da grande Arte permite sensificar a os sentimentos racionais. Assim é a obra bela, assim é a inspiradora Arte Flamenga.

1 Vale lembrar que atualmente a região de Flandres é referente ao Norte da Bélgica, onde se fala o Neerlandês, também conhecido como Flamengo. A região ao sul da Bélgica é chamada de Valônia e as línguas oficiais são o francês e o alemão. – História da Bélgica e o mapa atual. 

2 A história da tinta a óleo 

3 Arte Flamenga vídeo com descrição da obra de Bruegel

4 Obra Os Embaixadores de Hans Holbein 

5 Pintura Anamórfica 

Ana Gabriela Sales

Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.

2 Comentários

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  1. A descoberta da cor

    Mais do que o aspecto histórico, o que mais me fascina é a descoberta da cor.

    Ela não existia. A Holanda era cinza:

    E eis como ficou depois dessa Revolução:

    O impacto na psique do país foi imenso. E os artistas interpretaram esses fragmentos da luz do Sol que finalmente apareceram sobre a Terra.

  2. Muito disso no século 17 foi

    Muito disso no século 17 foi custeado pelo açúcar brasileiro e dinheiro de outras guerras pelo mundo. Talvez tenha sido por lá onde eles descobriram a cor. Nem as tulipas sao originárias da Holanda. Ninguém fala nada, mas até os museus onde essas obras estão expostas foram criados com o dinheiro do açúcar, com a tomada do Brasil e mortes de brasileiros. A exploração da pior forma possível, guerras e morte de negros nos engenhos para produzir mais e mais. Gostaria de ver algo sobre isso um dia. Talvez os brasileiros tivessem mais noção do que é ser um povo explorado, usado e debochado e parassem de entregar o futuro da sua Nação. O atraso eterno para custear a beleza em outros lugares.

     

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