Ativos ambientais de verdade, será que existem?, por Luiz Alberto Melchert

Tratar da Natureza como a um bem maior torna todos arrendatários do planeta numa hierarquia que o capitalismo teima em negar

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Ativos ambientais de verdade, será que existem?

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

O passado é História, o presente é um átimo e o futuro depende de nossas decisões. Assim, o ser humano só pode administrar o futuro, viver o presente e lamentar o passado. No último caso, seja pelos fracassos que nos tornam ressentidos, seja pelos sucessos que nos trazem saudades. A contabilidade tem sido um método para registro da história de uma instituição. A análise de balanço serve tão somente para deixar mais nítida uma fotografia. O grande desafio das ciências contábeis é, sem dúvida, passar do estático ao dinâmico.

Cinquenta anos atrás, as primeiras aulas de contabilidade, destinavam-se a explicar dois conceitos, o de azienda e a distinção entre atos e fatos administrativos. O conceito de azienda foi substituído, sem sobras, pelo de instituição. Os fatos administrativos eram os negócios já realizados, seja pelo pagamento, no regime de caixa; seja pelo reconhecimento de haveres e obrigações. Consideravam-se os contratos  como fatos administrativos e não se contabilizavam. Mais tarde, os direitos, mesmo que futuros, passaram a ser contabilizados. O aluguel de um imóvel, por exemplo, garante sua posse primária,  que é um ativo, ao passo que as parcelas correspondem a um passivo. Na medida em que o tempo passa, abate-se do ativo pela permanência efetiva, enquanto o passivo é reduzido pelo pagamento dos aluguéis, até que o contrato se extinga, o que é o conceito de exaustão.

Notem que o exemplo acima põe o direito de uso como um ativo, não como um bem. Isso implica em que todos os bens sejam parte do ativo, mas nem todos os ativos são bens. Um arrendamento de terra, a ser pago em sacas de soja, por exemplo, tem valor de uso, mas não de troca porque esse contrato, por suposto, só pode ser cumprido pelos contratantes. É que ele envolve situações que só podem interessar a ambos. O vazio sanitário, que é o período obrigatório de descanso da terra entre dois plantios, fica com quem, com o rentista ou com o arrendatário? A resposta está no contrato, tornando-o individual e, na prática, intransferível.

Se o arrendatário for um criador de gado, terá interesse em levar seus animais para o pasto que se forma no vazio sanitário. Se, ao contrário, o criador for o proprietário da terra, ele é que se beneficia do período entre as safras de soja. O alvo da negociação é o número de sacas de soja que o arrendatário entrega ao rentista, podendo ser maior ou menor consoante o grau de uso que o primeiro fará do imóvel. Se o arrendatário for o criador de gado, poderá dar mais sacas de soja por hectare, remunerando o proprietário pelo ganho que tem em arrobas de carne.

Ocorre que a terra, antes de ser de Fulano ou Cicrano, é do país. O país, antes de ser país, é Terra, que pertence a todos os seres vivos, vegetais e animais humanos ou não. Assim, quando se fala em conservação da Natureza, que é o bem maior, o que está em cheque é o conceito de propriedade em si. Tratar da Natureza como a um bem maior torna todos arrendatários do planeta numa hierarquia que o capitalismo teima em negar, por mais que isso seja óbvio.

Assim, o que conhecemos hoje como valor do imóvel não passa do pagamento da cessão de uso passada de mão em mão pelo contrato tácito com o planeta. A questão é como remunerá-lo pelo ganho econômico que que o detentor desse arrendamento faz da porção da face da Terra de que se apropriou.

O primeiro passo é entender que a “nave nossa mãe” – como diria Caetano – deve ser encarada como uma instituição de que todos são sócios, independentemente da sua condição como vivente. O segundo passo é entender que a propriedade das porções de sua face não pode ser alvo de ideologia, ela simplesmente não existe, somente a posse. Pode-se discutir se a posse é ou não inalienável, se ela pode ou não ser individual e negociável, ou mesmo se é obrigatoriamente coletiva, mas não se pode argumentar tratar-se ou não de propriedade. O terceiro passo, a fim de remunerar o planeta pelo uso que fazemos dele, é transformar esse bem maior num ativo mensurável, que é a ideia de balanço ambiental que os contabilistas mais atualizados discutem mundo afora. Será que estamos trilhando o caminho correto? Será que a tentativa de regulação do mercado ambiental está pondo o carro à frente dos bois? Mercados não se estabelecem por leis, mas pela necessidade humana. Enquanto o ser humano não entender seu papel na Natureza, não dá para falar em ativos ambientais, especialmente os criados artificialmente.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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