Colaboração premiada: o papel do Poder Judiciário, por Rossana Brum Leques

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
[email protected]

Por Rossana Brum Leques

Do JusBrasil

A lei de combate às organizações criminosas trouxe algumas regras específicas no tocante à atuação do Poder Judiciário na colaboração premiada, sendo expressa ao estabelecer que “é vedado ao juiz participar das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração (art. 4 o, 6 o, da Lei n o. 12.850/2013)” (DE GRANDIS, 2015).

Ao que tudo indica, trata-se de regra que visa a preservação do sistema acusatório, sobre o qual vale repisar:

“Em última análise, é a separação de funções (e, por decorrência, a gestão da prova na mão das partes e não do juiz) que cria as condições de possibilidade para que a imparcialidade se efetive. Somente no processo acusatório-democrático, em que o juiz se mantém afastado da esfera de atividade das partes, é que podemos ter a figura do juiz imparcial, fundante da própria estrutura processual” (LOPES JÚNIOR, 2013, p. 110).

Não por outra razão, antes do advento da lei em análise, Pierpaolo Cruz BOTTINI (2012) criticava a atuação ativa dos juízes nas negociações para a celebração de delação premiada, aduzindo o quanto segue:

“Outra questão controversa é a participação ativa do juiz na celebração do acordo. Há magistrados que intermediam as negociações entre Ministério Público e réu para a delação premiada, e outros que preferem o distanciamento, reservando-se a função de avaliar a extensão da colaboração, sua utilidade e eficácia, para decidir a amplitude do benefício. Também as leis silenciam sobre esse tema. Nos parece que, no sistema acusatório (ou acusatório misto), que se pretende aos poucos implementar no ordenamento pátrio, a participação do magistrado na colheita da prova afeta sua imparcialidade, de forma que seu envolvimento no acordo de delação é desaconselhável”.

A Lei n o. 12.850/2013 melhorou tal quadro, fazendo referência às atribuições do Poder Judiciário. Verifica-se que são funções dos magistrados, de acordo com os parágrafos do artigo 4o da referida lei:

§ 7o Realizado o acordo na forma do § 6o, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.

§ 8o O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto.

Compete ao Poder Judiciário, portanto, analisar a regularidade e legalidade do acordo, conferindo se presentes os requisitos exigidos pela lei (o que inclui voluntariedade e efetividade).

Quando não verificados os requisitos exigidos, dispõe a lei que se deverá “adequar a proposta ao caso concreto”. Trata-se de expressão dúbia, que parece conferir amplitude de atuação, podendo surgir dúvida quanto ao limite de atuação. Como forma de solução, poder-se-ia pensar na doutrina administrativista, sobre o controle judicial dos atos administrativos:

“O ato administrativo, ou, dito mais largamente, todo e qualquer comportamento da Administração Pública, está sujeito aos controles administrativo e judicial. O primeiro é realizado pela própria Administração Pública no exercício do poder de autotutela, que nesse mister age espontânea ou provocadamente, e tem em vista o exame dos atos e comportamentos da Administração Pública no que concerne ao mérito e à legalidade. O segundo é realizado pelo Poder Judiciário, que somente atua se provocado, visando a legalidade de tais atos e comportamentos” (GASPARINI, 2008, p. 119).

No mesmo sentido, Celso Antonio Bandeira de MELLO (2008, p. 982) ensina sobre discricionariedade administrativa e controle judicial:

“Finalmente, este proceder do Judiciário não elimina a discricionariedade e nem pode fazê-lo, pena de agravo à própria lei. Deveras: à perquirição judicial nunca assistirá ir além dos limites de significação objetivamente desentranháveis da norma legal, conquanto valendo-se desassombradamente das vias mencionadas. O campo de apreciação meramente subjetiva — seja por conter-se no interior das significações efetivamente possíveis de um conceito legal fluido e impreciso, seja por dizer com a simples conveniência ou oportunidade de um ato — permanece exclusivo do administrador e indevassável pelo juiz (…)”.

Propõe-se, assim, a aplicação analógica de tais preceitos ao controle judicial da colaboração premiada, como modo de evitar que os magistrados adentrem em questões que envolvem o mérito da negociação em si (que envolvem a discricionariedade conferida por lei ao Ministério Público e ao colaborador).

Não compete ao juiz a discussão das cláusulas ou a satisfação em relação ao conteúdo informado (a não ser no que tange à efetividade, no sentido de verificar que ao menos um dos resultados exigidos pela lei foi realmente produzido).

Daí porque se entende que não deve o próprio magistrado “adequar a proposta ao caso concreto” quando for necessário tangenciar o mérito da colaboração, devendo devolver o caso ao Ministério Público para que faça as alterações devidas, retomando as negociações, se necessário.

Garante-se, desta forma, que os magistrados não transbordem os limites de sua atuação, ferindo, consequentemente, o sistema acusatório, nos termos expostos acima, à medida que restaria afetada a sua imparcialidade.

Além disso, Frederico Valdez PEREIRA (2013, p. 97) também destaca a importância de reduzir a interferência do Poder Judiciário quando da celebração do acordo de colaboração premiada, com o objetivo de evitar a banalização do instituto:

“Acresça-se a necessária redução das margens de discricionariedade judiciária na aferição dos benefícios aos imputados como condição indispensável a evitar uma transformação na cultura judicial que leve a busca de colaboração de corréus como objetivo primeiro da investigação (FERRAJOLI, 1982, p. 211). A maior completude possível na regulação normativa do instituto, incluindo o procedimento a ser seguido na coleta das informações, a correlação entre as revelações do pentito e a graduação do prêmio, são elementos que não poderiam ser desconsiderados no momento de o legislador inserir o instituto na ordem jurídica.”

Isso não significa de forma alguma uma redução do papel do magistrado. Muito pelo contrário. Busca-se com isso garantir o legítimo e importantíssimo papel de controle que deve exercer o Poder Judiciário, sem contudo violar os limites que asseguram sua imparcialidade diante da causa.

E não há utilitarismo que justifique violação ao princípio da imparcialidade, o que parece reconhecer a própria lei, em seu artigo 4o, parágrafo 6o, da Lei no. 12.850/2013.


REFERÊNCIAS

BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Delação premiada exige regulamentação mais clara. Disponível aqui.

DE GRANDIS, Rodrigo. A inconstitucional participação de delegados de polícia nos acordos de colaboração premiada. Disponível aqui.

GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

PEREIRA, Frederico Valdez. Compatibilização constitucional da colaboração premiada. Revista CEJ, Brasília, v. 17, n. 59, jan./abr. 2013, p. 97.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

9 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O papel do Poder Judiciário -“Colaboração” Premiada

    Quando as Instituições se fragilizam, as aberrações se afloram oportunisticamente.

    Num país, onde impera a parcialidade em favor do poder econômicoe e Poítico golpista, não se pode esperar ou confiar na imparcialidade dos operadores da Lei, sem acompanhá-los bem de perto. Tem de conferir e de cobrar os abusos. 

    Isto não é apenas, nosso direito, é antes, nossa obrigação de cidadão.

    A contribuição do post é uma boa estocada na ferida aberta pelo lava jato.

  2. Enquanto o Pais afunda em

    Enquanto o Pais afunda em crise economica, se agiganta a AGENDA NEGATIVA puxada pelo Poder Judiciario.

    Crescimento, prosperidade, desenvolvimento, inovação, empreendedorismo,  investimento, esquece.

    A moda é inquerito, prisão, delação, processo, punição, dosimetria, cadeia, denuncia,  é a ERA DAS TREVAS.

    O Brasil enterra o aventureiro criador de riquezas e celebra a industria do concurso publico e suas criaturas.

  3. estão trocando tudo…

    até as leis do dever estão sendo trocadas pelas do prazer, da sorte e do azar, que nunca tiveram leis, diga-se de passagem

    mas que passsaram a ter com os gilmares, os janots, os cardozos, os cunhas e os moros de todas as instituições e instâncias

    um judiciário desses, como o que temos à disposição de certos politiqueiros, é pior do que sionismo

    é um judiciário exército que está sendo usado contra o Brasil, motivo de ser pior

  4. e quando o juiz é parcial,

    e quando o juiz é parcial, participa da inquisição, orienta tudo?

     ou pelo menos participa do conluio com os investigadores?

    o que ocorre quando o juiz em conluio com os investigadores

    faz parte desses vazamentos tão recorrentes

    e jamais explicados?

    o que acontece com ele?

    o que diz a lei?

    o que acontece se um juiz participa de um

    conluio com alguns agentes públicos

    juntamente com a grande mídia golpista?

    o que aconrtece legalmente a esse juiz se tenta

    através desse conluio derrubar um governo eleito pelo povo?

    há uma lei específica para impedir que esse juiz faça

    tudo isso impunemente?

    há alguma medida  legal que me beneficie para eu

    perca esse medo danado dessa justiça tão seletiva e punitiva?

    alguém poderia argumentar convincentemente se desejaria viver

    indefinidamente num regime judiciário em que só haja esse

    sistema de delação premiada? em que valha para sempre

    a ideia de que, se  a literatura permite, o cara já esta condenado sem provas?

    ou que valha para sempre a tal da teoria do domínio do fato criado

    pela maioria dos que votaram na famigerada ap470, o dito mensalão,

    mais conhecido por mentirão?

    ou que, ao invés do direito garantista,

    prevaleça no seu lugar

    o direito do inimigo,  praticado por alguins doidos varridos do judiciário?

    valerá para sempre esse direito do inimigo. que diz:

    ao amigo, a lei, o direito garantista.

    ao inimigo, cadeia imediata,  mesmo sem provas insofismáveis?

     

  5. mas alguns que apoiavam já começaram a perceber…

    perceber a furada em que se meteram

    conheço vários que estão sendo demitidos das grandes construtoras e que antes sentiam maior prazer em ver políticos petistas sendo perseguidos e punidos. Alguns até paneleiros

    vendendo tudo e tendo que ir morar com pais, mães, sogros e sogras

    1. no início da 470 até comentei aqui…

      eu e muitos outros e outras: Um dia vão te pegar também, cidadão

      e não é que estão pegando mesmo, e de todas as classe$

  6. Para entender a lógica do

    Para entender a lógica do Juiz Moro na Lava Jato – Por Alexandre Morais da Rosa

     

    Por Alexandre Morais da Rosa – 07/03/2015

    O Juiz

    As tentativas de desacreditar o juiz Sergio Fernando Moro em face de seus vínculos familiares e pretensões ocultas não são republicanas. Algumas matérias beiram o sensacionalismo. Moro passou no concurso público para juiz federal, trilhou sua carreira e conta com inamovibilidade e garantias que todos os magistrados em uma democracia precisam ter. O que podemos discutir são as premissas do seu modo de pensar e também suas decisões. Resvalar para sugestões de bastidores é complicado, até porque existem as exceções de suspeição e impedimento que pode(ria)m ser opostas pelos acusados. Além do que, Moro é Professor de Processo Penal na UFPR, tendo sido juiz convocado no STF. Lamentavelmente, no Brasil, quando a compreensão do magistrado é diversa da nossa, muitas vezes, ao invés de discutirmos o conteúdo, parte-se para as qualidades do personagem.

    Este breve artigo pretende demonstrar que Sergio Fernando Moro é coerente com o que pensa no tocante aos pressupostos de aplicação do Direito Penal e Processual Penal. Embora o subscritor pense profundamente diferente em muitos pontos, não pode deixar de reconhecer a sofisticação da abordagem de Moro e também sublinhar que os textos e decisões que publicou no decorrer de sua vida, como juiz e professor, mostram sua coerência teórica.

    O contexto de corrupção no Brasil

    A corrupção e os desmandos no Brasil não são novidade. Boa parte da magistratura brasileira está preocupada com a situação e pretende, de bom grado, realizar a Justiça Social, tendo o foco no combate à corrupção. Em artigo reproduzido pela CONJUR, denominado Considerações sobre a Operação Mani Pulite, em 2004, Moro discorreu sobre os erros e acertos da operação mãos limpas na Itália, sublinhando que “é impossível não reconhecer o brilho, com as limitações, da operação mani pulite, não havendo registro de algo similar em outros países, mesmo no Brasil. No Brasil, encontram-se presentes várias das condições institucionais necessárias para a realização de ação judicial semelhante.” Daí que se pode perceber a sua legítima vontade de dotar o Poder Judiciário de mecanismos aptos ao combate mais rigoroso contra a corrupção. Sua atuação, então, tem sido marcada pela construção de mecanismos legais e compreensões teóricas capazes de proporcionar um combate sério à corrupção. Já que, diz Moro, “a gravidade da constatação é que a corrupção tende a espalhar-se enquanto não encontrar barreiras eficazes. (…) um ambiente viciado tende a reduzir os custos morais da corrupção, uma vez que o corrupto costuma enxergar o seu comportamento como um padrão e não a exceção.” Não parece, portanto, ilegítima a pretensão de Moro em combater a corrupção, tendo em vista o resgate da legitimidade do Estado Democrático de Direito e do Sistema Judicial.

    Os mecanismos processuais

    O processo penal brasileiro e sua leitura constitucionalizada é um caos na doutrina e jurisprudência. Não se sabe, ao certo, quais são os limites aplicáveis, por exemplo, da presunção de inocência e do direito de não produzir prova contra si mesmo. Assim é que Moro, a partir do direito comparado, especialmente o dos EUA, promoveu a construção de seu sistema de aplicação do direito. Tanto assim que em artigo denominado “Colheita compulsória de material biológico para exame genético em casos criminais” (Revista dos Tribunais n. 853, novembro de 2006, p. 429-441), de maneira sofisticada, disse que “é possível concluir que não há base normativa no Direito Brasileiro para um pretenso direito genérico de não produzir prova contra si mesmo. Há, sim, um claro direito ao silêncio, que está contido nesse âmbito mais genérico, mas que com ele não se confunde. Por outro lado, não existem bons argumentos jurídicos, históricos, morais ou mesmo advindos do Direito Comparado que justifiquem a extensão do direito ao silêncio a um direito genérico de não produzir prova contra si mesmo.” Logo, de largada, na sua compreensão, não se sustenta a extensão que boa parte da doutrina confere à presunção de inocência (conferir aqui também) e ao direito ao silêncio, nem o de produzir prova contra si mesmo, dado o interesse coletivo, autorizando, assim, que se possa repensar as táticas processuais para obtenção de informações, especialmente via delação premiada.

    E sua preocupação, dado que magistrado Federal e responsável pela Vara de Combate aos crimes de lavagem de dinheiro e contra o sistema financeiro nacional, em Curitiba, criada, anote-se, com a pretensão de especializar a atuação contra os aludidos crimes, sempre foi no sentido de dotar a legislação de mecanismos adequados para tanto. Ciente das dificuldades probatórias da conduta de lavagem de dinheiro e dos limites legais, a partir da experiência dos EUA e da Espanha, bem assim da normativa brasileira, em artigo de 2008, conclui que “a) o processo por crime de lavagem é independente em relação ao crime antecedente; b) não é necessário provar todos os elementos e circunstâncias do crime antecedente no processo penal por crime lavagem, mas apenas que o objeto deste  tem origem em crime antecedente; c) todos elementos do crime de lavagem, inclusive a origem criminosa dos bens, direitos e valores, podem ser provados através de prova indireta, desde que convincente o suficiente para afastar qualquer dúvida razoável; d) a conexão instrumental entre crime antecedente e de lavagem não implica, necessariamente, unidade de processo e julgamento.” Anteriormente já havia participado da coletânea “Lavagem de Dinheiro: comentários à lei pelos juízes das varas especializadas em homenagem ao Ministro Gilson Dipp”, discorrendo sobre o dolo (eventual) e a denominada “cegueira deliberada”, citando julgados dos EUA, sustenta: “Alguns acusados de crimes de lavagem perante o autor deste artigo, por exemplo, operadores do mercado de câmbio paralelo – os doleiros brasileiros, chegaram mesmo a admitir em seus depoimentos judiciais sua atividade ilícita no mercado paralelo e mesmo a realização de fraudes financeiras para ocultar a identidade ou transações de seus clientes. (….) Atitude da espécie caracteriza indiferença quanto ao resultado do próprio agir. (…) Portanto, muito embora não haja previsão legal expressa para o dolo eventual (…) há possibilidade de admiti-lo diante da previsão geral do art. 18, I, do CP e de sua pertinência e relevância para a eficácia da lei de lavagem, máxime quando não se vislumbram objeções jurídicas ou morais para tanto.”

    A delação premiada e o processo como jogo

    Tenho defendido que se possa compreender o processo a partir da teoria dos jogos (aqui). E, no que toca à prisão cautelar, afirmei que a partir da teoria dos jogos (do dilema do prisioneiro) as medidas cautelares (prisão temporária e preventiva, por exemplo) podem se configurar como mecanismos de pressão cooperativa e/ou táticas de aniquilamento, já que a prisão do indiciado/acusado é modalidade de guerra com tática de aniquilação uma vez que os movimentos da defesa estarão vinculados à soltura, com pressão psicológica e midiática. A ausência de informações do acusado segregado cautelarmente, a existência de boatos e informações desencontradas, aliás, é um dos pressupostos do dilema do prisioneiro. Aprofundo essa questão no livro “A teoria dos Jogos aplicada ao processo penal”, publicado em Portugal e no Brasil.

    Aí é que inspirado nas delações realizadas na operação Mãos Limpas, especialmente da prisão de Mario Chiesa, instado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal, utilizou-se a mesma tática, ou seja, a prisão preventiva como mecanismo facilitador das delações premiadas. Como sublinhou no texto antes referenciado, “sua colaboração (Mario Chiesa) inicial gerou um círculo virtuoso que levou a novas investigações, com outras prisões e confissões. A estratégia adotada pelos magistrados incentivava os investigados a colaborar com a Justiça.” Convencido, portanto, das finalidades democráticas do processo e de que a delação premiada não encontra óbice moral, ao contrário do que pensamos (aqui), entende que o delator não “está traindo a pátria ou alguma espécie de ‘resistência francesa’. Um criminoso que confessa um crime e revela a participação de outros, embora movido por interesses próprios, colabora com a Justiça e com a aplicação das leis de um país. Se as leis forem justas e democráticas, não há como condenar moralmente a delação; é condenável nesse caso o silêncio.” Mais adiante sustenta que: “Por certo, a confissão ou delação premiada torna-se uma boa alternativa para o investigado apenas quando este se encontrar em uma situação difícil. De nada adianta esperar ato da espécie se não existem boas provas contra o acusado ou se este não tem motivos para acreditar na eficácia da persecução penal. A prisão pré-processual é uma forma de se destacar a seriedade do crime e evidenciar a eficácia da ação judicial, especialmente em sistemas judiciais morosos.”

    Embora discorde sobre a legitimidade da delação premiada, não posso negar que existe previsão legal, bem assim de que ao contrário do que muitos dizem, haveria compreensão desprovida de base legal pelo magistrado condutor. Pontuei em outros artigos, com Aury Lopes Jr, também com base na legislação, especialmente a normativa internacional (aqui), a confusão entre o juiz que defere as cautelares, participa da delação e o que proferirá a decisão final (aqui), sublinhando que a delação premiada é um mecanismo processual perigoso diante dos nefastos impactos que pode causar (aqui). Deixei claro que há uma lógica de pensar utilitária e pragmática, incompatível, ao meu ver, com o modelo brasileiro (aqui). Também discordo com o acolhimento da possibilidade de o juiz produzir prova e da compreensão de Verdade Real sufragadas por Moro (no texto Sobre o elemento subjetivo no crime de lavagem, p. 125). Mas nem por isso posso aceitar a afirmação de que se trata de uma aplicação de direito penal do inimigo, como foi sugerido recentemente (aqui), até porque com sua lógica o delator passa a ser protegido. A leitura promovida por Moro do sistema processual é possível, embora não compartilhada pelo subscritor em muitos institutos, como deixei assentado no plano das ideias nos artigos anteriores. Todas as suas decisões estão fundamentadas e há Tribunais constituídos no país para impugnação. A coerência de seu modo de pensar não é compatível com o que penso de processo penal e, todavia, a noção de Moro é a majoritária.

    É verdade que a instabilidade decorrente dos boatos e guerra de notícias plantadas gera o caos de informação e o uso político em momento histórico de lutas políticas. Entretanto, o próprio Moro aponta que a participação da opinião pública é importante para se evitar que a força política e midiática impeça a responsabilização dos agentes violadores das regras, tática que até o momento conta com grande respaldo. Não se sabe até quando. A questão que não se pode controlar, de fato, é a proporção que as informações são manipuladas por terceiros. Para finalizar, cabe dizer que Moro é corajoso e defende, na sua leitura, a legalidade. Podemos concordar ou discordar, mas não podemos resvalar em críticas pessoais. Devemos apostar no Direito e nas Instituições, as quais devem confirmar ou rever as decisões, sem que a mídia possa tomar o lugar do julgamento conforme o Direito. Criticável portanto é o julgamento pela mídia e não o julgamento com a mídia. Direito de informação não transfere o lugar da Jurisdição para o Jornal Nacional. O que não podemos fazer é tornar os magistrados em mocinhos ou bandidos. A diversidade de opiniões é própria da Democracia e a construção do Direito Processual Penal democrática é tarefa que não termina. Concordando ou criticando, devemos superar a visão pessoalizada da aplicação do Direito. O combate à corrupção é tarefa de todos nós e os limites da legalidade também. A história recente das operações da polícia federal demonstra que muitas vezes a volúpia em condenar se transforma em nulidade. E, de uma hora para outra, quem posava de mocinho, transforma-se em vilão. Pela mesma mídia, já que a corrupção virou produto a ser vendido na grade da programação.

    alexandre-colunista

    Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

     

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador