Comissão do agronegócio aprova texto do marco temporal

Relatora rejeitou emendas apresentadas por senadores, e se diz “convicta” que promulgação da Constituição de 88 é “parâmetro apropriado”

Fabio Rodrigues Pozzebom – Agência Brasil

Marco temporal de terras indígenas é aprovado na CRA e segue para a CCJ

Da Agência Senado

Após audiência pública interativa nesta quarta-feira (23), a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) aprovou o projeto de lei que estabelece um marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Foram 13 votos a favor e 3 contrários ao PL 2.903/2023. A reunião foi comandada pelo presidente da CRA, senador Alan Rick (União-AC).

A proposta, que ficou mais conhecida como PL 490/2007, foi aprovada pela Câmara dos Deputados no final de maio, após tramitar por mais de 15 anos. Na CRA, o projeto recebeu voto favorável da relatora, senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), e agora segue para análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Em seguida, caberá ao Plenário votar a decisão final.

Soraya rejeitou as dez emendas apresentadas por senadores. A relatora disse estar “convicta de que a data da promulgação da Constituição federal, de 5 de outubro de 1988, representa parâmetro apropriado de marco temporal para verificação da existência da ocupação da terra pela comunidade indígena”.

De acordo com o texto aprovado, para que uma área seja considerada “terra indígena tradicionalmente ocupada”, será preciso comprovar que, na data de promulgação da Constituição Federal, ela vinha sendo habitada pela comunidade indígena em caráter permanente e utilizada para atividades produtivas. Também será preciso demonstrar que essas terras eram necessárias para a reprodução física e cultural dos indígenas e para a preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar.

No caso de o local pretendido para demarcação não estar habitado por comunidade indígena em 5 de outubro de 1988, fica descaracterizada a ocupação permanente exigida em lei, exceto se houver “renitente esbulho” na mesma data, isto é, conflito pela posse da terra. Assim, terras não ocupadas por indígenas e que não eram objeto de disputa na data do marco temporal não poderão ser demarcadas.

Por outro lado, o projeto altera a Lei 4.132, de 1962, para incluir, entre situações que permitem desapropriação de terras particulares por interesse social, a destinação de áreas às comunidades indígenas que não se encontravam em área de ocupação tradicional na data do marco temporal, desde que necessárias à sua reprodução física e cultural.

O projeto também proíbe a ampliação das terras indígenas já demarcadas e declara nulas as demarcações que não atendam aos seus preceitos.

Na audiência pública que precedeu a votação da proposta na CRA, lideranças indígenas condenaram a PEC, afirmando que os riscos que ela contém vão além da demarcação de terras. Representantes do governo também se posicionaram contra a aprovação, sustentando que o texto avançou sem consulta aos povos indígenas e pode causar mais insegurança jurídica, pois desconsidera anos de trabalho do Executivo mitigando conflitos de propriedade de terras.

Na Câmara, deputados contrários ao marco temporal afirmaram que a aprovação do projeto seria uma ameaça aos direitos dos povos indígenas e traria prejuízos à preservação ambiental. Indígenas chegaram a chamar a decisão de genocídio.

O Supremo Tribunal Federal (STF) também analisa o assunto, para definir se a promulgação da Constituição pode servir como marco temporal para essa finalidade — entendimento aplicado pelo tribunal quando da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

Regras para demarcação e indenizações

De acordo com o projeto, os ocupantes não indígenas terão direito à indenização pelas benfeitorias de boa-fé, assim entendidas aquelas erguidas na área até a conclusão do procedimento demarcatório. 

Também caberá indenização pela terra que for considerada necessária à reprodução sociocultural da comunidade indígena nos casos em que, por erro do Estado, os ocupantes detiverem título de propriedade ou de posse.

O texto estabelece regras gerais para os processos de demarcação, como o acesso público a todas as informações, ressalvados os dados pessoais protegidos pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709, de 2018); a garantia de que todos os interessados serão ouvidos, inclusive estados e municípios onde estiverem localizadas as áreas em demarcação; o direito à tradução de todos os atos para as línguas dos indígenas interessados; e a possibilidade de ser alegada a suspeição dos antropólogos, peritos e especialistas que atuarem no procedimento.

Também fica garantido o direito dos funcionários a serviço da União ingressarem na propriedade particular a ser demarcada a fim de levantar dados e informações, devendo, no entanto, ser feita a comunicação ao proprietário com pelo menos 15 dias úteis de antecedência.

Os processos de demarcação em andamento na data de publicação da lei oriunda do projeto deverão se adequar a ela.

Rodovias e torres de energia

O PL 2.903/2023 garante às comunidades indígenas o direito de usar as terras demarcadas como acharem melhor, mas autoriza a União a também utilizá-las caso julgue necessário para a defesa nacional e para a realização de projetos de interesse público, sem que seja necessário consultar a comunidade ocupante ou os órgãos indigenistas.

Fica autorizada, por exemplo, a instalação de bases militares, a construção de rodovias, a instalação de redes de comunicação, a atuação da Polícia Federal e a construção de edifícios necessários à prestação de serviços públicos, como escolas e postos de saúde.

Nos casos em que as terras indígenas coincidirem com unidades de conservação, essas áreas serão administradas pelo órgão federal gestor, com a participação da comunidade indígena e com a consultoria do órgão indigenista competente.

Isenção de impostos e transgênicos

O projeto prevê a exploração econômica das terras indígenas, inclusive em cooperação ou com contratação de não indígenas. A área não poderá, entretanto, ser arrendada, vendida ou alienada de qualquer forma. 

A celebração de contratos com não indígenas dependerá da aprovação da comunidade, da manutenção da posse da terra e da garantia de que as atividades realizadas gerem benefício para toda a comunidade. 

Não incidirão quaisquer impostos sobre as terras indígenas, sobre o usufruto de suas riquezas ou sobre a renda indígena.

O PL 2.903/2023 altera a Lei 11.460, de 2006, para permitir o cultivo de organismos transgênicos em terras indígenas.

De acordo com o texto, também poderá haver exploração do turismo, desde que organizado pela comunidade indígena, ainda que em parceria com terceiros. A pesca, a caça e a coleta de frutos será autorizada para não indígenas exclusivamente se estiver relacionada ao turismo.

A entrada de não indígenas nas áreas demarcadas dependerá da autorização da comunidade ou dos órgãos públicos competentes, conforme o objetivo. No caso de rodovias que atravessem a área, o trânsito será livre. 

O texto do projeto especifica que o ingresso, a permanência e o trânsito de pessoas não-indígenas na área, ou o uso das estradas e dos equipamentos públicos ali localizados, não poderão ser objeto de qualquer tipo de cobrança por parte das comunidades indígenas.

Reservas indígenas

Além das áreas tradicionalmente ocupadas, o PL 2.903/2023 também prevê outras duas modalidades de terras indígenas: as áreas reservadas e as adquiridas.

As áreas reservadas são aquelas destinadas pela União à posse e ocupação por comunidades indígenas, como terras devolutas, áreas públicas e terras particulares desapropriadas por interesse social. Serão enquadradas assim as reservas e parques constituídos com base na Lei 6.001, de 1973 (Estatuto do Índio).

As áreas reservadas continuarão sendo propriedade da União, mas serão geridas pelos indígenas nelas instalados, sob supervisão da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). 

O texto prevê que essas terras poderão vir a ser retomadas e destinadas à reforma agrária caso se verifique que, em razão da alteração dos traços culturais da comunidade ocupante, elas não forem mais necessárias para garantir sua subsistência a preservação de sua cultura.

Já as terras adquiridas são aquelas que vierem a ser compradas ou recebidas em doação, ou por qualquer outra forma prevista na legislação civil, e serão consideradas propriedade particular. As terras de domínio indígena constituídas com base na Lei 6.001 serão enquadradas como adquiridas.

Povos isolados

O PL 2.903/2023 proíbe todo contato com povos isolados por parte de entidades particulares, salvo se estiverem a serviço do Estado. Agentes públicos, com apoio da Funai, poderão contatá-los para prestar auxílio médico ou intermediar ação estatal de utilidade.

Integridade do território nacional

No relatório, a senadora Soraya Thronicke recomenda a aprovação do projeto na forma como veio da Câmara. A relatora se manifesta favorável à definição do marco temporal de 5 de outubro de 1988 para a demarcação de terras indígenas. 

Para Soraya, não é razoável nem legítimo incluir no conceito de “terras tradicionalmente ocupadas”, previsto no artigo 231 da Constituição, “uma ocupação que regresse a um marco temporal imemorial, ou seja, ocupação a tempo atávico, a períodos remotos, que, no limite, poderia gerar disputa sobre todo o território nacional”.

A relatora também argumenta que a adoção do marco temporal, bem como os demais dispositivos do projeto, atendem tanto ao que determina a Constituição quanto ao entendimento do STF estabelecido em 2013 no julgamento da Petição 3.388/RR, em que foi declarada constitucional a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Terra do Sol, em Roraima.

Decisão polêmica

A proposta é polêmica por restringir a demarcação de terras indígenas àquelas tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. 

Os opositores ao texto temem que a proteção aos povos indígenas e ao meio ambiente fique prejudicada, enquanto os defensores apontam que a matéria pode trazer segurança jurídica e incentivar a produção agropecuária fora das áreas demarcadas.

Durante a votação na CRA, também apoiaram a aprovação os senadores Jayme Campos (União-MT), Tereza Cristina (PP-MS), Zequinha Marinho (Podemos-PA), Jorge Seif (PL-SC) e outros. 

A senadora Tereza Cristina disse que o marco temporal é um avanço e vai aumentar a segurança jurídica no país. Jorge Seif avaliou que o texto aprovado está de acordo com a Constituição.

Defenderam a rejeição da proposta os senadores Humberto Costa (PT-PE), Fabiano Contarato (PT-ES) e Jaques Wagner (PT-BA).

Contarato avaliou como inconstitucional o texto aprovado. Humberto Costa informou que a bancada do PT é contra a aprovação do projeto por acreditar que vai aumentar a insegurança jurídica e será prejudicial aos povos indígenas. Ele afirmou que o projeto “é, em todos os aspectos, nefasto para o nosso país”.

Segundo o texto aprovado, de iniciativa do ex-deputado Homero Pereira (1955–2013), para serem consideradas terras tradicionalmente ocupadas, será preciso comprovar objetivamente que, na data de promulgação da Constituição de 1988, essas áreas eram ao mesmo tempo habitadas em caráter permanente pelas etnias, usadas para atividades produtivas, necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural.

Debates

O marco temporal tem sido tema de audiências públicas e de discursos no Senado. Em um debate na Comissão de Direitos Humanos (CDH) no final do mês de junho, os debatedores classificaram o projeto como inconstitucional. Segundo os especialistas que participaram da audiência, a Constituição de 1988 não determina um “marco temporal” para que um território possa ser demarcado como indígena, o que faz com que o projeto possa ser entendido como inconstitucional.

No Plenário, alguns senadores também já se manifestaram. Ao citar o julgamento do marco temporal no STF, o senador Marcos Rogério (PL-RO) demonstrou preocupação com o direito de propriedade. Já o senador Jaime Bagattoli (PL-RR) pediu urgência na votação da matéria.

— Esse marco temporal precisa ser votado. Nós sabemos que nós temos que respeitar os nossos indígenas, mas também precisamos entender que nós não podemos causar um problema, causar uma guerra no campo sobre as propriedades que estão lá há mais de cem anos, com títulos e que foram escrituradas. Esses produtores têm direito também a suas propriedades — afirmou o senador, em discurso no final do mês passado.

Outro parlamentar a favor do marco temporal é o senador Magno Malta (PL-ES), que já declarou no Plenário que vota a favor do projeto de lei.

Redação

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