A cultura do estupro e as redes sociais

Cultura do estupro, medidas paliativas do governo e as redes sociais como espelho da sociedade

Muito tem se falado de cultura do estupro. E muito tem se negado sua existência. É comum ver o discurso de que mulheres precisam “se dar o respeito”, “vestir-se decentemente” ou “não se portar como uma vagabunda” para evitar o crime. Essa é a famosa culpabilização da vítima, um dos recursos mais usados e bem aceitos na cultura do estupro.

A questão é que estupros acontecem em países em que mulheres vestem burcas. Estupros acontecem no exército e na marinha, com mulheres uniformizadas respeitando normas rigidas. Com mulheres que acabaram de sair da igreja. E pesquisadores dizem que o estuprador tem desejo por poder, não só pelo corpo feminino. O sexo é um detalhe, a subjugação é o clímax.

A cultura do estupro se dá quando a mídia, por exemplo, exibe anúncios em que mulheres são violentadas como se isso fosse algo normal. O site Business Insider lista, regularmente, anúncios que estimulam ou desqualificam a violência contra a mulher. Em um deles, do governo do Egito, representa a mulher por meio de um pirulito com plástico e outro sem, sendo atacado por moscas (representando o homem), com a seguinte frase: “Você não pode parar (as moscas), mas pode proteger-se”.

Ao mesmo tempo que grupos lutam para discutir o exemplo social dado a meninos e a cultura que desqualifica a liberdade feminina e dá liberdade para que o homem acredite que nunca poderá receber um não como resposta, o número de casos de estupro, em São Paulo, por exemplo, bateu recordes com uma média de 37 casos por dia. TRINTA E SETE mulheres sofrem abuso sexual POR DIA.Assustador, não?

Resolver o problema não é simples. É necessário mudar uma cultura ligada a interesses financeiros e de controle de massa. Uma cultura que prefere deixar as pessoas ignorantes, odiando umas as outras, para que não se importem com problemas grandes de interesse comum. Mas enxergar o problema e começar trabalhos para transformar a realidade é a saída.

No entanto, ao invés de mostrar que o estupro é errado e que estupradores serão punidos severamente, o governo de São Paulo resolveu criar uma cartilha para que a mulher se proteja. É claro, a vítima deve ser responsável para evitar seu abuso – que em grande parte dos casos é feito por pessoas conhecidas e do seu convívio. Quão maluco é tudo isso?

Imagine que você está atravessando a rua, na faixa e com o farol de pedestres verde, é atropelado. Jogado a uma distância assustadora, tem diversos ossos quebrados e sequelas para o resto da vida. As autoridades dizem, diretamente a você, enquanto você ainda sente as dores, ali, no chão, que o motorista que fez isso está errado, mas que você deveria ter prestado mais atenção antes de passar por ali. É assim que é tratada uma mulher vítima de estupro.

A tal cartilha terá ainda um perfil do homem que estupra, criado a partir de estudos. O que me soa bastante perigoso, já que você, homem correto, pode se parecer com um estuprador e passar a ser alvo de medo feminino.

Nós, mulheres, sabemos como nos proteger. Sabemos que andar por uma rua escura e sozinha não é aconselhado por especialistas em segurança. Mas quem vai nos buscar no ponto de ônibus depois da faculdade? Quem vai passar a noite toda, na balada, ao nosso lado, impedindo que babacas nos puxem pelo braço ou pelo cabelo? Devemos aprender a lutar para agredir quem fizer isso? Deixar nossos estudos, trabalhos e diversão de lado? Nos tornar violentas, agressivas e desconfiadas porque a sociedade prefere isso a tirar os privilégios que seus homens têm? Não é o que queremos.

Em uma sociedade igualitária homens e mulheres têm os mesmos direitos e deveres, as mesmas liberdades, o mesmo respeito. Isso a gente quer. A gente quer não ter medo. Queremos poder andar o caminho para casa pensando na vida e não no momento em que alguém vai aparecer do nada e nos assediar.

Nos últimos dias postei aqui na coluna uma pesquisa que diz que homens enxergam mulheres de biquini como objetos. Os comentários, assustadores como de costume, diziam que se a mulher está mostrando o corpo é assim mesmo que será vista, mas poucos se atentaram para a parte mais assustadora do texto: ele diz que quando certos homens veem a pele feminina passam a ignorar seus direitos e vontades, acreditando que ela é apenas um objeto para satisfazer seus desejos e fantasias. Essa é a base da cultura do estupro sendo inserida no cérebro das pessoas. A ideia de que suas vontades são superiores a vontade do outro. É aí que nasce o estuprador.

Quando falamos sobre esse assunto muita gente diz que é exagero, mas se formos ver o que acontece nas redes sociais, o espelho da nossa sociedade na internet, ficamos assustados. O Facebook, rede mais popular do mundo, tem passado por retaliações sem fim. Sua política de deletar conteúdo ofensivo ignora totalmente apologias ao estupro.

Na última semana um vídeo que mostra uma garota de 12 anos sendo estuprada por três adolescentes ficou na rede por um bom tempo antes que a enxurrada de e-mails conseguisse convencer a equipe de Zuckerberg o quão impróprio o ofensivo era aquilo.

Nesse meio tempo, pessoas de todo o mundo, compartilharam as imagens ofensivas com as quais têm sido bombardeadas diariamente, sem pedir. Os anúncios da rede colocam páginas que glorificam a violência contra a mulher ao lado de grandes empresas que lutam por seu bem-estar. As empresas já começaram a pressionar o Facebook para que imagens desse tipo sejam tiradas do ar o mais rápido possível e que a vista grossa sobre elas acabe.

Banalizar o discurso da violência é o mesmo que glorifica-lo. É mostrar que, no mundo real ou virtual, você não será punido ao violentar – sexualmente ou não – uma mulher. A liberdade de expressão não abre precedente para que o discurso de ódio seja aceito, eles são coisas bastante diferentes. Assim que sua liberdade passa a ofender e machucar outra pessoa, ela se torna crime.

Enquanto aceitarmos que a luta contra a violência seja desqualificada nos meios de comunicação, que as punições sejam em relação a vítima, que é cerceada de seus direitos, e que os projetos contra estupro e abuso sejam focados no comportamento das vítimas ao invés de educar e punir os culpados, estaremos apostando em uma sociedade em que o ódio é a moeda de troca aceita.

 

Nós precisamos de ações concretas e não pedaços de papel nos dizendo que as culpadas somos nós, por viver em uma sociedade hipersexualizada e que torna os desejos sexuais do outro mais importantes do que nossa vontade e direitos.

http://br.mulher.yahoo.com/blogs/preliminares/cultura-estupro-medidas-paliativas-governo-e-redes-sociais-104922487.html

Redação

2 Comentários

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  1. Nos debates se pontua cada

    Nos debates se pontua cada problema de forma separada e estanque. O fato é que os crimes que envolve psicologicamente a sensação de poder como corrupção, estupro, atentados e os de rixa têm aumentado vertiginosamente em todo o mundo. Isso demonstra a corrosão do modelo que se mostrou insuficiente para manter a sociedade em equilíbrio pelo menos mínimo. Os movimentos de ruas pelo mundo afora comprova a insatisfação da população, enquanto esses se apresentam de forma clara, mostrando a cara mesmo que cobertas, os corruptos e estupradores se escondem.

  2. Em caso de homotransfobia, culpe a vítima

    [A violência homofóbica, que resulta também em estupros, principalmente contra lésbicas, é construída de forma semelhante. Ao invés de censurar-se o agressor, busca-se circunscrever as vítimas, instá-las a se ocultarem.]

    http://ivonepita.wordpress.com/2013/08/20/em-caso-de-homotransfobia-culpe-a-vitima/

    Em caso de homotransfobia, culpe a vítima

    Ivone Pita

    ImagemOs gays provocam muito. Seja lésbica, viado, travesti ou transexual, a verdade é uma só: gays provocam demais. Riem alto demais, dançam demais, gostam de música demais, lançam moda demais, querem afeto demais, amar demais, trepar demais, serem felizes demais! Eles querem até os mesmos direitos que heterossexuais! Onde já se viu tamanha afronta! Estes gays querem ficar por aí, andando, amando e constituindo família livremente e não entendem como isso é ofensivo? Será que não entendem como isso é um ataque frontal à verdade absoluta da heterossexualidade como única existência possível e saudável? Já não basta poderem trabalhar, estudar, andar pela rua, além disso, pretendem se envolver em política, modificar leis? Ainda querem ficar livres para demonstrações públicas de afeto? Querem ser considerados normais como outra pessoa qualquer? Ora, todos sabem que assim, não é possível, assim, não pode ser.

    Se uma pessoa mata um viado, certamente o viado teve sua parcela de culpa. Deve ter provocado, deve ter cantado o sujeito decente que o matou, deve ter lhe lançado um olhar abusado. Alguma coisa este viado deve ter feito. Com homens heterossexuais é diferente. Nenhuma mulher vai matar um cara somente por ele ter dado em cima dela, passado a mão pela cintura, puxado o cabelo, passado uma cantada daquelas ou ter lhe sussurrado umas sacanagens gostosas. Claro que não, pois neste caso é normal. A mulher que agredir o homem é louca, claro, merece cadeia. O que tem demais em levar só uma cantadinha ou uma agarradinha? Poxa, tem que ficar lisonjeada… Com viado, não, viado tem que saber o seu lugar, tem que ficar quieto. Que negócio é esse de me expor deste jeito? E se pensarem que o camarada que levou a cantada é viado também? Mulher não, se levar uma boa passada de braço pela cintura e lhe tacarmos um beijo roubado, poxa, é só um beijinho. Não acho que seja tratá-la como objeto, bom, só se for objeto do desejo e aí é uma coisa boa.

    O cara tem 18 anos, vai para uma boate, beija na boca e vai logo para cama com um desconhecido, morre com uma facada e todos ficam com pena dele? Mas quem mandou levar o cara para casa? Coisa de viado burro. Com 50 anos? Aí então é coisa de viado carente. Sapatão? Aposto que estava na seca, aí achou outro sapatão doido que lhe enfiou uma faca. O viado que morreu era pobre? Então estava dando um golpe. Era rico? Então estava com um garoto de programa. Algum risco absurdo e desnecessário este viado correu sem necessidade alguma. Ah, se pegou na rua, então, porra, quem mandou estar se prostituindo? Agora morreu de jeito violento. Talvez se não se prostituisse, talvez se não levasse ninguém para sua casa, se não fosse para um motel, se não namorasse, se não trepasse, se não beijasse na boca, se não cismasse em ser feliz, se não fosse gay! Isso é o que dá esta necessidade de ficarem vivendo livremente e fazendo o que bem entendem como se fossem pessoas normais.

    E quando é “aquela mulher de saia curta e top que estava andando naquela rua, naquela hora” e foi estuprada? O que dizem algumas pessoas, senão também que a vítima não deveria estar vestida daquele jeito, nem naquele lugar, muito menos naquela hora? É notório e não sem razão que quando se trata de LGBT ou de mulher cis e heterossexual, a vítima, se não recebe toda a culpa, recebe parte dela. No entanto, o que mais fere é ver pessoas da própria comunidade LGBT e mulheres cis heterossexuais culpando a vítima, numa deprimente e auto-sabotadora reprodução dos discursos e práticas de nossos próprios algozes. Por que razão coisas como irresponsabilidade, inconseqüência, falta de amor-próprio, carência e descontrole são sempre atribuídos a quem sofreu o crime e não a quem cometeu? Pense bem.

    E quando você fica sabendo de um caso de assassinato ou outra forma de violência, envolvendo uma mulher cis heterossexual ou uma pessoa LGBT, como você olha para esta história? O que você deduz e a partir do que? Você tem informações suficientes sobre a vida dos envolvidos? Sobre o envolvimento de ambos? E ainda que você acredite ter boas informações sobre tudo isso, estará certo do que realmente houve? Mais do que isso: como se dá sua interpretação dos fatos? Sob que prisma você analisa o ocorrido? Será que não há resquícios dos discursos e das práticas sexistas, machistas e homotransfóbicos a que somos submetidos todos os dias? Será que não absorvemos e reproduzimos parte da postura de nossos próprios algozes? E quando é um caso de violência entre pessoas cis e heterossexuais, qual é a reação da imprensa, da população em geral e de nós mesmos? Pense sobre isso, pois não se trata apenas de mim, de você e de nossas ações, mas do discurso inferiorizante que nos infligem a todo o momento e que não podemos de forma alguma reproduzir, pois de nada adianta lutarmos e irmos às ruas por orgulho, respeito e dignidade se carregarmos nossos algozes dentro de nós. É preciso urgentemente romper estas amarras!

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