Documentários de Thomaz Farkas na quarentena, por Walnice Nogueira Galvão    

Iniciativa sem paralelo em nossa cinematografia,  compreendeu no total, em sua extensão que iria até os anos 80, pouco mais de trinta curtas e médias metragens.

Documentários de Thomaz Farkas na quarentena

por Walnice Nogueira Galvão                                                                    

Para nossa sorte, existe um portal chamado Canal Thomaz Farkas, que traz biografias, filmografia, ficha técnica de cada um dos filmes à nossa disposição, afora indicações sobre como e onde encontrá-los: ali mesmo. Seria difícil aquilatar hoje o impacto e a relevância dessas realizações, que amealharam prêmios nacionais e internacionais. Vejamos o perfil da empreitada.

Ali deram seus primeiros passos os principais nomes de nosso cinema e foram gravados dezenas de filmes sobre variados aspectos da vida brasileira. Resultaram  34 curtas e médias-metragens – Brasil Verdade (4 filmes, 1965) e A condição brasileira (19 filmes, 1969) – , completadas por mais alguns avulsos. Até hoje impregnar-se de suas imagens é experiência obrigatória na formação de futuros cineastas.

Um primeiro gostinho já fora servido aos fãs por Brasil Verdade (1965), que aglutina quatro médias-metragens de altíssimo nível: Memória do cangaço, de Paulo Gil Soares;  Subterrâneos do futebol, de Maurice Capovilla; Nossa escola de samba, de Manuel Horácio Giménez; e Viramundo, de Geraldo Sarno. Mas isso constituiu apenas uma amostra.

Iniciativa sem paralelo em nossa cinematografia,  compreendeu no total, em sua extensão que iria até os anos 80, pouco mais de trinta curtas e médias metragens. Concebido antes do golpe militar com o objetivo de testemunhar a reforma agrária, reajustaria seus alvos e passaria a filmar o país e seus habitantes, especialmente os pobres, com um cuidado que raiava ao etnográfico. O acervo de imagens dos sertanejos e do sertão que flagraram, longe do pitoresco e do piegas, se tornaria inesquecível e realçaria esse complexo simbólico. A produção de todos coube a Thomaz Farkas, que também dirigiu alguns e foi diretor de fotografia de vários.

A eles devemos registros inestimáveis de costumes e rituais, de protocolos de trabalho ou de devoção. Fixaram memórias “ao vivo”: seu impacto visual e cultural teve efeito de revelação para quem os assistiu. Vêem-se ali a vida do sertanejo, as cantorias, as procissões e as rezas, a fabricação de instrumentos de trabalho, as caçadas, os plantios, o carpir e a colheita, a labuta no cabo da enxada, o curandeiro e as moléstias, a sociabilidade e o lazer, a fé e a esperança, as tradições, as lendas e crendices, a religiosidade, a criação artística e outros fenômenos de nível simbólico, a perseverança em condições de vida ínfimas.

Serviram de primeiras armas para estreantes talentosos e dedicados, que se tornariam cineastas de primeira plana, dando chance a iniciantes, desarvorados em meio à implantação da ditadura, que a muitos deles, inclusive o produtor, atingiu. Exerceram influência única sobre o desenvolvimento da cinematografia brasileira, quando vararam o país entre o final dos anos 60 e o início dos 70, realizando um projeto mas também abrindo-se ao imprevisto, ao que encontrassem pelo caminho.

Integraram o Ciclo  Sergio Muniz, produtor executivo, Geraldo Sarno, Maurice Capovilla, Paulo Gil Soares, Eduardo Escorel e Affonso Beato, que seria diretor de fotografia de Glauber Rocha e faria carreira internacional como parceiro de Pedro Almodóvar. Participaram Francisco Ramalho Jr. e Guido Araújo, o das Jornadas de Cinema da Bahia. Jorge Bodansky chegou a fotografar uns poucos. Vlado Herzog começou na equipe mas não continuou, porque foi assumir estágio na BBC de Londres.

E tem mais. Quando dos festejos do IV Centenário de S.Paulo em 1954, Thomaz Farkas filmara, mas sem som, alguns minutos de um show da Velha Guarda, criada e liderada por Almirante. A sonorização foi iniciativa do Instituto Moreira Salles, que convocou José Ramos Tinhorão, fono-audiólogos e leitores de lábios, e mais a reserva técnica da casa, para restaurar o som. E é assim que hoje podemos ver e ouvir Pixinguinha, a flauta de Benedito Lacerda, a perícia de João da Baiana no prato-e-faca, Donga com sua indefectível gravata lavallière, o próprio Almirante, sem falar em outros. Todos de terno, impecáveis em sua elegância, verdadeiros dândis que eram, tocando, cantando e tracejando firulas “no pé”. Para nossa sorte ainda mais completa, o filminho está incluído no Canal Thomaz Farkas.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

Walnice Nogueira Galvão

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