Freud e a derrota do vitorioso Jogador nº 1, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O roteiro do novo filme de Steven Spielberg não chega a ser inovador. A tradicional jornada do herói ocorre em dois planos que se entrecruzam para produzir um final previsível. Vitorioso no jogo virtual o jogador também se torna vitorioso na vida real.

Mas a vida real, cheia de miséria e alienação, só aparece no filme como uma moldura em que a jornada do herói irá se completar. O sucesso dele consolidará o eterno American way of life que mantém dezenas de milhões de norte-americanos desempregados e morando em favelas de barracas como as que são mostradas no filme. A esperança não é a única que morre, ela é o agente que matou o American dream num país em que a política, a luta coletiva, se tornou uma impossibilidade cultural em razão da indústria cultural explorar exaustivamente a jornada do herói.

 

A cada personagem vitorioso que consolida a vitória de cineastas Steven Spielberg dezenas de milhões de norte-americanos miseráveis continuarão  boquiabertos na frente das telas grandes. Isolados, cada um deles espera uma grande chance que provavelmente nunca ocorrerá. Jogador1 problematiza a alienação, mas o próprio filme não passa de um lucrativo instrumento de alienação.

“Em relação a psicologia do profundo o capitalismo tem muito a ver com a morte e com o medo dela. Também nisso reside sua dimensão arcaica. A histeria da acumulação e do crescimento e o medo diante da morte condicionam-se mutuamente. O capital também pode estar relacionado e ser interpretado como tempo, pois dispondo de dinheiro, uma pessoa pode fazer com que outras trabalhem para ela, ‘Capital infinito’ gera a ilusão de ‘tempo infinito’. Nesse sentido, a acumulação do capital trabalha contra a morte, contra a falta absoluta de tempo. Em vista do ‘tempo de vida’ delimitado compra-se ‘tempo de capital’.” (Topologia da violência, Byung-Chul Han, editora Vozes, Petrópolis RJ, 2017,  p. 46)

O protagonista do filme acumula dinheiro virtual para continuar jogando e adquirindo equipamentos para jogar. Mas seu verdadeiro objetivo é acumular dinheiro para conseguir fugir da miséria. Sua verdadeira miséria, porém, não é material. Ela é ideológica. Wade Watts quer salvar o jogo, ou seja, quer salvar o instrumento de alienação através do qual as pessoas se desligam da vida cotidiana (como dá a entender Steven Spielberg) e se ligam numa dimensão arcaica da realidade em que a acumular substituiu totalmente a idéia de viver bem e conectado politicamente às pessoas que estão na mesma situação com a finalidade de alterar as regras do jogo capitalista.

“É chamado ‘tabu’ tudo aquilo – não só pessoas, como também lugares, objetos e estados passageiros – que for portador ou fonte dessa qualidade misteriosa. Também é chamado de tabu a proibição derivada dessa qualidade e, finalmente, segundo seu sentido literal, algo que é ao mesmo tempo sagrado, elevando-se acima do habitual, e também perigoso, impuro e sinistro.

Nessa palavra e no sistema que ela designa se expressa um fragmento da vida psíquica de cuja compreensão realmente não parecemos ter nos aproximado. Poderíamos pensar, sobretudo, que não podemos nos aproximar dessa compreensão sem nos aprofundarmos na crença em espíritos e demônios, característica de culturas que se encontram num nível tão abaixo.” (Toten e tabu, Sigmund Freud, L&PM, Porto Alegre, 2013,  p. 63)

A indústria cultural norte-americana e sua caixa de ressonância (a imprensa) conseguiu transformar a liberdade artística num verdadeiro tabu. O mercado não enuncia as regras do que pode ou não ser filmado, mas é evidente que a autocensura produz efeitos tão ou mais destrutivos do que a censura imposta por um órgão estatal.

Lançado em 2013, o filme ficção científica Elysium foi muito criticado por sugerir mudanças nas regras do jogo. Steven Spielberg usou o que existe de mais moderno para produzir um filme de ficção científica que é politicamente conservador. Isso explica porque a crítica especializada, ou seja, a crítica financiada com dinheiro neoliberal para promover obras que não comprometem os interesses dos financistas neoliberais, aplaudiu Jogador1. Discutir as raízes da miséria é um tabu, fugir da jornada do herói que reafirma o American dream também.

“A vida nunca foi tão transitória quanto hoje em dia; não há nada que prometa duração e persistência. Diante da falta de ser, o que surge é o nervosismo. Nesse contexto, a hiperatividade e a aceleração do processo de vida seriam tentativas de sair daquele vazio que anuncia a morte. Mas uma sociedade dominada pela histeria do sobreviver é uma sociedade de mortos-vivos que não conseguem viver nem morrer. Também Freud está consciente dessa dialética quando concluiu seu ensaio Zeitgemässes über Krieg und Tod com a seguinte sentença: Si vis vitam para mortem (‘Se queres conservar a vida volta-te para a morte’). É necessário, portanto, assegurar mais espaço para a morte na vida, a fim de que esta não enrijeça em vida de morto-vivo.” (Topologia da violência, Byung-Chul Han, editora Vozes, Petrópolis RJ, 2017,  p. 49/50)

Spielberg é um morto-vivo que trabalha para acumular prêmios e dinheiro. Jogador1 prova que ele continua sendo tecnicamente capaz de matar qualquer cinéfilo de tédio. Os zumbis que dançam no salão do filme dentro do jogo dentro do filme são representações perfeitas das pessoas que vão ao cinema ver sempre o mesmo produto com embalagens visuais diferentes.

Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Lendo o texto do Fábio,

    Lendo o texto do Fábio, ficamos mais convictos de que a indústria cultural norte-americana é uma tremenda arma de dominação.

     

     

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador