Histórias Abertas: entrevista com Kiara Terra

O trabalho desta experiente contadora de histórias revela os temas-chave da dramaturgia e da mediação de disputas.

Aposto que você vai concordar comigo: mais que uma entrevista, um documentário. Um material riquíssimo, que sintetiza uma sabedoria imensa, pertinente para o público geral e para especialistas. Alguns trechos são de cair o queixo. Duvida? Leia! Obrigado, Kiara.

Por Thiago Venco, em O Labirinto do Desacordo

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1) Como você apresentaria seu trabalho com a História Aberta para alguém que nunca esteve presente em uma de suas apresentações?

 

Eu apresentaria o trabalho como uma história interativa.

 

A ideia é, eu trago uma história para contar, e a medida que eu conto, essas histórias acordam histórias que as pessoas viveram.

 

E do encontro entre o que eu trago e as histórias vividas, a gente tece uma história nossa, a gente constrói juntos uma história nossa, colaborativa.

 
 
 


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 2) “O conflito é a base de toda a dramaturgia”: você concorda com a afirmação (com ou sem ressalvas) ou discorda, com ou sem ressalvas?

 

Eu concordo sim.

 

Eu trocaria a palavra “conflito” por “perguntas”, que eu acho que no final das contas é a mesma coisa.

 

São as perguntas que a gente não consegue responder de uma maneira simples, não existe uma única resposta para elas, existem as hipóteses e elas são várias. Se uma pergunta corresponde a um conflito, eu concordo sim, é o motor da dramaturgia, é o que move a narrativa.

 
 

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3) Poderia comentar sobre as técnicas que desenvolveu para fazer o público cooperar com você durante suas apresentações?

 

A técnica consiste em primeiro contar minha própria história. A medida em que eu conto a minha própria história, e eu transformo a minha história do “literal” pro “simbólico”, eu faço um exercício de me despir para quem está assistindo. E nessa história inicial em que eu me conto para essas pessoas, eu coloco com muita clareza qual é nosso fio condutor, que é a ideia da improvisação.

A medida em que eu conto a minha história, e a maneira como eu faço isso é uma maneira cheia de perguntas, eles vão comigo completando as perguntas, trazendo imagens, fazendo essa história. Então esse início é muito vinculador. Ali a gente vai construir, eu vou contar pra eles o que eu vim fazer, eles vão confiar em mim ou não para a gente fazer isso juntos, e a gente começa a desenvolver um contato, ou um encontro a partir daquilo.

 

Então a técnica primeira, a primeira coisa pra pedir cooperação é muito simples: sentem um pouco mais perto de mim e eu vou contar pra vocês de onde eu vim.

 
 



E é muito curioso, porquê mesmo contar de onde eu vim, que seria uma coisa muito pessoal, acontece de modo interativo, acontece de modo permeável, eu vou contando e vou colocando perguntas sobre essa minha história. E aí muitas pessoas falam “Nossa, mas isso é verdade”? Bom, tem uma camada de verdade, tem uma camada de ficção, mas o jogo está estabelecido ali naquele começo, que é – “vamos falar de perguntas difíceis, mas a gente vai ser o autor dessa história, a gente vai trabalhar um pouco com um dado que é nosso e um pouco com a noção de autoria, de escolha, de improvisação, de costura entre as ideias das pessoas, então esse momento inicial é muito potente.

 

Eu acho que um convite bem feito no início garante que as pessoas cooperem e que as pessoas entendam qual é a ideia.

 
Kiara com sua filha Luiza
 

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4) Você considera relevante para seu processo narrativo expor claramente os objetivos de seus personagens?

 

Então, o negócio é o seguinte… como é interativo, os objetivos dos personagens se constroem no encontro com aquelas pessoas. Eu já comecei uma história com uma adaptação e com uma preparação, com um trabalho “de mesa”, em que eu entendia muito bem qual era o objetivo de cada personagem – e quando eu cheguei “ali”, no encontro daquelas pessoas com aqueles personagens, as personagens ganharam outra dimensão, viraram outra coisa, ganharam outros objetivos.

 

A ideia é: cada personagem carrega algumas perguntas; eu alcanço parte dessas perguntas; outras perguntas se estabelecem na relação desta personagem com a história, e outras perguntas nascem do encontro do que aquela personagem diz pro que aquela pessoa viveu. Então eu não tenho cercado claramente todos os objetivos daquela personagem, eu não tenho como fazer essa apresentação, porque eu não tenho! Eu não domino tudo. E quando eu trago, eu trago aquela personagem, a pergunta que ela carrega e eu vou construindo a gama de perguntas e hipóteses que eu já tenho; é como se fosse uma coleção, eu vou contando pra eles qual é a minha coleção.

 


Vou dar um exemplo:

 

Uma mãe tem um filho muito certinho e o outro filho é muito mais estrambelhado, mais distraído – então eu tenho esse contraponto – bom, a primeira coisa é o lugar dessa mãe na história, que é uma mãe muito pobre. A pobreza dela é fundamental pra história andar – é uma das “perguntas”. Mas essa mãe tem esses dois filhos então a gente começa: eu apresento para essas pessoas uma gama de perguntas relacionadas a essa pobreza – ou a essa riqueza? É pobre do quê? É pobre em fio de cabelo? É pobre em paciência? É pobre de plástico que não serve pra nada? É pobre em perguntas, é rica em perguntas? Vou construindo e desconstruindo a noção de riqueza e pobreza.

 

Eu não apresento com objetivos claros a personagem, mas eu apresento uma série de perguntas que a existência daquela personagem traz.

 

Eu tenho feito muito (o tema) família. Eu pergunto: “bom, o que é uma família? Quantas pessoas precisa? O adulto fala “três pessoas, uma mãe um pai e um filho”. Eu falei – “mas e família de quatro?” – também é família – “então, de três para mais? Mas peraí, duas pessoas é uma família?” – a maior parte fala não, não é. “Mas se tem um pai, um filho e uma mãe, morreu alguém, é uma família?” – ah, então é! Hoje falaram “mas se a pessoa é sozinha no mundo e tem um cachorro – isso é uma família”. Eu falei: então tá bom! Ou quem tem alguém que é da família, mas não é assim “da fâmíiiliaaa”… ou alguém que não é da família mas, putz, é super da família… o que é uma família? Qual a noção que caracteriza esse nome? Esse nome compreende o quê? É um trabalho de construção e desconstrução.

 

É mais lançar perguntas do que apresentar objetivos claros, porque realmente eu não domino os objetivos com clareza e isso é o que torna a história aberta, permeável, incompleta e viva. O fato de que realmente eu não tenho todos os objetivos, eu não sei todas as noções – e eu preciso “não saber” de verdade, eu preciso ir com perguntas.

 
 

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5) Diante da definição – “ética é o estudo da tomada de decisão, quando estas decisões impactam outras pessoas, seres vivos e meio ambiente” – você acredita que seus personagens apresentam dilemas éticos, ou seja, precisam tomar decisões, cientes de que suas decisões poderão impactar os outros?

 

Ah, sempre, sempre! Isso sempre acontece. Acontece em várias camadas;

 

– Tem a ficção, que é a personagem tomando uma atitude que impacta nas pessoas e no contexto;

 

– Tem o narrador, no caso eu, que estou tomando decisões o tempo inteiro, no sentido de ouvir todo mundo, de selecionar o que eu ouvi, de colocar ou não na história, e essas decisões impactam diretamente na narrativa que está sendo construída por todos;

 

– Tem a criança que traz uma pergunta difícil, ou o adulto que faz um relato no meio da história, que é extremamente impactante não só pra narrativa mas também pra realidade e que muda não só a história que está sendo contada mas muda o estado daquelas pessoas que estão ouvindo – e isso muitas vezes é crítico, as coisas mais fortes, mais bonitas, acontecem nesse momento mesmo, da decisão ética – “e aí, você ouviu, vai fingir que ouviu, vai fingir que não ouviu, você vai fazer o quê, que resposta você vai dar, a gente vai conseguir como um grupo acolher o que a pessoa traz, a gente vai dar conta, como é que a gente vai lidar com o que a gente não deu conta sobre o que a pessoa trouxe, seja quem estava ouvindo, seja uma reação ao que a história trouxe, isso é o que é mais especial… esse encontro é o mais potente.

 

Eu acho (quase) que é pra isso que a história interativa tem um sentido. Pra gente perceber o quanto estar junto com as pessoas, construindo uma história, implica em sofrer ou tomar decisões e ações que impactam uns aos outros.

 
 

Exemplos:

 

Uma criança que conta um relato triste.

 

Uma vez era uma história sobre casamento, e aí “ah, o cara perfeito pra casar, duas mulheres solteironas… o cara tinha que ser bonito, rico… e uma menina disse – ‘tinha que ser um bom homem, porque meu pai não é bom para minha mãe’”. Aí as velhinhas do SESC Pompéia começaram a rir de nervoso… todo mundo começou a rir, super aflito… aí eu falei “como é que você chama”; “Maria Fernanda”; “Maria Fernanda, isso que você contou pra gente traz perguntas muito difíceis, a gente não sabe o que acontece na sua casa, mas a gente queria que seu pai fosse um homem bom e isso é…. você viu que as velhinhas riram? Agradeço às velhinhas pela capacidade de acolhimento da pergunta que essa menina trouxe. Aí eu dei o “bololô*” pra ela e falei “o mundo dos adultos é muito complicado”… “e quem queria mandar no mundo dos adultos?”

 

* (Nota do Autor: “bololô” é um objeto de cena da contação de histórias de Kiara, um amontoado de nós, vários nós embolados, de várias cordas de diferentes espessuras)

 

O dilema ético, ele carrega a possibilidade de você abrir infinitas perguntas. Quando a gente toca esse lugar, a gente abre muitas… (perguntas). Eu chamo isso de “o caroço da história”. A gente pode cuspir fora o caroço, porque o caroço incomoda, ou a se gente encarar o caroço e plantar a gente dá origens a novas possibilidades, novas perguntas, novos encontros potentes.

 

Então quando a gente chega nesses lugares, e as vezes eu que trago esse lugar, as vezes a criança traz, as vezes é o inesperado absoluto…

 
 

Uma vez entrou um doido na história, foi super forte, um maluco apareceu, assistiu um pedaço, eu fiquei super angustiada, ele saiu, voltou com uma flor, ele entregou a flor para uma pessoa que estava super longe, para a pessoa delicadamente me entregar, a flor veio chegando, eu vi chegando, vi a flor se aproximar e a pessoa me deu a flor e ele nem viu, nem tava lá mais o maluco. Eu falei, “Nossa, quem é o doido aqui, sou eu ou ele”. Ele levantou em todo mundo a aflição, o descontrole, o medo daquilo e foi embora delicadamente.

 

Então quando acontece, e acho que acontece o tempo inteiro, mas quando acontece de forma potente, e principalmente pelas pessoas que estão ouvindo, é muito forte. Acho que é (quase) pra isso.

 

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6) Você deixa espaço para o público discordar dos rumos que a história está tomando? Se sim, isso é importante para seu trabalho?

 

Essa é a tentativa. Essa é a tentativa maior, é me preparar para deixar esse espaço (para a discordância). É proporcional: quanto mais preparada eu estou, mais eu consigo deixar esse espaço. Quanto menos preparada, mais eu atropelo e tento ter o controle da situação.

 

Esse suposto descontrole, que é esse espaço aberto pro outro discordar ou colocar “coisas”, vem da maturidade do trabalho. Quanto mais amadurecido está o trabalho, o processo, quanto mais história contada, quanto mais embate vivido, mais liberdade para deixar esse espaço acontecer.

 

Mas hoje acontece de um jeito muito legal. Tem muita criança que fala, sei lá… uma criança, isso acontece de um modo que a gente não alcança muitas vezes… por exemplo, um menininho, eu contei uma história no SESC Bertioga, ele virou e falou assim “AHHHH EU ODEIO FINAL FELIZ…” – a história já tinha terminado, ele falou super alto, aí eu olhei pra ele e falei – “Sério!? Como é que você chama?” , ele falou, “Fulano”, eu falei “Nossa, eu também odeio, alguém mais?”, aí todo mundo odiava o final feliz, eu falei “Então vamos fazer o seguinte, vamos fazer os ‘choros’, a gente vai terminar mas vai terminar chorando”. E aí a gente fez os choros, que o choro é um transbordamento entre a felicidade e a alegria, então a gente procurou um caminho do meio.

 
 

Às vezes eu estou contando uma história e acontecem coisas mais radicais. Teve uma vez que era uma história… essa vez me marcou bastante, era uma história do Hocus Pocus, que é meu terceiro livro, que é uma história de “pai” – e era um grupo de primeira série, e tinha uma menininha loirinha sentada na frente, e eu contando a história e ela vira e fala assim “Kiara, minha mãe morreu”. Eu falei “mas como é que você chama”, ela falou “Luiza”, “Mas você fazia essas coisas que eu estou contando com sua mãe”, e ela falou “Fazia”, e todo o grupo se chocou com o que a menina falou, e a Diretora da escola fez uma cara assim de “chocada”, e eu fiquei impactada, falei “Meu, o que está acontecendo, por quê a Diretora está tão assustada?” – mas eu fui seguindo, eu vi que a menina ficou bem, segui. Aí a gente continuou, todo mundo interagindo, tal, aí uma hora ela fala “Kiara”, e eu, “Fala, Luiza”, “Meu pai também morreu” – aí quando a menina diz isso, nada mais é relevante, entende? Tudo perdeu a relevância.

 
 

A história mais importante é a história de uma menina de 7 anos contando pra mim e pra todo mundo que ela não tinha pai e não tinha mãe. Não há nada mais forte do que aquela história., a história vivida trazia mais embate, era mais importante do que a história que eu estava contando. Aquela menina precisava tornar aquela realidade ficção. Precisava simbolizar aquele negócio. Aí eu não sabia o que dizer pra ela, aí eu olhei pra ela e falei “O meu também”. E ela falou “Eu sei, você escreveu essa história porque você tem muita saudade do seu pai”. Assim, ali eu estava pelada, totalmente nua, eu escrevi a história por saudades mesmo, a história da menina encontrou a minha história… o espaço de participação do público ele tem como objetivo duas coisas:

 

A primeira é a construção, é viver a noção de empatia, a capacidade de olhar pra outra pessoa e falar “Meu, eu também, sério que já aconteceu com você, Nossa, eu também, comigo também é assim” – e essa noção de empatia, ela gera uma sensação de pertencimento. A gente não tem a mesma experiência, mas a gente pertence a coisas parecidas, a gente é um par no mundo, a gente não está sozinho, e aí a gente pertence, sei lá, educa alguém pra pessoa pertencer à sociedade, pertencer à escola, pertencer à família, pertencer à um grupo e em última instância, pertencer à si próprio, pertencer à sua própria história e se tornar o autor de sua própria história, entende? Esse exercício de espaço do outro é o exercício que potencializa a nossa capacidade empática.

 
 

E quando isso acontece é uma coisa muito forte, eu fiz agora o “São Paulo Carinhosa” ali no Centro (bairro de SP), e Nossa, foi uma das vezes mais importantes pra mim, porque a gente tava ali na Alameda Glete, um lugar super inóspito, que tem cinco sacos de lixo e cinco pessoas deitadas do lado, em cada esquina, e aí eu tava contando, tinha crianças do “São Paulo Carinhosa”, que são filhos de usuários de crack, que tem um programa da prefeitura e tal, aí isso dentro de um posto policial, e tinha uma grade, e tinha os que tavam fora da grade, meu, “desorganizados”, bêbados, sem dente, “zuados”, viciados, assim, só o pó do pó do pó da rabiola, e aí chegou uma hora em que o “locão” lá do lado de fora fez uma piada, o policial, meu, teve um ataque de riso! Aí a criança teve outro ataque de riso, aí o policial fez outra piada, o outro locão deu outro ataque de riso, chegou uma hora que a gente tava todo mundo igual – não no sentido de nivelar – mas no sentido de que tava todo mundo tentando sabe?, levar a vida, todo mundo acolhendo suas perguntas, olhando seus buracos, as suas frestas e tentando encontrar um sentido “praquilo”.

 
 

Então é muito… aproxima muito, é muito… outra metáfora que eu uso também pra esse tipo de espaço é como se fosse uma “renda” (de tecido), quando eu conto uma história eu tenho vários espaços vazios, que são essas perguntas, ou dilemas éticos, a gente pode chamar assim, e quando eu conto, eu como narradora conto pras pessoas quais são as minhas faltas, os meus buracos, as minhas lacunas, as minhas perguntas. As pessoas enxergam através dos meus buracos os buracos delas também, e aí a gente tece um sentido praquelas perguntas. (Ela me mostra um ornamento rendado atrás dela) – ó, tá vendo a renda aqui atrás? É como se fosse uma renda, a gente não vai vedar os espaços vazios. Mas a gente vai contornar esses espaços com alguma coisa que signifique. E as possibilidades de contorno, de encontrar sentido, são muito grandes. Mas quando eu conto a história você olha o buraco, você olha pela renda, você me enxerga de um lado e eu te enxergo do outro.

 
 

É essa a tentativa… a gente está tentando. Seja a menina lá com o pai, seja o policial, seja o outro doido, quem tá dentro, quem tá fora, como é que faz pra viver essa vida?

 

Algumas perguntas são muito… ah… são muito simples, e ao mesmo tempo, são muito potentes, como essas perguntas se estabelecem a gente fica fazendo hipóteses e é quando a coisa acontece com mais força na história, mais até do que a narrativa, mais até que o fio condutor, encontrar essas perguntas e sustentar o peso que essas perguntas tem, sustentar e não dar uma resposta definitiva, sustentar que são muitos modos de ver, isso é mais forte.

 

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7) Existe alguma relação entre a construção do clímax da história e a formação de um acordo, seja entre os personagens, seja entre você e o público, seja do público com os personagens?

 

São muitos acordos. As pessoas tem que confiar em mim, eu tenho que confiar nas pessoas, tenho que confiar no que as pessoas trazem, eu tenho que confiar na minha capacidade de improvisar em relação aquilo e também de não conseguir improvisar e conseguir aceitar falar “ó gente, não deu, é o que tem pra hoje”, as pessoas tem que confiar na história que eu trago, nas perguntas que eu trouxe de casa, as pessoas tem que confiar nas minhas perguntas e confiar a ponto de colocar as perguntas delas, a gente tem que sustentar todo mundo junto quem é que está ali, se um bebê chora, se um pessoa tem uma pergunta difícil demais, se a gente tem um acordo de sustentação daquilo, são muitos acordos e isso que é o mais forte, é o mais importante e por isso muito vinculador, tenho amigos de longa data porquê é sim muito vinculador.

 
 

E muito sem máscara – a gente tá ali num exercício.

 

Agora é muito curioso ver essa ideia do clímax, porquê eu trabalho com pontos de vistas diferentes, então às vezes eu estabeleço uma coisa, a história tá indo para um clímax e aí no meio da história eu dobro a história no meio – eu viro o sentido da coisa.

 

E aí a gente faz um acordo de olhar pelo ponto de vista do “oooooutro lado” e conseguir entrar em… não em concordância, mas conseguir olhar junto pra esse outro lado.

 

Enfim, por exemplo, sei lá, tem um herói torto, um anti-herói, bem brasileiro que ele é super ingênuo, consegue tudo, mas ele se apaixona por uma princesa muito malvada que rouba tudo dele. E aí no final das contas, ela é tão mesquinha, tão pequena, que ninguém quer casar com ela, ela sofre uma praga e tal, e aí no final das contas ela é tão tosca, ela é tão tosca, tão sozinha que a única pessoa que gosta dela é ele, então ele casa com ela e recupera tudo, toda a riqueza, tudo o que ela tinha roubado, então quem é o mais esperto? Quem tá tirando vantagem, vantagem em relação a quê, o que é ganhar, o que é perder, a história vai na construção desse anti-herói como um tolo, e no final das contas ele é de uma sabedoria de outra natureza.

 

Mas a gente precisa fazer esse acordo passo a passo, para construir e desconstruir.

 

Então o clímax é essa virada, quando a gente abre o leque, e fala “Nossa, dá pra abrir isso de outros jeitos ainda”

 

– que às vezes acontece melhor e às vezes não, às vezes a história fica mais chapada e a gente não chega nesse lugar, enfim.

 
 

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8) “A motivação do personagem é infinita – você sempre pode revelar novas camadas de motivos, descobrir outros ângulos, obter outras respostas para a pergunta – porquê você age como age?”: concorda com a afirmação (com ou sem ressalvas) ou discorda, com ou sem ressalvas?

 

Eu concordo, porquê, por isso que eu disse no começo, quando eu trago uma personagem, quando eu trago algumas perguntas, essa pergunta, essa personagem, isso vai encontrar reverberação nas histórias vividas pelas pessoas. E aí não é uma pessoa só, são muitas pessoas, então são muitas possibilidades de encontro com aquela personagem ou com aquela motivação que a personagem traz, então isso multiplica exponencialmente.

 
 

Às vezes uma personagem ela traz um universo inteiro de uma pessoa. E às vezes a pessoa partilha, e às vezes não, às vezes a pessoa não consegue partilhar e quando partilha, ela abre outra dimensão ainda, então acho que a potencia, e a riqueza do trabalho, é essa multiplicidade de possibilidades

 

Concordo, é infinito. E se eu contar hoje é uma coisa, e se eu contar amanhã é outra e se eu contar pra criança é uma coisa, pra adulto é outra…

 
 

Eu brinco muito com a ideia da “moral da história”, uma vez eu contei uma história de uma tartaruga, era uma história japonesa, que ela perdia a casa 9 vezes e reconstruía a casa 9 vezes, aí quando acabou a história, a história é uma fábula, eu falei “Gente, isso é uma fábula” – aí um menininho falou “Uma fábula tem moral da história”, eu falei, “Ah, tá bom, então qual é a moral da história?” – aí eles falaram “É a persistência! Continue e nunca desista!”, e eu falei, “Teimosia!”, aí um cara falou “Muda de pedreiro!”, outro falou “Vá morar com a tia!”… a gente ficou dando mil possibilidades, aí um menininho falou “Eu sei qual é a moral dessa história…” – ele tinha seis anos. Eu falei “Qual a moral, como é que você chama?” – “Pedro” – eu falei, “Fala, Pedro” – ele falou, “A moral é a seguinte,  NÃO ENLOUQUEÇA”.

 

Aí meu, eu chapei, porque você perder a casa nove vezes cara, é de bater o pino, qualquer um bateria o pino, a abrangência da moral que o menino encontrou é muito maior do que a nossa.

 
 

Então é isso, quantas possibilidades existem? Quantas histórias as pessoas já viveram, e aí a gente tem uma quantidade gigantesca mesmo.

 

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9) A “revelação” é um elemento essencial das teorias do drama e da narrativa: o que é importante ser revelado durante uma História Aberta?

 

O que é importante ser revelado… hm… ai, que difícil, o que é importante ser revelado… (silêncio)… não sei, olha, é uma pergunta difícil, não sei dizer.

 

 

Eu arriscaria dizer que é a disponibilidade para o encontro.

É a capacidade de falhar, de não saber.

Acho que isso é o mais importante de ser revelado.

 

É muito curioso, porquê tem dois lados também, por um lado, eu venho, e revelo, “Olha, o que eu não souber, a gente vai tentar”.

 

Por outro lado, eu conto há muitos anos, então eu tenho muito repertório, e esse repertório me foi entregue pelas pessoas com as quais eu encontrei, que me contaram suas histórias, que me fizeram revelações, que me fizeram boas perguntas, então ao mesmo tempo que eu tenho um lugar de “Olha, confia em mim que a gente vai tentar”, eu preciso muito revelar a minha capacidade de falhar, nesse ponto parece um pouco com a ideia do “clown”, do palhaço.

 
 

A possibilidade de errar e rir de si mesmo tem que ser revelada primeiro, se não a gente vai nadar contra a maré; a gente não vai fazer a “virtuose”, a gente vai fazer a tentativa, o risco, essa disponibilidade pro jogo, pro risco, é o que precisa primeiro ser revelada.

 

Uma criança que você fale “Sabe brincar disso?”, ela fala “Seeeeei”, você sabe, mentira, ela nunca brincou daquilo na vida, mas ela tá dizendo, “Meu, se você me contar eu aprendo isso rápido, eu quero fazer o negócio” – então tem essa disponibilidade pro jogo –

 

– um desejo de encontrar verdadeiramente o que o outro vai dizer, mesmo que isso te desarme, te desestruture, isso acho que é o que primeiro precisa ser revelado. Acho que esse é o acordo inicial mais importante.

 
 

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10) Perceber o mundo; Inquirir-se sobre o que percebeu; Deliberar sobre como agir: ora, todos os animais (e provavelmente as plantas…) fazem isso. Mas talvez (talvez..) só os humanos sejam capazes de argumentar, debater, discutir – buscar a razão, a lógica em suas disputas. 

Qual o lugar da argumentação, do debate, da razão, da lógica nas Histórias Abertas?

 

Eu acho que a “argumentação” é o próprio exercício de se fazer uma história aberta.

 

Mas eu vou voltar ao que você me apresentou primeiro, essa coisa de você perceber o mundo; falar dele; e tomar decisões. Disso ser uma coisa comum aos bichos, às plantas, a todos os seres vivos.

 

Tem uma coisa, que é uma pergunta que tá bem fresca, porque eu venho fazendo algumas formações de professores e me debrucei muito nas histórias de medo e coragem – e mais ainda nas histórias de medo, fiz um circuito longo, e no final desse circuito, a gente chegou junto a uma conclusão que acho que pode trazer luz para o que a gente está falando, que é: tem algumas coisas, alguns medos, que são humanos, primeiro; o medo de morrer, a noção de que você é finito, a noção de que você pode perder quem você ama, a noção de que você pode morrer sozinho, que pode adoecer… essas noções são noções éticas; se eu sei que vou morrer, e me comprometo com minha existência, eu tenho noção do limite, do final.

 
 

Se eu sei que eu posso perder alguém, eu faço vínculos comprometidos, entende? Eu cuido de mim mesmo, eu consigo sustentar o argumento, sustentar a busca por um jeito de viver essa finitude, ou por um jeito de viver essas relações de amor. Eu acho que o que faz que a gente sustente junto a argumentação, eu tenho quase certeza – não sei! – é uma hipótese, mas eu penso muito na consciência da morte, na consciência da finitude dos processos.

 

Como a gente vai acabar, o fato da gente morrer, o fato dessa história chegar ao fim, o fato deste encontro ser finito, o fato da minha própria existência ser finita, o fato de eu envelhecer, tudo isso faz com que a gente acirre a nossa necessidade do outro, a necessidade de se fazer junto, de ouvir verdadeiramente o que o outro tem e que você não alcançou.

 

Acho que essa noção é tão forte, importante e chocante, que no momento em que a gente se debruça sobre uma narrativa, sobre uma pergunta, ou sobre um caminho que se faz junto, a noção da morte aproxima profundamente as pessoas, das pequenas às grandes. Ela deixa todo mundo seriamente comprometido com o processo.

 

Então acho que essa noção, ela, não sei, é alguma coisa que valida ou que traz força para esse exercício argumentativo.

 

Mas o argumento, perceber o mundo, deflagrar com as possibilidades, as escolhas, os caminhos, voltar atrás, ouvir um que cortou a história ao meio e outro que trouxe uma possibilidade, confiar na costura que eu faço disso tudo, a argumentação ela é a própria… é o próprio exercício de se fazer uma história colaborativa, uma história aberta.

 

E o mais bonito é que é a criança age de um modo muito consciente, muito ético, e traz possibilidades que a gente não alcançava como adulto. Ou que a gente já alcançou num lugar, parou de alcançar e “re-alcança” quando encontra aquele grupo de crianças, ou aquela outra pessoa que viveu mais… enfim.

 
 

Mas acredito que a noção da morte, aí sim, o humano, aí sim a gente se diferencia dos animais e das plantas, nessas decisões, a noção, a urgência da finitude do nosso processo, acho que é o que faz com que a gente não se disponha a ficar sozinho no mundo, se disponha a ouvir de verdade o que o outro traz, e (assim) construir uma história com as pessoas – e não só na sua própria lógica, no seu próprio argumento.

 

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11) O que é um problema pequeno para alguém, pode ser um problema grande para outro. É importante para suas histórias trabalhar o contraste na percepção de uns e outros sobre um mesmo fenômeno?

 
 

Ah, muito, muito! É uma das coisas mais curiosas, engraçadas, divertidas, e acho que isso faz com que a gente não chape o processo. É como no cinema, a gente dá um ZOOM na pergunta de um, a gente olha “abertão”, a gente faz um “plano fechado”, aí a gente trabalha o ritmo, aí a gente trabalha a amplitude daquilo, aquilo em relação a tudo, aí em relação a “eu no meu banheiro pensando em tudo aquilo”, acho que os tamanhos das perguntas, o tamanho que a questão adquire em relação a vida de cada um é requinte, é uma delicadeza, essa variação é o que traz humor, sabe, e leveza.

 

Relativizar a pergunta, ver que a pergunta adquire formas, cores tamanhos e importâncias de acordo com quem pergunta ou de acordo pra quem você divide a pergunta que você tem, acho que é extremamente engraçado, e sabe, traz movimento à história.

 

 

 

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12) Para encerrar, recortei um trecho de outro texto do Labirinto do Desacordo, que falava sobre um trabalho de “descristalização” de posições travadas, de quebrar a resistência de ideias “cristalizadas”. Mudei apenas as partes que estão em CAIXA ALTA:

Rever suas crenças e rever suas decisões sobre como agir: acredito que o trabalho de KIARA TERRA com suas “HISTÓRIAS ABERTAS” cumpra este papel de criar uma espécie de “tentação” afetuosa, gentil, para que pessoas entrem em contato com seus limites psicológicos  e possam tocá-los, consciente ou inconscientemente, a ponto de terem a chance de decidir se querem cruzar esta fronteira e experimentar o que há além.

Sem dúvida, o imprevisto, o que não pode ser roteirizado, planejado, tem um papel fundamental para a proposta de abordar pessoas tão… heterogêneas. Não há fórmulas: existe a chance, o potencial, o risco mesmo de entrar numa situação “labiríntica”, confiando na HISTÓRIA escolhida como guia de um encontro cujo resultado é indefinido.

Toda mediação, negociação, disputa, é marcada por este medo do que está por vir, do resultado imprevisível – mas que seja qual for, será marcante e definidor para a vida dos envolvidos. Trabalhar esta tensão de forma poética, portanto, me parece extremamente salutar para que o cidadão, incluindo aí as crianças e jovens, experimentem esse “risco” num ambiente acolhedor, rico em interpretações possíveis de sentido, livre de determinismos. A “descristalização” pode ser vivenciada com espanto, com “extraordinariamento”, com entusiasmo.

 
 

Você concorda (com ou sem ressalvas) ou discorda (com ou sem ressalvas) que este trecho seja representativo de seu trabalho com as Histórias Abertas?

 

TOTALMENTE! É isso, concordo completamente, sem ressalvas. Tem uma coisa que a gente percebe, acho que é… a gente tem uma vida literal. E a gente se relaciona com essa vida metaforicamente. Acho que a gente não consegue ouvir o outro quando a gente insiste em achar que o literal e o simbólico são a mesma coisa. A percepção de que você trabalha metaforicamente, de que você constrói imagens, constrói sentidos e que o outro não constrói os mesmos sentidos, e que esses sentidos construídos te movem pra um lugar ou pro outro lugar, e que você pode se desapegar desses sentidos, e que você pode se contar de outro jeito na vida, é muito potente.

 

Entende, é capacidade narrativa! Como é que você vai se contar, como é que vai contar a própria história, contar o outro, e aí é bonito até a própria palavra, “o que que você vai levar em conta”… o que é que você vai se (…) acho que é exatamente isso, concordo sem ressalvas.

 

É como um processo terapêutico mesmo, com transformação de paradigma.

 

Conheci uma moça, uma canceriana escritora, Gloria Kirinus, que ela fala a coisa mais linda do mundo: a tese de “pós-doc” dela não é a destruição de paradigmas, é “maradigmas”, é a diluição dos paradigmas em novas perguntas, eu falei, “Nossa, é isso!”

 

Encontrar outra pessoa é um susto grande, encontrar outra maneira de ver e conseguir se abrir pra ela, é muito transformador, concordo completamente, faz todo sentido.

 
adoro essa foto
 

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Redação

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