Ilusão até depois do fim…, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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O discurso proferido por Bolsonaro na ONU pode ser considerado um exemplo perfeito da retórica nazista.

Ilusão até depois do fim…

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Não é uma tarefa muito difícil resumir o discurso do presidente brasileiro na ONU https://veja.abril.com.br/blog/radar/veja-a-integra-do-discurso-de-bolsonaro-na-onu/.

A devastação ecológica e o fracasso econômico não podem existir. O sofrimento da população brasileira não deve penetrar no universo em que a administração estatal existe e atua. As perspectivas de futuro são excelentes, tendo pouca ou nenhuma importância a reação do mercado à devastação da floresta amazônica. E, por fim, a destruição programática da natureza equivale à proteção ecológica.

O discurso proferido por Bolsonaro na ONU pode ser considerado um exemplo perfeito da retórica nazista. Nele, as palavras são tratadas como instrumentos mágicos capazes de “criar uma realidade” sem que precisem manter qualquer correspondência com a realidade factual.

Acuado no bunker sob a chancelaria do III Reich, Adolf Hitler continuava a movimentar tropas que não existiam ignorando a realidade do avanço inexorável das tropas do Exército Vermelho. Em 26 de abril de 1944 (quatro dias antes de cometer suicídio) “O führrer continuava levando sua vida ilusória no bunker. Às vezes ainda me pergunto o que ele esperava, porque não decreta logo o fim; não há mais nada para salvar.” (Até o fim – os últimos dias de Hitler contados por sua secretária, Traudl Junge, Ediouro, Rio de Janeiro, 2005, p. 166)

Comentando esse episódio, Joachin Fest afirma que

Supõe-se, claro, que ele gostaria de ter executado o ato final mais grandioso, menos desesperado e, se possível, mais operístico, além de ter dado maior ênfase ao páthos, ao horror e a um louvor apocalíptico. Mesmo assim, foi um declínio de proporções razoáveis e digno de ser lembrado. De qualquer forma, a glória que ele havia buscado durante toda a vida jamais se restringiu à de um líder de Estado, de um soberano à frente de um Estado de bem-estar social ou de um grande general. Para desempenhar cada um desses papéis, além de muitos outros, sobravam-lhe Wagner e o desejo de destruição. Na galeria da Ópera de Lins, ainda adolescente, ele assistiu à ópera Rienzi, que conta a história de um rebelde tribuno da plebe, do fim da Idade Média, que sucumbe à trágica incompreensão do mundo acabando por escolher a morte e a autodestruição. “Foi o início de tudo!”, teria confessado, satisfeito, décadas depois. Agora, ainda mais tarde, o fim de tudo não despertou sentimentos menos eufóricos.” (No Bunker de Hitler – Os Últimos Dias do Terceiro Reich, Joachin Fest, Objetiva, Rio de Janeiro, 2005, p. 140/140)

Bolsonaro provavelmente não viu a ópera Rienzi. Ele confessa, porém, que foi profundamente afetado pelas operações do Exército na cidade de Eldorado no início dos anos 1970. Foi lá que para ele tudo começou. Não sei dizer se Bolsonaro presenciou o tiroteio entre policiais e os homens de Lamarca na praça da cidade, que ocorreu bem próximo à casa do meu avô paterno.

A suposta atuação de Bolsonaro como mateiro do Exército é duvidosa. No mínimo uma prova de incompetência militar evidente dos oficiais que o contrataram, pois Lamarca conseguiu romper o cerco e fugir da cidade.

O fracasso do Exército brasileiro em Eldorado foi coroado por um fato curioso. Segundo me contou um ex-soldado que participou da operação, Lamarca entrou fardado no acampamento militar à noite com um garrafão de pinga para confraternizar com a tropa e obter informações sobre o que o Exército faria no dia seguinte.

Esse acampamento ficava num pasto na entrada da cidade, bem próximo de onde eu morava. Hospedados no hotel da cidade os comandantes da operação só tomaram conhecimento disso no dia seguinte.

Assim como Lamarca iludiu os militares e fugiu do cerco em Eldorado, Bolsonaro foge da realidade acreditando que pode iludir e comandar suas tropas num golpe triunfal para esmagar a esquerda. Que outro significado poderia ter a frase “O futuro do emprego verde está no Brasil” no discurso que ele proferiu? Afina, é fato público e notório que presidente brasileiro odeia a natureza e despreza mortalmente os ecologistas.

O único “emprego verde” que tem futuro no Brasil nesse momento é o emprego verde-oliva. Esse governo civil militarizado aumentou os salários dos oficiais militares e despeja bilhões de reais nas Forças Armadas. Os investimentos em educação, saúde, cultura e produção científica foram reduzidos. As verbas orçamentárias destinadas à proteção do meio ambiente foram cortadas ou simplesmente não utilizadas.

É evidente que a comunidade internacional não acreditará numa só palavra do que o presidente brasileiro disse na ONU. Todavia, o capitalismo financeiro pode perfeitamente se adaptar à realidade paralela autoritária, genocida e ecocida construída no Brasil. Esse perigo existe e não pode ser desprezado. Ao redobrar a aposta nessa possibilidade, Bolsonaro tenta ganhar fôlego para ser reeleito ou provocar uma ruptura violenta.

No pior dos mundos, a incerteza econômica na China https://brasil.elpais.com/internacional/2021-09-20/a-crise-do-mercado-imobiliario-da-chinesa-evergrande-desencadeia-medo-de-efeito-contagio-no-mundo.html pode inflar a bolha financeira antiecológica, genocida e autoritária brasileira. No melhor, nosso sistema financeiro também entrará em colapso assim que os chineses deixarem de cumprir as obrigações decorrentes da importação de alimentos brasileiros.

A chave para o futuro de Bolsonaro não está nas mãos do Exército brasileiro e sim em Pequim. A dependência da parceria comercial com a China, que poderia ser um fator de estabilização do bolsonarismo, também tem o poder de implodi-lo. Essa a única coisa relevante que o presidente deveria ter dito na ONU. Mas ele preferiu continuar a encenação.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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