Francisco Celso Calmon
Francisco Celso Calmon, analista de TI, administrador, advogado, autor dos livros Sequestro Moral - E o PT com isso?; Combates Pela Democracia; coautor em Resistência ao Golpe de 2016 e em Uma Sentença Anunciada – o Processo Lula.
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Lei da Anistia: o início do descaminho, por Francisco Calmon

A política de mentiras, de fraudes e de censura impediu que a sociedade conhecesse as verdades dos subterrâneos daquele período

Lei da Anistia, o início do descaminho

Por Francisco Calmon*

A lei da anistia libertou alguns das prisões, mas nem todos, trouxe centenas de volta ao Brasil, mas nem todos, abriu o caminho para a indenização dos atingidos, mas nem para todos, e desviou do caminho da justiça de transição.

Sem receio de ser simplista, sentencio que a inexistência (ou malogro) da justiça de transição no Brasil é a causa maior do fenômeno bolsonarista e suas deletérias consequências.

Foi com a lei da anistia que iniciou o descaminho para a aplicação da justiça de transição, inobstante ter trazido nossos irmãos brasileiros de volta ao acalanto dos seus lares, ao chão da pátria e à política, ainda que limitada.

A ditadura planejou e executou a entrega do poder. Não houve o falecimento do regime de exceção, nem por suicídio, nem por morte política produzida pela oposição, faltou determinação e estratégica, entrou em coma induzido pelo próprio regime.

A conjuntura na qual se deu a lei foi com um Congresso composto por senadores biônicos (políticos não eleitos, indicados pela ditadura), tesouras da censura ainda afiadas, fuzis engatilháveis, bombas armadas no clarão de alguns quartéis e colocadas na OAB, CMRJ e até em bancas de jornais, e, especialmente, com uma mídia comprometida até a medula com o golpe e a ditadura, que difundiu uma corruptela jurídica, que é a interpretação de crimes conexos. Uma excrescência à doutrina jurídica e uma vergonha à inteligência nacional. Mesmo assim, a lei aprovada o fora pela diferença de míseros 5 votos, o que em definitivo desconstrói a existência de pacto.

O Brasil não pode manter a ditadura de uma conjuntura, porque seria manter a força da tirania e da mentira no devir da história.

O conceito de crimes conexos, art.76 do CPP, não agasalha em nenhuma hipótese a anistia ao torturador. E mesmo que admitisse tal corruptela, há o 2º parágrafo, excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, portanto, assim como foi aplicado a alguns militantes que permaneceram prisioneiros após a lei, também atingiriam os agentes da ditadura, se julgados fossem. Portanto, seja pelo conceito inusual de crime conexo por essa lei, sem força para derrogar o conceito do artigo 76 do CPP, seja pelos “crimes de qualquer natureza“, não recepcionados pela Constituição (EC 26/1985), a Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, não anistia os criminosos de lesa-humanidade. Nem poderia, pois não há respaldo técnico para a autoanistia; se fosse crível, o Estado seria impunível.

Resta desfazer o voto do ministro Eros Graus, quando em seu voto de relator justificou afirmando respeitar o pacto de anistia recíproca, ocorre que pacto não houve. Se houve foi em alguma sala escura e secreta, sem testemunhas e sem provas, e sobretudo sem legitimidade. A Lei de Anistia não foi produto de um acordo, não houve quem representasse com legitimidade a nós vitimas das barbaridades da ditadura.  

Não pode haver respaldo legal para perdoar os agentes públicos responsáveis, entre outros crimes, pela prática de homicídio, sequestro, desaparecimento forçado, lesões corporais, estupro, tortura. Anistiar esses criminosos é tornar a impunidade de crimes de lesa-humanidade perene.

A Lei da Anistia (depois a Constituição de 88 e o Regime do Anistiado Político) obrigou a União à reparação a todos que foram prejudicados profissionalmente pela ditadura, voltando às suas carreiras como se na ativa estivessem permanecidos, contudo, esses diplomas não diferenciam o sofrimento daqueles que, independentemente do prejuízo profissional, sofreram as arbitrariedades do regime. A Lei não indeniza pelo tempo de prisão, tortura, humilhação, estupro, e outras arbitrariedades e suas sequelas, mas, especialmente pelo dano profissional. A fim de minimizar essa injustiça e pela corresponsabilidade, coube, por iniciativa política, aos Estados federados fazerem leis estaduais com esse propósito, ou seja: arcar com o dever histórico e pedagógico de indenizar pelas perseguições ocorridas pela repressão policial-militar em suas jurisdições.

Com as mudanças ocorridas na Comissão da Anistia no governo bolsonarista, em lugar de dar prosseguimento ao exame dos pleitos de anistia, passaram a negar, rever e a cassar, irregularmente, anistias já concedidas.

Com a recente, 15/03/21, súmula 647 do Superior Tribunal de Justiça, que diz serem “imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar”, reabre-se a possibilidade para os atingidos por atos de perseguição política ocorridos durante a ditadura, que lhes causaram danos morais ou materiais (menos os danos profissionais já contemplados pela lei da anistia), proporem ações indenizatórias.  São legitimados para promoverem as ações as pessoas diretamente atingidas ou seus sucessores.

A lei da anistia e a Constituição Federal obliteraram o caminho da justiça pelos crimes de lesa-humanidade ocorridos pelos agentes da ditadura e seus comandantes.  

Diferente da Argentina, Bolívia, Chile, Peru, Uruguai e da Alemanha, o Brasil até o presente ainda não responsabilizou os autores das graves violações dos DHs.

O viés do vitimismo prevaleceu e a indenização foi o meio de tentar levar ao esquecimento. Se a Lei da Anistia foi elaborada pelo opressor, o mesmo não se pode dizer da Constituição de 88. Entretanto, a reparação indenizatória é prevista nas disposições transitórias, artigo oitavo e nono, sem ordenamento semelhante para a constituição de uma Comissão da Verdade com o objetivo de apurar os crimes cometidos pelos agentes da ditadura e seus comandantes.

Somente 33 anos após a promulgação da Constituição foi criada a CNV. E criada de forma precária, como precária foi até o presente a implementação das 29 recomendações de seus relatórios, entregues aos respectivos poderes da República em dezembro de 2014.

A ditadura inaugurada com o golpe de 64 colocou meio milhão de brasileiros sob suspeição, mais de 150 mil investigados, 20 mil torturados, entre eles 95 crianças/adolescentes, entre os adolescentes a mãe de meus filhos na época com 16 anos, além dessas, 19 crianças foram sequestradas e adotadas ilegalmente por militares; 7.670 membros das Forças Armadas e bombeiros foram presos, muitos torturados e expulsos de suas corporações.

Cassaram 4.862 mandatos de parlamentares, 245 estudantes expulsos das Universidades pelo Decreto 477; Congresso Nacional foi fechado três vezes.

Estima-se que mais de 20 mil brasileiros, incluindo principalmente indígenas e camponeses, tenham sido exterminados. Entre os 434 mortos/desaparecidos reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade, 42 eram negros e 45 mulheres.

Ocorreram 536 intervenções em sindicatos; foram colocadas na ilegalidade as entidades estudantis, UNE, UBES, AMES e demais (alguns números são aproximados, outros estão em constante atualização).

Crime continuado por 21 anos seguido de mais 5 de transição a uma nova estação democrática, a qual, como as posteriores, trouxe/trazem em seu ventre os vermes da ditadura militar.

A política de mentiras, de fraudes e de censura impediu que a sociedade conhecesse as verdades dos subterrâneos daquele período: sequestros, aprisionamentos, torturas, estupros, cabeças cortadas, mortes, corpos incinerados, desaparecimentos, extermínios, daqueles que ousaram resistir, por direito universal e dever moral, à tirania.      

Violaram correspondências de toda ordem, sigilos bancários e grampos telefônicos, pregaram o ódio e a delação até entre familiares.

Os inderrogáveis crimes de lesa-humanidade não foram fruto de excessos dos agentes e nem da ação isolada de alguns psicopatas, mas de uma política de Estado.

É este mosaico de horrores que está impune. Ficará até quando? Enquanto perdurar não haverá a justiça de transição, e sem a qual, em qualquer democracia no Brasil, os entulhos da ditadura permanecerão, como (até recentemente) a Lei de Segurança Nacional, a PM, as FAs negacionista, a Justiça Militar, sobretudo a impunidade, e uma visão deformada da realidade histórica, pregada pelos remanescentes e saudosistas da ditadura.

Concretizar as recomendações da CNV, julgar os agentes e seus comandantes que cometeram AS GRAVES VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS em nome e com os poderes do Estado ditatorial, deverá sempre ser perseguido pelas forças democráticas que almejam uma democracia sólida, sem sofrer atentados e riscos de retrocessos como os atuais.

O ministro Luís Fux mantém engavetado, por pedido de vistas, há 11 anos o processo no qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos solicita a rediscussão da Lei da Anistia. Não há justificativa técnica para engavetamento tão longo, precisamos colocar na agenda das próximas eleições o compromisso dos candidatos do campo democrático em assumir a bandeira da reinterpretação da lei da anistia à luz dos relatórios da CVN e da História.

No dia 28 às 17:00 hs o canal pororoca estará realizando uma live comigo na mediação e com os convidados Eugênia Gonzaga, procuradora do MPF e ex-presidenta da Comissão de Mortos e desaparecidos e com Gilney Viana, ex-deputado federal e ex-coordenador da RBMVJ.


* Francisco Celso Calmon, anistiado, ex-coordenador da Rede Brasil – Memória, Verdade, Justiça, membro da coordenação do canal Pororoca.

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Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Francisco Celso Calmon

Francisco Celso Calmon, analista de TI, administrador, advogado, autor dos livros Sequestro Moral - E o PT com isso?; Combates Pela Democracia; coautor em Resistência ao Golpe de 2016 e em Uma Sentença Anunciada – o Processo Lula.

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