Neonazismo e as feridas abertas na sociedade alemã

Do Sul 21

“Ainda não superamos parte do nosso passado”, diz especialista alemã em neonazismo

Prédio do assentamento urbano Utopia e Luta já foi atacado por neonazistas em Porto Alegre | Foto: Utopia e Luta

Samir Oliveira

A alemã Michaela Köttig começou a pesquisar o envolvimento de mulheres em grupos neonazistas no início dos anos 1990, no turbulento contexto de reunificação do país após a queda do Muro de Berlim. Oriunda do movimento feminista, ela queria entender porque tantas meninas estavam aplaudindo discursos de ódio e se engajando em atos propagados por ativistas de extrema direita.

Professora na Universidade de Ciências Aplicadas de Frankfurt, a pesquisadora esteve em Porto Alegre para proferir uma palestra sobre Mulheres, Violência e Criminalidade no Instituto Goethe, que ocorreu na noite de quarta-feira (15). O convite foi do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS.

Em conversa com o Sul21 em uma sala da universidade, Michaela explica que, 68 anos após o fim do regime nazista, as feridas ainda estão abertas na sociedade alemã e tocar no assunto nunca deixou de ser algo extremamente delicado. A não aceitação do passado acaba nublando o olhar sobre o presente e, em muitos casos, contribui para relativizar as ações de grupos que, ainda hoje, reivindicam a doutrina de segregação e ódio defendida por Adolf Hitler.

“Há uma forte necessidade na Alemanha de não se olhar diretamente para os extremistas de direita porque, ao fazer isso, nosso passado estará sempre por perto. Nós ainda não superamos algumas coisas do nosso passado, especialmente o que aconteceu dentro de nossas próprias famílias e de instituições, como a polícia. Cada vez que algo acontece nos movimentos de extrema direita, é como se o passado estivesse escorado nas nossas costas. Então é melhor não confrontar e afastar o assunto. É um processo psicológico que ocorre com indivíduos e com instituições do Estado”, observa.

A professora nunca chegou a ser ameaçada por seu trabalho, mas toma algumas precauções em relação à sua segurança. Uma delas é não permitir, em hipótese alguma, a publicação de fotografias ou filmagens que a identifiquem.

Militantes da extrema direita não gostam de assumir autoria de atentados

Para a professora Michaela Köttig, essa mentalidade acabou permeando as investigações da polícia e do serviço secreto sobre o grupo conhecido como Clandestinidade Nacional Socialista (CNS), que é acusado de ter matado dez pessoas no país – principalmente de origem turca – entre 2000 e 2007. Uma das líderes e fundadores do grupo, Beate Zschäpe, participou de diversos assaltos a bancos e atentados a bomba em bairros de imigrantes na Alemanha. Ela foi presa em 2011, quando se entregou à polícia após o suicídio de outros dois criadores do grupo. Atualmente, a militante neonazista está sendo julgada pela Justiça em Munique.

“Neste caso, todos os setores do serviço secreto perderam. Fizeram tudo o que podia ser feito errado, falharam em cada passo”, critica. Ela acredita que isso se deve, também, às táticas utilizadas pelo grupo, que não costuma assumir a autoria dos atentados.

Organizações buscam conexões internacionais, diz professora | Foto: Utopia e Luta

“Cometeram muitos assassinatos e a polícia estava procurando pelos culpados dentro das próprias comunidades de imigrantes, não dentre as organizações de extrema direita. Não esperavam que os extremistas chegassem a esse ponto”, comenta.

Ela explica que era exatamente isso que os ativistas queriam: espalhar o terror na sociedade, colocando os imigrantes como seres violentos e que poderiam causar danos à população alemã. “Toda a mídia nos dizia que os agressores não eram da extrema direita, que deveriam ser imigrantes. É exatamente isso que os ativistas querem. Eles não gostam de ser conhecidos como autores de atentados. São diferentes dos extremistas de esquerda, que escrevem enormes manifestos para explicar porque cometeram uma ação”, compara.

Mulheres desempenham todos os papéis dentro de grupos neonazistas

Quando Michaela Köttig começou a pesquisar o envolvimento das mulheres com os grupos neonazistas, quase não havia trabalhos que servissem como referência neste enfoque. Ela realizou diversas entrevistas com militantes de organizações de extrema direita para entender o que as levava aquele caminho.

A pesquisadora afirma que, hoje em dia, as mulheres assumem todos os papéis dentro desses grupos, desde líderes em negociações políticas e ações armadas, até o tradicional papel de coadjuvante associado a algum relacionamento amoroso com um líder masculino. “As mulheres desempenham todas as funções que se pode imaginar. Não existem tarefas específicas, a ideologia está acima de todas as ações. Há mulheres engajadas em partidos e trabalhando como líderes e porta-vozes; há mulheres que ficam apenas em casa cuidando das crianças e há mulheres participando de ações diretas nas ruas”, observa.

Ela compara a situação de hoje com o que se vivia no surgimento do nacional-socialismo, na década de 1920. “Nesta época, havia um certo crescimento do movimento das mulheres. Parte de organizações feministas integrou o Partido Nacional Socialista”, recorda.

Pesquisadora alemã Michaela Köttig estuda movimentos neonazistas há mais de 20 anos | Foto: Utopia e Luta

Com a Segunda Guerra Mundial, as mulheres preenchiam as lacunas deixadas pelos homens na sociedade alemã. “Todos os homens viraram soldados e as mulheres começaram a fazer de tudo. Tornaram-se trabalhadoras braçais, transportadoras e motoristas de caminhões. Havia uma ideologia que dizia que as mulheres deveriam ficar em casa cuidando dos filhos e, ao mesmo tempo, havia a realidade demonstrando com as mulheres realmente estavam agindo”, pontua.

Organizações buscam conexões entre si dentro e fora do país

A professora ressalta que existem diferentes grupos neonazistas na Alemanha, cada um com um tipo específico de atuação. Há, inclusive, um partido político, o Partido Alemão Nacional Democrático – A União do Povo. “É um partido que não tem muitos eleitores, mas realiza um intenso trabalho de organização interna, inclusive conectando outras organizações”, explica Michaela Köttig.

Existem também organizações pequenas espalhadas pelo interior do país. “São grupos que agem no seu próprio ambiente social, estão muito próximos a comunidades e geralmente são violentos. Mas alguns também produzem um trabalho intelectual”, afirma a professora.

Há até mesmo uma organização para apoiar os direitos dos presos políticos de extrema direita na Alemanha. “Eles tentam politizar todos os outros presos e levá-los para sua ideologia”, comenta a pesquisadora.

Questionada sobre a existência dos grupos neonazistas no Brasil e no Rio Grande do Sul, Michaela diz não saber se há uma conexão direta com as organizações na Alemanha, mas assegura que esses movimentos têm interesse em uma união a nível global. “O objetivo deles é conectar mundialmente um rede de grupos neonazistas. Eles se consideram um time de heróis mundiais. Não gostam de imigrantes em seus países, mas gostam de estar conectados com outras organizações neonazistas ao redor do mundo”, comenta.

Estratégia é se infiltrar em círculos sociais e espalhar a ideologia “de baixo para cima”

Nos mais de 20 anos em que pesquisa a atuação de grupos neonazistas na Alemanha, a professora Michaela Köttig percebeu que os militantes da extrema direita entendem que é necessário se infiltrar em todas as áreas da vida em sociedade. “Eles são contra a existência de mendigos, de gays, de imigrantes, de negros, de ativistas de esquerda… Todo mundo pode ser um inimigo. Ao mesmo tempo, vem existindo uma espécie de ‘movimento social’ dentro da extrema direita. Existem pessoas e grupos ‘apoiando’ os alemães sem-teto. Há também um movimento pró-meio ambiente – é claro, apenas em favor do meio ambiente alemão”, ironiza.

A pesquisadora não acredita que, hoje em dia, esses grupos possam chegar ao poder no país. “As estruturas democráticas estão fortes. Mas o que realmente temo é que eles estão se infiltrando em cada atividade social possível: no seu time de futebol, na sua escola, como professores, no corpo de bombeiros… Eles se incluem nesses círculos sociais, se tornam conhecidos, fazem amizades e começam a espalhar sua ideologia. A estratégia deles é levar a ideologia para as pessoas de baixo para cima”, conclui.

Luis Nassif

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