Novela carioca fez elogio à “justiça” do tráfico, por Sergio da Motta e Albuquerque

Sergio da Motta e Albuquerque

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Enquanto o Rio de Janeiro mergulha no caos da guerra entre facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas, na novela “A Força do Querer” (Rede Globo), a personagem “Elvirinha” (vivida pela atriz Betty Faria), para resolver um problema de família, pediu a mediação do chefe do tráfico da favela da Rocinha, que fica no Bairro de São Conrado, Zona Sul da cidade. A “justiça” e mediação dos traficantes é conhecida pela população mais pobre do Rio de Janeiro, mas a atitude da “Dona Elvirinha” – mulher abastada que poderia encaminhar suas demandas legais para a Justiça – não encontra justificação alguma em um momento como este que vivemos agora no Rio de Janeiro.

A sociedade carioca, sem propostas alternativas para o inferno em que vive, acabou refém do crime organizado , como os moradores das comunidades (favelas). E agora, aparentemente, também vai adotar o recurso imposto à população mais pobre da cidade: apelar ao tráfico como agente de “justiça” local. É a democratização da criminalidade na cidade. O que dizer, quando uma forma das de entretenimento bastante popular entre a população rende-se ao poder das armas que matam sem distinção em nome do lucro das drogas? O que pensar, quando uma personagem simpática à população faz uso da força do tráfico, para defender seus interesses pessoais? Ainda há Direto e Lei em nosso país?

A ousadia da personagem é exposta ao público como pragmática, necessária e útil. Mas aqui cabe uma questão: o que levou a “Dona Elvirinha” a procurar um poder paralelo para representá-la, e não a Justiça formal do Estado? Por que escolher o poder o mundo do crime? A explicação mais rasteira é a ausência e o mau serviço público da autoridade governamental no atendimento às demandas da população. Esta explicação genérica serve para as favelas do Rio e seus moradores, que não têm recursos para fazer uso da Justiça comum. Mesmo a gratuita. Como explicar a atitude de uma mulher de posses, que não nasceu pobre, que procura um criminoso perigoso, um matador que “senta o aço” na polícia sem medo ou pudor, para representar seus interesses? Até que ponto chegou a nossa decadência moral? O que dizer da cena da invasão do Hospital Publico pela “gang” do tráfico, também exibida na novela com o devido “glamour” maligno? Como os traficantes, de todo o Estado do Rio e pelo Brasil afora reagiram àquelas tomadas tão contundentes, onde policiais foram humilhados diante de toda a população, em uma encenação de uma ação coordenada pelo crime para libertar um colega bandido em custódia do estado? Atos de guerrilha urbana como este não são incomuns nesta cidade.

Não há nenhuma dúvida que a humilhação da polícia foi comemorada em todas as “bocas” onde se vendem drogas em todo o Brasil. O mais curioso é que a novela acontece, em grande parte dos capítulos, na favela (Rocinha) onde se deu o enfrentamento entre a polícia e os traficantes no dia 22 de setembro que tomou conta dos noticiários do Brasil. O enredo trata de uma mulher de um traficante que abandona tudo (inclusive a segurança e o bem-estar de seu filho e sua mãe), para seguir seu marido criminoso em uma escalada de violência e organização do poder paralelo da favela ele, o esposo bandido, mora e pratica seus delitos. Tudo isto, segundo o roteiro, para que ela e seu companheiro bandido saiam da vida do crime. Isso mesmo, leitor(a): trata-se de usar o crime para financiar uma vida “normal”. Parece justo?

A narrativa é baseada em um caso real, mas é uma obra de ficção. Esta trouxe o “glamour”: a imagem do marido bonitão, de pele bem clara a cabelos quase louros, é bem distante da realidade do caso real em que o enredo foi baseado. Assim como o “look” das beldades locais. Fuzis de grosso calibre são apresentados com a casualidade das ferramentas de trabalho comuns, no folhetim eletrônico. Que tipo de pedagogia isto representa para nossas crianças e jovens? É correto e ético um veículo de comunicação explorar a miséria do crime e suas consequências  para vender entretenimento ao povo?

O que dizem e fazem as nossas autoridades? O nosso governador não queria as tropas do exército aqui, até o combate urbano escandaloso da sexta-feira, dia 22 de setembro de 2017. O prefeito da cidade, Marcelo Crivella, deu o golpe final nas UPP’s, ao retirar pessoal das favelas para o patrulhamento das ruas. Por quê Crivella fez isso?

O projeto das UPP’s fracassou, certo? Isto salta aos olhos, mas a transferências de policiais, dos morros de volta às ruas, foi um golpe final nele que a população da cidade não merecia. A proposta das Unidades de Polícia Pacificadora nasceu em dependência direta de uma complementação em medidas sociais de amparo e promoção social da população favelada que nunca aconteceram. Incompleto, o projeto falhou. A população das comunidades do Rio não acredita mas em polícia ou justiça. Prefere, diante da fuga ou a presença pontual e letal do estado nos locais onde moram, apelar ao poder paralelo do mundo do crime.

A Dona Elvirinha da novela da Globo é diferente: fugiu do perfil da maioria da classe média e alta e não quis saber de lei ou justiça do estado. “Ela não resolve nada tão bem coma a justiça do tráfico”, parece ser a mensagem do “script” da novela. Por felicidade, é uma obra de ficção. Um tipo cruel de exploração da miséria do povo em nome do lucro de uma das maiores empresas de comunicação do planeta. De que outro modo poderíamos explicar a opção pela justiça do crime feita por uma mulher da classe alta, além da corrupção de sua alma burguesa decadente? Este é mais um mau exemplo oriundo de um elite de senhores de escravos depravada por séculos de massacres e genocídios. E muita, muita corrupção, em todas as definições da palavra.

Nos anos de 1930, depois de anos de implantação da Lei Seca nos Estados Unidos em 1920 (que proibia a comercialização de bebidas alcoólicas), os americanos viveram uma situação bastante desconfortável com Al Capone e sua quadrilha em Chicago. Os ianques estavam em muito má situação. Havia penúria em massa entre a população naquela época. Capone sabia disso e distribuía, entre os pobres da cidade, uma generosa e bem servida sopa. Era o serviço social do crime organizado a cooptar a população mais pobre.

Tudo mudou depois do massacre na Noite de São Valentim. A população, alarmada, começou a entender que não há um caminho intermediário entre o mundo do crime e a vida em sociedade. Esta é supostamente organizada para deter nossos impulsos mais bárbaros. Não houve glamour para Al Capone, por parte dos produtores do cinema de Hollywood. O sofrimento do povo foi respeitado, e o criminoso, em “Scarface, a Vergonha de uma nação” (1932, Howard Hawks, Realizador) foi representado como deveria. Como o retrato de um criminoso mal-encarado e brutal que o “capo” de Chicago sempre foi. Sem nenhum verniz ou qualquer sinal de ambiguidade moral diante do avanço da criminalidade. Sem conceções de qualquer espécie. Crime organizado não pode ser exibido em cores e imagens bonitas, principalmente em obras de ficção populares com grandes audiências.

Restam ainda dois comentários. O primeiro  deles é sobre a nossa imprensa. Quando procurei informação sobre o conflito na Rocinha e sua relação com o avanço do crime organizado no Brasil, encontrei a entrevista com o jornalista e repórter Misha Glenn, na reportagem de Júlia Dias Carneiro, da BBC (22/9). Glenn é um profissional que sabe tudo sobre o crime organizado no Rio de Janeiro. Mais do que qualquer jornalista local. Tanto que virou fonte para uma repórter brasileira em uma pauta sobre uma realidade que tínhamos a obrigação de saber mais. Mesmo que ela escreva para um jornal estrangeiro, ela é uma profissional deste país e representa, em boa medida, a qualifidade de nossos profissionais da imprensa.

Há algo de muito errado com nosso jornalismo. Deveria haver alguém aqui mais informado que o jornalista britânico. Foi incômodo, encontrar uma jornalista brasileira a entrevistar um colega inglês, que nem mora neste país mas sabe muito mais do que ela, ou qualquer outro profissional daqui sobre a violência no Rio, sua articulações, organizações e correlação de forças no mundo do crime nesta cidade. A verdade é que o nosso jornalismo atual jamais seria capaz de produzir reportagens como as dele, que de alguma forma conseguiu ganhar credibilidade diante do crime organizado no Rio de janeiro.

Nosso periodismo, diante dos avanços do crime, comporta-se como a população: esconde-se e só se pronuncia depois que tudo já aconteceu. De que serve este jornalismo, se um repórter inglês vem aqui e consegue 31 horas de entrevista com o traficante “Nem”, da Rocinha, enquanto nossos profissionais comportam-se como lacaios de seus patrões, esquecendo que não existe jornalismo efetivo sobre crime organizado sem reportagens corajosas e investigações minuciosas? Ninguém no Rio tentou algo como infiltrar-se em uma favela desde a morte do jornalista Tim Lopes pelas mãos de traficantes em 2002. O jornalismo brasileiro, salvo raras exceções, tornou-se subserviente a qualquer forma de poder, seja ele qual for. É servil ao estado por interesses econômicos e políticos e aos traficantes por medo.

Outra questão a comentar é o papel da polícia federal e do Ministério Público (o defensor oficial do Bem-Comum na sociedade) – na questão do crime organizado. Não é difícil prender executivos gatunos em seus apartamentos de luxo em bairros nobres deste país. Não há resposta armada, e todo aquele armamento pesado empregado para escoltar nosso barões ladrões parece deslocado, fora de lugar ou propósito. Onde quero chegar? É muito simples: a mesma força e energia que vem sendo empregada contra a corrupção na política e a rapinagem de nossos cofres públicos deve ser usada contra o crime organizado.

Não fazer estabelecer a relação concreta entre corrupção política e crime organizado tem sido uma grande lacuna do nosso Ministério Público. Isto ficou mais claro quando as investigações no caso do banco HSBC pararam de súbito. Nunca foram adiante, na realidade. Em 2015, a BBC (27/2) soou o alarme:

A onda de suspeitas sobre o HSBC surgiu em 2007, quando Hervé Falciani, ex-funcionário da área de tecnologia da informação da filial do banco na Suíça obteve os dados de 106 mil clientes de alto perfil em cujas contas tramitavam bilhões de euros. Entre eles estavam empresários, políticos, estrelas do showbizz e esportistas, mas também traficantes de drogas e armas e suspeitos de ligações com atividades terroristas.”

O alerta foi dado, mas não recebeu atenção. Em uma abordagem idealista para o Brasil, em algum momento esta realidade precisará ser abordada, com amplitude de recursos e bastante cobertura da imprensa. Como o fenômeno conhecido como Operação Lava-Jato. Porque – eu repito – é muito fácil prender políticos larápios em bairros nobres. Com traficantes a conversa é outra. O combate efetivo contra o crime e sua organização progressiva deve encontrar o mesmo amparo nos órgãos de estado dedicados à defesa do bem-estar da sociedade que a famosa operação. Ou padeceremos em eternidade os males de uma sociedade cruel e organizada como uma hierarquia impiedosa que rendeu-se ao crime e à corrupção na política e na vida social.

 

Redação

5 Comentários

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  1. Perfeito! Precisamos cobrar

    Perfeito! Precisamos cobrar das nossas autoridades isentas e sem rabo preso, uma atuação direta combatendo esses tipos de coisas. Abaixo, a lista de autoridades isentas, imparciais e não liagadas aos crimes:

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    1. Resposta…
      1-SIM,2-NÃO,3-Em parte sim…

      1- Sem dúvida, mas não podemos deixar de lado a mensagem que é transmitida e de como ela é transmitida.
      2- Quando um texto se pretrende crítico, com elementos que levam a reflexão, sem a detruição do interlocutor não vejo como censura.
      3-Em parte porque…bem…tradicante do morro não é classe média com suas questões mal resolvidas…a vida imersa na violência cotidiana,física ou simbólica é bem mais “preto no branco”.

  2. Mais um xadrez para Nassif.
    O que há por trás do espetaculo midiatico Globo/Jungmann ? Ontem, quase toda a programaçao da Globo aberta e da News foi em cima da invasao da Rocinha. Fizeram questão de mostrar a alta tecnologia empregada na operação pelas forças armadas: drones, blindados com paineis de realidade virtual helicópteros, oculos noturnos, etc. O Rio, ontem, estava em clima de final de Fla/Flu no Maraca: todo mundo agarrado na telinha da Vênus Platinada. Acho que essa operacao foi planejada entre a Gloria Perez, Jungmann e o alto comando do exército, também ávido por uma aparição na programacao da Vênus, assim como os aloprados do Ministerio publico e do Supremo. No Brasil, a vida imita a ficção.

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