Patrimonialismo, corporativismo e desenvolvimento, por Sandro Luiz Bazzanella e Cintia Neves Godoi

É pauta patrimonialista do “Centrão”, limitar o avanço de direitos sociais, que impliquem maiores investimentos sociais do Estado brasileiro.

Patrimonialismo, corporativismo e desenvolvimento

por Sandro Luiz Bazzanella e Cintia Neves Godoi

O termo “Patrimonialismo” advém do “latim patrimonium, designando propriedades, bens e haveres amealhados por todos que trabalhavam sob as ordens do pater familiae ou pater familiarum, indicando o chefe de uma família ou o de muitas, que viviam agrupadas sob suas ordens”[i]. O patrimonialismo se caracteriza pela ausência de interesses comunitários, de constituição de esfera pública. O patrimonialismo manifesta por excelência, interesses privados sobre os bens públicos. No contexto dos Estados modernos absolutistas e, sob certas circunstâncias nos Estados constitucionais derivados da condição ex-colônias e, portanto, ainda na atualidade periféricos é estratégia de enriquecimento pessoal e/ou grupal a partir do controle e da apropriação de bens públicos. Desconsidera os interesses coletivos, as exigências públicas, o compartilhamento comunitário de garantias de que os bens públicos, o espaço público, possa promover o desenvolvimento humano e social de uma localidade, comunidade, ou país.

O termo corporativismo designa “doutrina que prega a reunião das classes produtoras em corporações, sob a fiscalização do Estado”[ii]. (Aurélio). Também pode ser definido como: “Atendimento aos interesses de uma categoria, classe, corporação, etc., em detrimento dos interesses públicos ou da maioria (…)[iii].  A colonização portuguesa dos territórios pertencentes originariamente aos povos indígenas e invadidos, nomeados inicialmente pelo colonizador com “Ilha de Vera Cruz” será realizada pelo Estado absolutista português sob a singularidade lusitana de prerrogativas patrimonialistas e corporativistas.

As novas terras invadidas e colonizadas, as riquezas nelas existentes passam a ser “Patrimônio” do rei de Portugal. A administração dos bens e das riquezas constitutivas do patrimônio do rei enseja extenso estamento burocrático encarregado de decidir pelos melhores investimentos produtivos, pela emissão de portarias, decretos e alvarás necessários ao controle da produção, da comercialização, da obtenção de lucros, pela cobrança de impostos. A administração do patrimônio do rei requer a conformação de corporações responsáveis pela administração e controle do patrimônio real.

Sob tais pressupostos, a colonização do Brasil se constitui por parte de elites escravocratas, sob a égide do patrimonialismo e do corporativismo advindo e orientado pelo Estado português. As capitanias hereditárias, a criação das municipalidades como postos avançados para controle produtivo e cobranças de impostos são exemplos clarividentes da condição política e econômica impostas pela metrópole à colônia, mas também vantajosamente replicadas pelos colonizadores, pelos senhores de engenho, pelos traficantes de escravos, por membros da nobreza lusitana e colonial detentoras de títulos nobiliários comprados junto a Coroa.

Estas práticas coloniais se apresentam incrustadas em segmentos privilegiados da sociedade brasileira, marcadamente patrimonialistas. Ou seja, a grupos sociais que se recusam a reconhecer a distinção entre esfera pública e esfera privada. Para estes segmentos sociais, tudo aquilo que se apresenta como patrimônio do Estado “deve” estar necessariamente à disposição dos interesses privados, da iniciativa privada. Estado social, bens públicos, espaço público, participação política, democracia representativa são demandas de segmentos sociais incapazes de competir, de empreender, de inovar. Na perspectiva patrimonialista das elites nacionais, para estes segmentos de fracassados sociais resta pleitear o máximo de Estado como possibilidade de sua sobrevivência.

Aquilo que a imprensa, o senso comum, ou mesmo áreas do conhecimento científico como a Ciência Política, a Sociologia Política, entre outras, designam como “Centrão” no Congresso Nacional, composto por um significativo número de deputados federais e senadores é sob determinadas perspectivas de análise, expressão tácita dos interesses patrimonialistas de grupos econômicos que financiaram as eleições de mandatários das referidas casas legislativas. Para o “Centrão” e os grupos e instituições que representam é questão crucial que as riquezas (patrimônio) pertencentes ao Estado brasileiro e, portanto da nação, estejam disponíveis aos interesses dos referidos segmentos sociais. É pauta patrimonialista do “Centrão”, limitar o avanço de direitos sociais, que impliquem maiores investimentos sociais do Estado brasileiro. Para a casta patrimonialista brasileira que tem no “Centrão”, a expressão de seus interesses pecuniários, trata-se do “Estado brasileiro” oferecer “segurança jurídica”, “garantias” de que cumprirá o “teto de gastos”, pagará os “juros da dívida pública”. Ou seja, que garanta a generosa remuneração do capital privado, mesmo que para isto seja necessário manter na precariedade a vida de milhões de brasileiros, senão comprometer as potencialidades de desenvolvimento local, regional e nacional.

O autoritarismo patrimonialista característica secular das elites brasileiras enseja a conformação do corporativismo no seio do Estado brasileiro. Ou seja, o patrimonialismo impõe a conformação de uma sociedade de castas. As castas superiores concentram (patrimonialismo) a riqueza nacional. As classes inferiores compartilham a exploração, a expropriação e a humilhação impostas pela elite patrimonialista, expressas no salário-mínimo, nos precários serviços de educação, moradia, saneamento básico, entre outros, oferecidos pelo Estado patrimonialista e corporativista. Entre os dois extremos encontram-se grupos sociais intermediários, que não suportam a possibilidade real e cotidiana de serem lançadas no modo de vida das castas inferiores da sociedade brasileira.

E neste contexto de desespero que encontramos profissionais em âmbito público e privado que se agrupam em corporações como forma de assegurar, preservar, senão de ampliar seus interesses pecuniários junto aos setores patrimonialistas que controlam o Estado brasileiro. Uma das corporações mais bem-sucedidas neste contexto é a corporação do judiciário. Salários e bônus desproporcionais em relação às castas inferiores de onde  extraem seus proventos. Intérpretes “imparciais” das leis, das normas, dos regulamentos em benefício das castas patrimonialistas e seus asseclas. Corporação alheia ao controle social de seus atos e decisões.

Outra corporação eficiente na proteção de seus interesses pecuniários são membros das forças militares em suas várias instâncias. Em contrapartida oferecem as castas superiores proteção de seus interesses patrimonialistas, por meio de serviços coercitivos na dispersão de manifestações das castas inferiores, pela agressão à lideranças e movimentos sociais, pela perseguição, violência, tortura e morte de indivíduos e grupos sociais que ousam questionar o status quo das elites patrimonialistas. Exemplo tácito de tal condição foi a ditadura militar de 1964 a 1984, entre outras condutas assemelhadas, ou com variações e desdobramentos em anos recentes.

Não se trata aqui de fazer um inventário das corporações existentes e atuantes na sociedade brasileira em seus modus operandi, mas de reconhecer que a conformação política, social, econômica e institucional advinda da condição secular de colônia de exploração produziu um tecido social e institucional estruturado por castas sociais, cujo ethos escravocrata se manifesta em práticas patrimonialistas, corporativistas, entre outras formas de violência imputadas a população brasileira a margem da riqueza socialmente produzida.

Diante destas históricas condições patrimonialistas e corporativistas constitutivas da dinâmica social brasileira apresenta-se patético pensar, propor, falar sobre desenvolvimento regional, senão nacional. Se analisarmos tal condição, sob pressupostos liberais é preciso reconhecer que as castas patrimonialistas se constituíram como antiliberais na medida em que desconsideram as distinções entre esfera pública e privada; são alheias ao acesso à propriedade por amplos segmentos sociais, como condição basilar para que todo indivíduo possa expandir suas habilidades e, garantir sua liberdade. Mas, também, na medida em que desconsideram os imperativos públicos da lei, e da necessidade de defesa dos interesses coletivos estabelecidos como pressupostos do Estado Constitucional. Por outro lado se analisarmos tal condição sob os pressupostos da igualdade de condições para a conformação de uma sociedade pautada pela justiça social, as castas patrimonialistas são antissocialistas e anticomunistas. Se analisarmos tal condição sobre os pressupostos da manutenção de tradições políticas, legais, institucionais, econômicas e, sociais, constata-se que as castas patrimonialistas e os segmentos corporativistas também são anticonservadores. Práticas políticas, institucionais, sociais e marcadamente autoritárias.

É no âmbito do reconhecimento dos fundamentos da sociedade brasileira expressos no autoritarismo patrimonialista e corporativista que o desenvolvimento apresenta-se como um paradoxo. Mesmo considerando que o desenvolvimento é resultante de inúmeras variáveis, históricas, produtivas, humanas, sociais, políticas, econômicas e legais, internas e externas é preciso considerar aspectos fundamentais para o alcance exitoso de esforços locais, regionais e nacionais de desenvolvimento, entre eles: a) o reconhecimento de uma esfera de interesses públicos e de interesses privados distintos e complementares sob a observância da lei na preservação do espaço e, dos bens públicos, b) a afirmação da justiça social, condição indispensável para afirmação de pressupostos éticos do desenvolvimento; c) liberdade de expressão, de iniciativa por parte dos indivíduos no âmbito dos limites das liberdades dos demais indivíduos e, dos direitos dos mais diversos segmentos sociais. d) preservação e promoção da vida humana e da vida em sua totalidade e multiplicidade de formas de expressão; e) equilíbrio nas relações de poder entre os mais diversos semento sociais. O desequilíbrio nas relações de poder promove violência, submissão, humilhação e exploração humana e ambiental desenfreada.

Enfim, desenvolvimento requer confiança; compartilhamento de ideias em âmbito público e privado; constituição de consensos a partir de dissensos; criatividade que impulsione inciativas de cooperação, de solidariedade, mas também de competitividade que potencialize capacidades humanas individuais e sociais na busca de soluções para as questões locais, regionais, nacionais e mundiais, afinal do local ao global compartilhamos desafios e anseios comuns.

Dr. Sandro Luiz Bazzanella – Professor de Filosofia

Drª Cintia Neves Godoi – Professora de Geografia


[i] Deonísio da Silva. De Onde Vem as Palavras: origens e curiosidades da língua portuguesa.

[ii] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Dicionário da Língua Portuguesa.

[iii] Luiz Antônio Sacconi. Grande Dicionário Sacconi da Língua Portuguesa.

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