Paulistas

Nasci em São Paulo, mas nunca me tornei paulista, saí de lá com 3 anos de idade. Apesar disso, pai e mãe, outros familiares e amigos, me possibilitaram uma visão privilegiada de nosso mais populoso estado, cuja capital, homônima, é a maior cidade nordestina do Brasil. Aliás, isso pude comprovar de perto. Parte da minha família vive na Zona Leste, na perifa com a cara da Bahia, do Ceará, com o sotaque e a comida do nordeste. Para ir para a região mais central e mais rica, passei muitas vezes, de trem ou de metrô, pelo Ermelino Matarazzo, localidade mais erma da pauliceia dentre as que foram decantadas, nas décadas de 1960 e 70, pelo famoso sambista João Rubinato, mais conhecido como Adoniran Barbosa. Pois é, nem o velho sambista, cantor que conhecia a periferia, a favela, conseguiu chegar próximo à casa da minha mãe. Minha mãe chegou a morar tão longe do centro, tão distante que era quase fora da cidade, pertinho da chamada “Itaquá”, apelido de Itaquaquecetuba. Tenho parentes espalhados pelo estado e, entre eles, uma tia noutra perifa de Sampa, quase Osasco, próxima ao reduto do melhor hip hop brasileiro, o Capão Redondo.

Na maior parte da capital paulista que conheci, nunca convivi com o preconceito da classe média, pouco visitei as ricas regiões cafeeiras, os portentosos latifúndios, as ricas cidades “leiteiras”. Conheci o “espírito bandeirante” apenas por tabela, de raspão, a partir de seus respingos nas populações mais pobres, que foram minha matéria-prima.

 Por falar em espírito bandeirante, foi o suíço Clovis Lugon, com sua obra “A República Comunista Cristã dos Guaranis”, que me confrontou com uma das maiores carnificinas da sangrenta história brasileira: a matança de mais de 300 mil guaranis, no século XVII, pelos “paulistas”, como assim eram chamados bandoleiros mercenários que atuavam e eram contratados por portugueses e espanhóis, na época, para exterminar índios. Triste constatação: essa herança é fundamental para compreendermos os atuais preconceitos contra nordestinos e nortistas, contra indígenas, contra negros e, sobretudo, contra pobres, que grassa nas regiões mais ricas da pauliceia.

Estes “paulistas” constituíram-se nos principais inimigos das comunidades indígenas, capturando índios “selvagens” para trabalhar nas lavouras de São Paulo. Esse fato histórico parece explicar as atuais relações entre trabalhadores rurais sem-terra e fazendeiros, a gênese desta. O discurso do “tudo que tenho construí com o trabalho”, o “vem de berço” e outros elementos da ideologia bandeirante esconde, na verdade, o principal recurso utilizado para a conquista deste patrimônio “hereditário”: a violência e o assassinato das populações tradicionais. O tempo passou, mas esse espírito “bandeirante” segue bastante vivo, sobretudo no centro financeiro da pauliceia, passando pelos agronegociantes e pelos empresários da “pujante” indústria paulista.

Por falar em indústria, olha só que coincidência. Aos catorze anos fui pra Manaus, para a Zona Franca, acompanhar meu pai que era executivo de uma multinacional japonesa e veio, como é praxe, por aqui, porque para certos cargos, a maioria das empresas não contratava amazonenses. Depois de um tempo nesta empresa, meu pai foi trabalhar em outra. Em ambas, o apartheid social é visível: restaurante da diretoria, com comida sofisticada e ar condicionado e restaurante da peãozada, com comida simples e ventilador, estacionamento da diretoria e transporte coletivo para a peãozada, etc. A promiscuidade nas relações sociais entre os dirigentes e as operárias também salta aos olhos. Muitas mulheres operárias, com seus sonhos de Cinderelas e acreditando encontrar naquela gente de pele e olhos claros do sul e do sudeste do Brasil e também de outros países, o seu príncipe encantado. Outras querendo tirar qualquer proveito financeiro ou de status dentro da empresa.

Na diretoria o comportamento é quase o de chicote no lombo da peãozada, que é cobrada impiedosamente por produtividade. Do alto de suas salas de reuniões com ar-condicionado, ou de gabinetes acolchoados, os comentários são os mais preconceituosos possíveis: burros, preguiçosos, vagabundos, indolentes, piranhas, safadas, etc. E, claro, também sobre a cidade, “Manaus é uma cidade muito atrasada”, “esse povo de Manaus, meu Deus do céu!”, etc. A procedência destes gerentes e diretores, muitas vezes é a cidade de São Paulo, mas muitos também são originários de outros estados do sul e do sudeste do Brasil.

Fazem mais: empresários pertencentes a famílias tradicionais paulistas, amigas do ex-governador Amazonino Mendes, a partir de informações privilegiadas sobre a construção da Hidrelétrica de Balbina, foram orientados por ele a comprar vários hectares de terras na região que seria alagada, com a promessa de gorda indenização por parte do Estado do Amazonas e assim o fizeram, como atesta o MP-AM e como é narrado, em livro, pelo Comitê da Verdade do Amazonas. Outra: o empresário paulista Gilberto Miranda, famoso estelionatário ligado à Collor e Egberto Baptista, com o aval de dois políticos amazonenses, mais sujos do que pau de galinheiro – Amazonino Mendes e Carlos Alberto de Carli – ocupou, por duas vezes, uma das três vagas do Estado do Amazonas no senado, por ser suplente dos ditos cujos. Ou seja, uma das três cadeiras do estado do Amazonas, era, de fato, paulista.

Pelo que se vê, parece não haver muita diferença entre o paulista executivo da Zona Franca de Manaus e o “paulista” matador de índios, entre o espírito industrial e o espírito bandeirante. Parte deste espírito até chegou junto comigo a Manaus, mas minha vivência me tornou amazonense, ainda que com profundo respeito pelos paulistas que lutam contra a tirania, o preconceito e a intolerância que marcam o espírito bandeirante. Mas quando me perguntam hoje, aqui em Manaus: “tu é paulista, é”? Respondo: “Égua, mano, tu é leso, é?”

Redação

30 Comentários

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  1. Como se todos os paulistas

    Como se todos os paulistas fossem iguais… Como se ser paulista fosse raça, estivesse no DNA. Ele mesmo diz que aqui é a cidade mais nordestina do Brasil. Pois é.

     

    1. é isso, Ritinha, o que eu

      é isso, Ritinha, o que eu digo, ao longo do texto, mas, claro, não podemos desconsiderar estes traços perversos da história de constituição do estado de São Paulo.

  2. O esgoto produzido pelo PiG é responsável pelo preconceito…

    … e ódio de parte da classe média do Sul e de SP contra nordestinos e pobres.

    A pior “elite” do mundo conseguiu envenenar parte da população.

    Enfrentar as oligarquias midiáticas é fundamental para resgatar um ambiente político saudável.

    1. exatamente, Fábio, situou bem

      exatamente, Fábio, situou bem a questão. Enfrentar as oligarquias midiáticas é, enfim, o que eu, você e os demais autores e leitores deste espaço estamos fazendo. E viva nóis!

    1. Eu sou fãzaço do Ira, mas

      Eu sou fãzaço do Ira, mas acho que essa musica é a mais preconceituosa que já ouvi, apesar de já ter lido que não foi com esse intuito que escreveram, mas o contexto é explicito.

  3. Preconceito exposto

    Mestre Yoda,

    Se um estrangeiro tem conhecimento do seu texto, logo imaginará que o forte preconceito (é forte, só que escondido) que existe neste país está concentrado em SP e AM, impressão que está bastante longe da realidade.

    Os diversos tipos de preconceito estão instalados de norte a sul deste patropi, em minha opinião um traço de cultura que remonta ao século 17 ou 18, tanto faz.

    Este massacrante e incompreensível oba oba contra o Nordeste, praticado por delinquentes que deveriam sofrer punição judicial, só explodiu em forma exagerada por conta da incrível reação da grande mídia e setores de oposição, ambos derrotados pelo governo de situação.

    Até mesmo o palhaço foragido Dmainardi exagerou na dose, e como bom palhaço teve que se ajoelhar (mandaram o boçal voltar atrás) para se desculpar com um jogador de futebol que o criticou asperamente. 

    Recebi diversos e-mails bastante críticos ao Nordeste e a todos os Bolsas, quando aproveitei prá lembrar à cachorrada do Bolsa que sempre esquecem, o Bolsa Banqueiro, aquele da Selic.

    De diferente, foram as pessoas mais simples adotando aquela mesma postura rancorosa, possivelmente os efeitos do JN, do Facebook e Twitter. 

    O fato é que o preconceito saiu da casca, ao ponto de mandar, num estádio de futebol com o todo o mundo esportivo presente, uma presidente tomat no cú, não é pouca coisa. Depois dali, abriu-se a porteira, e por onde passa um boi passa a boiada inteira.

     

     

     

    1. Olá, Alfredo
      Na verdade, como

      Olá, Alfredo

      Na verdade, como sugere o título do texto, quis, neste momento, falar sobre os paulistas, mas, claro, concordo contigo, de norte a sul, de leste a oeste desta Terra Brasilis, os preconceitos estão saindo da casca. Abraço

  4. Pior, mas pior mesmo é ver

    Pior, mas pior mesmo é ver filhos e netos de nordestinos, que nasceram em São Paulo, discriminando nordestinos, esquecendo de suas origens e desconhecendo e negando a história da família.

    Quanto ao comportamento discriminatório de boa parcela dos paulistas, discordo que seja herança dos bandeirantes, no máximo, comportamento típico de camponês rude e preconceituoso europeu, não se esquecendo que São Paulo recebeu levas e mais levas de italianos, espanhóis, portugueses, alemães e outros europeus.

    Aliás, eu desafio qualquer um me apontar, pelo menos, mil pessoas que sejam realmente descendentes de bandeirantes aqui no estado de São Paulo.

  5. Parabens mestre Yoda.
    Vc eh

    Parabens mestre Yoda.

    Vc eh um Paulista que se tornou Amazonense. Eu sou um Carioca que me tornei Amazonense tambem. Conheco muito bem todas as falcatruas cometidas por De Carli, Gilberto Miranda e outras figuras nefastas. E o pior, ate ontem, Amazonino Mendes era quase que imbativel nessas terras. O que o povo nao ve, o coracao nao sente.

    1. Olá, de Barros. Ao chegar por

      Olá, de Barros. Ao chegar por essas bandas, em 1985, percebi como os cariocas eram queridos por aqui e o quanto os paulistas eram detestados. Anos depois acabei descobrindo. Pois é, meu caro, em relação ao Amazonino, felizmente perdeu seu poder eleitoral, mas, nos bastidores, ainda tem um grupo forte mexendo os pauzinhos. Forte abraço.

  6. Interessante como em um

    Interessante como em um capitulo do Livro “Os Bruzundangas”  de Lima Barreto de 1917 e publicado em 1922, mostra uma Província a do Kaphet ( São Paulo) é tão atual em relação a este estado.

    pt.wikisource.org/wiki/Os_Bruzundangas/XX

     

    1. Olá, Miguel. Não conhecia o

      Olá, Miguel. Não conhecia o texto do Lima Barreto. Grato por compartilhar. Imagino que isso seja próprio das “Romas” contemporâneas, zona sul do Rio, Washington, Londres, uenos Aires, enfim, lugares cuja badalação, como diria  Santo Agostinho, corromperam seus habitantes.

  7. Quanta besteira… Sinto mais

    Quanta besteira… Sinto mais preconceito do autor do texto com os paulistas do que possa eventualmente existir de algum paulista contra outros, a ponto de renegar seu local de nascimento. Ora, não é o local de origem que diz sobre o caráter da pessoa. Existem pessoas nobres e existem canalhas igualmente espalhados Brasil afora. Dito isso, é de bom alvitre parar de instigar um preconceito que, disseminada como insinua, só existe na cabeça do autor.

     

    1. É, claro, quem deve entender

      É, claro, quem deve entender bastante é você, com essa humildade toda. Talvez só não entenda de distância, coisa que eu, sendo do Amazonas, devo conhecer melhor, até pra dizer que distante e próximo são conceitos bastante relativos.

  8. Ser paulista

    Ser paulista, nos últimos tempos – cerca de 20 anos – tem sido uma carga pesada. Seu artigo, Sr Yoda, é o de um Mestre com M maiúsculo. Sem mais palavras.

    1. Agradecido, Maria Cecília.

      Agradecido, Maria Cecília. Tendo nascido em São Paulo e sendo filho de paulistas, tive que me despir de muitos véus para poder compreender estas questões. Grande abraço.

  9. Excelente

    Excelente, Sr. Mestre Yoda. Desde os tempos imemoriais SP foi assim. No tempo dos bandeirantes, no apreamento de índios,  na guerra dos emboabas, quando o quilombo dos Palmares foi atacado por Domingos Jorge Velho ( mercenário bandeirante paulista), na revolução de 1932, no golpe de 64, tudo com a participação direta ou indireta de paulistas.

    Sou paulista, nascido na capital, mas concordo com o Sr. Acredito que seja um fator cultural, incentivado pela miopia social de um povo.

    Dizia o sábio Platão, que um Governante devia antes ter passado por todas as classes sociais antes, para saber se colocar no lugar do povo. É exatamente o que falta à nossa elite, e em especial ao paulista, que na falta desta vivência da realidade das outras classes sociais, acaba desenvolvendo a arrogância de julgar as outras classes. Mais ou menos como a doutrina do destino Manifesto norte americano.

     

    1. pois é, Zé Guimarães,

      pois é, Zé Guimarães, lamentável mesmo e, ao falar da terra em que nasci, da terra dos meus pais, não o faço sem sentir certa dor, mas acreditando que o resgate desse passado histórico sombrio pode contribuir para combater essa arrogância paulistana que não faz nada bem, não contribui em nada. Sua comparação com a história dos yankees é procedente e é triste pensar num imperialismo tupiniquim, praticado por quem, ao mesmo tempo, sofre a mesma opressão que pratica. Um abraço.

  10. não deve ser de graça que 

    não deve ser de graça que  yoda é chamado de mestre.

    respondeu a todos, dialogou, mandou bem.

    parabéms a ele.

    1. rs valeu, Altamiro. O

      rs valeu, Altamiro. O “mestre” é só um trocadilho por causa do meu sobrenome Oda com o personagem do Guerra nas Estrelas.

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