Política fiscal e monetária expansiva como saída para a crise, por J. Carlos de Assis

Aliança pelo Brasil

O ensaio abaixo, inevitavelmente longo, responde a uma pergunta que me foi feita por um empresário no contexto da mudança do Governo: “Quem vai pagar a dívida pública interna de 3 trilhões de reais herdada por Temer?” Respondi a ele: “Ninguém”. Vi que ele desconfiou da resposta, encharcado, como todo brasileiro, de propaganda de banqueiros e financistas que assustam permanentemente a população com o fantasma da dívida, em qualquer nível que ela esteja. Diante disso, vão no ensaio as razões para que a sociedade não tema os efeitos da dívida pública de 3 trilhões, ou mais ainda, mesmo que gente como Henrique Meirelles, que trata a economia como um contador, queira usar a dívida como uma trava do crescimento.

Política fiscal e monetária expansiva como saída para a crise brasileira

por J. Carlos de Assis

A sociedade está refém de uma suprema distorção ideológica que prevalece no campo fiscal. Os conceitos de dívida pública e déficit público estão truncados, a remuneração da dívida pertencente aos ricos permanece há anos num nível de agiotagem, e há tempos que o fluxo novo de endividamento está dissociado de investimentos produtivos, só servindo à predação pelos especuladores financeiros. Nesse contexto o Estado, que deveria ser o instrumento da administração fiscal a serviço da sociedade, tornou-se instrumento exclusivo da acumulação financeira pelos privilegiados donos da riqueza financeira, acumulada em títulos públicos líquidos e ultra-rentáveis.

Essa é uma discussão de poder econômico traduzida geralmente em termos técnicos. Vou, portanto, usar termos técnicos para tratá-la de uma perspectiva racional e política. A dívida pública não é necessariamente um aspecto ruim da economia, nem necessariamente bom. Nasceu com o capitalismo. É o estoque de riqueza líquida dos cidadãos privilegiados. Do ponto de vista privado, é a forma com que o capitalista preserva sua riqueza enquanto espera oportunidades melhores de investimento. Na medida em que essas aparecem, ele liquida parte ou a totalidade de seus créditos (em dívida pública) junto ao Estado e busca aplicações mais rentáveis nos espaços de investimento interno e externo.

Como um processo dialético, a dívida pública não é apenas a forma de o capital se valorizar, mas também a forma de o Estado financiar seus investimentos (aplicações no estoque do capital social) em momentos de necessidade, sem ter que aumentar impostos. Isso acontece sobretudo em momentos de depressão do ciclo econômico – um fenômeno inexorável analisado nos detalhes por Marx (ciclo econômico) e por Keynes (depressão), e que os liberais, neoclássicos e neoliberais tentam ignorar. A consequência da depressão, em termos fiscais, é a queda receita pública. Como o Estado moderno tem despesas incompressíveis, o resultado é o déficit orçamentário.

Até os anos 30, com o predomínio absoluto dos ortodoxos e liberais dominando financeiramente a economia, não havia um antídoto provado contra a depressão. Depois dos anos 30, o presidente norte-americano Franklin Roosevelt, na prática, e o mais notável economista britânico, John Maynard Keynes, na teoria, demonstraram que ninguém poderia, racionalmente, tratar a recessão e a depressão econômica como fatalidades incontornáveis. A política denominada keynesiana provou de forma inequívoca que o investimento público deficitário era a forma de enfrentar a queda acentuada de atividade econômica e, sobretudo, o alto desemprego. Prevaleceu ao longo de todo o pós-guerra, até os anos 70.

Investimento deficitário, se efetivamente aplicado numa depressão, deveria agradar todo mundo, pois, afinal, seria uma forma de ampliar o gasto público de interesse social sem recorrer a novos impostos. De fato, numa depressão, a pior receita é o aumento dos tributos pois significa tirar da economia de um lado, pelos impostos, e aplicar de outro lado, pelos gastos públicos. Em termos econômicos globais, os dois fluxos de receita e despesas se equilibram, e disso não pode resultar qualquer estímulo ao aumento da demanda efetiva e à retomada da economia. A pergunta correta, portanto, é a seguinte: se o investimento deficitário não prejudica ninguém, por que a resistência dos financistas?

Entramos aqui na esfera do poder econômico. Os financistas só gostam de dívida pública enquanto estoque de riqueza privada. Não gostam dos gastos públicos que se traduzem em déficit orçamentário, de benefício comum. É que se o governo resolve investir deficitariamente, terá de emitir novos títulos de dívida pública. Se os capitalistas, em geral, tivessem sempre recursos financeiros disponíveis, ou provenientes do fluxo de lucros e juros suficientes para aplicarem financeiramente, a questão seria resolvida pela compra desses títulos públicos com esses recursos. Acontece que, na prática, todos os recursos líquidos dos capitalistas já estarão aplicados na velha dívida pública, ou em títulos privados.

O governo faz então a seguinte ginástica: num regime em que Tesouro, emitente dos títulos, e Banco Central, emitente de dinheiro, atuam de forma articulada, o governo emite a dívida nova a uma determinada taxa de juros, abaixo da taxa de juros prevalecente no mercado, combinando com o Banco Central uma emissão monetária primária por este último para forçar o mercado a aceitar a taxa de juros de títulos públicos mais baixa. O resultado final é o aumento temporário da relação dívida pública/PIB. Mas essa relação em seguida irá cair por força da recuperação da economia e do aumento do PIB e do crescimento da receita pública, isso sob estímulo do aumento dos gastos públicos deficitários.

É importante notar, nesse processo, que um dos principais ganhos para a economia em termos financeiros é a redução da taxa básica de juros induzida pela emissão monetária líquida pelo banco central (receita de senhoragem). Claro, se o Banco Central cultivar a obsessão de controlar a inflação pela redução da demanda agregada tudo isso será impossível, pois a dívida pública, incrementada por juros explosivos, sem o contrapeso da emissão monetária (a dita receita de senhoriagem), acabará explodindo sem qualquer efeito sobre a produção e a produtividade da economia. É o que acontece no Brasil, onde o aumento da dívida pública, alimentado por juros sobre juros, não tem contrapartida de investimento produtivo.

Entende-se, portanto, que a grande resistência dos financistas ao investimento deficitário do Estado em tempos de depressão, como o nosso, é a possibilidade de redução da taxa real de juros aplicada à dívida pública. Um eventual “calote” da dívida pública é uma falácia de televisão, similar à ideia de que o Brasil é um país caloteiro porque perdeu uma nota das agências de risco. Isso só acontece em situações extremas, como a hiperinflação alemã no após Primeira Guerra, onde se registrou o colapso total da capacidade fiscal do Estado. É refletindo os interesses dos financistas que agências de risco monitoram a dívida pública dos países de uma maneira que, em última instância, visa a proteger taxas de juros exageradas.

Esse terreno se presta a manipulações ideológicas das quais não escaparam os governos do PT. Na época de Lula, exceto nos anos 2009 e 2010, não tivemos um regime efetivamente desenvolvimentista em termos de política econômica em razão da total subordinação do governo aos ditames neoliberais. Isso se acentuou nos governos Dilma, que cometeu a tolice de produzir as chamadas “pedaladas” fiscais com o fim único de mascarar o orçamento público sem alterar o déficit efetivo – portanto, apenas para “parecer” neoliberal -, e logo depois trazendo para o centro do Governo um neoliberal assumido a fim de realizar ajuste fiscal que logo fracassou, porque, em termos de boa economia , fatalmente fracassaria.

Fizemos uma política expansiva muito inteligente nos anos de 2009 e 2010. Além do aumento do salário-mínimo e da bolsa família, que deram um importante sopro na demanda de baixo para cima, tivemos, de cima para baixo, uma transferência de R$ 180 bilhões do Tesouro (dívida pública) para o BNDES, a fim de que este usasse os recursos no financiamento da economia real, pública e privada. Foi um sucesso. A economia cresceu 7,5% em 2010, um recorde nas últimas décadas, e o desemprego caiu fortemente. Creio que o Governo ficou espantando com seu sucesso e resolver meter o pé no freio, para parecer bem no figurino neoliberal, desacelerado a economia. Ela nunca voltou aos trilhos expansivos.

Contra a posição neoliberal-ortodoxa, os Estados Unidos tem realizado desde o início da crise de 2008 uma política fiscal-monetária tipicamente keynesiana a despeito de resistências no Partido Republicano. Não só isso. Eles lideraram o G20 na adoção de uma política expansiva de 2009 até meados de 2010, quando a Alemanha, a França e Inglaterra se bandearam para o lado ortodoxo e assumiram o controle na Europa, forçando a contração das principais economias do sul. Não obstante, os EUA foram avante. Além de reduzir a taxa básica de juros praticamente a zero, iniciaram uma escalada sem precedentes de déficits fiscais para combater a recessão e, principalmente, o alto desemprego.

Os déficits fiscais norte-americanos tem sido particularmente impressionantes: em valores constantes, US$ 1,4 trilhão de dólares em 2009 (cerca de 9% do PIB), US$ 1,3 trilhão em 2010, US$ 1,2 trilhão em 2011, US$ 1,1 trilhão em 2012, US$ 680 bilhões em 2013, US$ 492 bilhões em 2014. Foi graças a esses déficits, associados a taxas de juros próximas de zero, que a economia americana vem se recuperando e o desemprego caiu. E é provável que não se tenha recuperado por inteiro por causa das políticas fiscais e monetárias europeias, tremendamente contracionistas, o que limita sua capacidade de demanda com efeito sobre a economia norte-americana.

Mencionei acima que políticas expansivas de tipo keynesiano dependem de articulação entre Tesouro e Banco Central. Graças a essa articulação – que se contrapõe a autonomia total do Banco Central com seus modelos de meta de inflação, tratando toda a inflação como inflação de demanda, como alguns pretendem -, economias como a inglesa e a japonesa, que tem bancos centrais integrados na gestão econômica, como os EUA, conseguiram ao menos boiar na crise, acompanhando a norte-americana. Entretanto, nem o modelo da economia norte-americana, nem dessas outras economias desenvolvidas, serviu para inspirar nossos gestores econômicos em matéria fiscal e monetária: é como se dissessem, fazem o que falo, mas não o que faço!

Temos sido rigorosamente monetaristas-neoliberais-ortodoxos-contracionistas, e provavelmente continuaremos assim na hipótese do governo Temer, com os ultra-liberais Meirelles, Armínio e Serra no comando. O chicote que nos mantém submissos a uma política contracionista é um suposto derretimento da dívida pública de 3 trilhões de reais cujo pagamento, se exigido pelo setor privado, desestruturaria todas as relações financeiras da economia. Isso é uma farsa. Não há qualquer razão para o “derretimento” enquanto houver uma taxa de juros reais positiva no sistema financeiro, ligeiramente acima da norte-americana. Não haveria alternativa segura de aplicação no mundo, mesmo que a taxa caísse à metade.

Além disso, do ponto de vista dos bancos e de outros intermediários financeiros, não é a taxa Selic, básica, que importa, mas as taxas de aplicação. A Selic, base da rentabilidade financeira, funciona como um seguro, e não há porque seguro render alta rentabilidade. Finalmente, não há risco real de desvalorização exagerada dos títulos públicos, porque alguns venderão e outros terão que comprar a fim de pousar em algum ativo líquido sua renda e sua riqueza financeira. O máximo que ocorrerá, como já observado, é uma curva de redução dos juros da dívida pública, nos integrando ao sistema capitalista normal, sem os nossos exageros da exploração social pelo setor financeiro a que temos estado submetidos.

Há uma pergunta recorrente sobre quem pagará a dívida pública de 3 trilhões de reais no sistema fiscal brasileira. A resposta é simples: ninguém. Simplesmente porque ela será cobrada pela margem, na medida em que seus titulares precisarem de dinheiro vivo – na verdade, sinais eletrônicos – para fazerem eventuais investimentos físicos. Na medida dessa demanda superavitária de dinheiro, num entra e sai constante de aplicações na dívida pública, o Banco Central terá de fazer emissões primárias para garantir a liquidez do mercado. É assim em todo o mundo onde haja uma articulação entre Tesouro e Banco Central. E é assim que normalmente ocorre, todos os dias, no Brasil. E la nave va!

Existe um exemplo de alta visibilidade que nos mostra como se comporta o sistema financeiro de países com bancos centrais independentes. É o exemplo do sul da Europa. O Banco Central Europeu, comandando financeiramente todos os países da área do euro, atua de uma forma que, com ajuda do FMI e da Comissão Europeia, limita drasticamente a possibilidade de os países se financiarem deficitariamente. O resultado tem sido uma contração generalizada das economias ou recuperações de voo de galinha. A razão é que os países não tem um emprestador em última instância (banco central) com capacidade de bancar os investimentos em infraestrutura essenciais para a recuperação. O BCE bloqueou as possibilidades europeias de fazer política keynesiana em favor do deus mercado financeiro!

Do ponto de vista quantitativo, o indicador relevante para avaliar a segurança financeira do nível de endividamento de um país é a relação dívida/PIB, não o volume absoluto da dívida pública. Na realidade, enquanto a sociedade estiver disposta a confiar na dívida pública como um ativo financeiro líquido suficiente para funcionar como base para aplicação de sua riqueza financeira não se coloca nenhum problema financeiro. Nesse sentido, a dívida pública brasileira como proporção do PIB, sendo uma das mais baixas do mundo (cerca de 70%), não deve trazer qualquer preocupação por enquanto. É menor que a alemã (80%), a italiana (cerca de 120%), a americana (mais de 90%) e a japonesa (mais de 200%).

Por último, cabe avaliar também em que ponto do endividamento pode-se aplicar uma política keynesiana de retomada da economia sem riscos para a estabilidade financeira de um país. Em tese, não há limite, como ocorre, por exemplo, na economia japonesa. Na verdade, se tomarmos uma analogia com os reservatórios de água, o grosso da dívida pública funciona como volume morto, só mobilizável em situações de crise. Assim, mesmo para dívidas públicas muito elevadas como proporção do PIB, sempre será possível um novo endividamento líquido, sem afetar o volume morto, na medida em que novas ondas de lucro estarão sendo geradas na sociedade requerendo aplicação em títulos públicos rentáveis e líquidos. Portanto, não há risco em recorrer a uma política keynesiana, a fim de reverter a depressão, mesmo em economias altamente endividadas.

 

*Economista, professor, doutor pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 20 livros sobre economia política brasileira.

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    Os donos do capital, com a ajuda de comentaristas doutrinados tipo Mirian Leitão, não estão dispostos a deixar de ganhar o máximo

  2. Desobediência Civil e Boicote

    A prioridasde agora é derrubar esse governo golpista, recheado de criminosos.

    Travar a economia é uma das armas pacíficas que os democratas devem usar.

    Boicotar principalmente as empresas financiadoras e beneficiárias do golpe: Globo, Itaú, Habbib’s etc.

    Reduzir o consumo ao mínimo necessário visando travar a economia.

  3. Falta explicar para os

    Falta explicar para os investidores internacionais que eles não tem motivo para exigir juros mais altos nas emissões de títulos brasileiros.

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