Armando Coelho Neto
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.
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Prostituição do Direito. 24 de janeiro pode ser o ponto de inflexão, por Armando Coelho Neto

Prostituição do Direito. 24 de janeiro pode ser o ponto de inflexão

por Armando Rodrigues Coelho Neto

O moralismo sem moral tomou conta do Poder Judiciário. O Estado de Direito caiu em segundo plano. Conforme o caso, vale a moral sejumoriana, Carmens, Gilmares entre outros. A influência da moral na aplicação do direito foi objeto de debate entre delegados da PF, hoje representantes da resistência crítica ao golpe de 2016. Fruto desse diálogo, um delegado da PF enviou um texto intitulado “A Prostituição do Direito”. Nele, a clara confusão entre a Moral e Direito, e como isso vem formando jurisprudência de ocasião – via intervenção anárquica de valores individuais. Convicções de “power point” e “timing” de mídia se mesclam ao espocar de juízes show business. De tanta clareza e profundidade, não ousei tocar no texto e compartilho. O autor que precisa de inequívoco anonimato, urge se proteger da tirania decrepita, posto que a PF entrou, definitivamente, para história dos golpes de estado.

A Prostituição do Direito

A Humanidade tem, na Ciência, a mais elaborada e racional maneira de entender a realidade. Serve para explicar o mundo que nos cerca através da observação dos fenômenos, categorização metodológica e estabelecimento de associações, padrões, regras e conclusões. Na longa trajetória da evolução científica, houve a gradual superação das opiniões baseadas em superstições, substituídas pelos experimentos, passíveis de aferições objetivas, desafiáveis pelo argumento ou demonstrações em contrário.

Não foi um processo desprovido de traumas, como demonstram seus mártires. Giordano Bruno morreu na fogueira; Galileu Galilei viveu, mas precisou renegar suas convicções (se bem que ainda teria resmungado: “e pur si muove”). A História recente ainda registra lamentáveis episódios perseguições a cientistas e falseamento da realidade (a indústria do Petróleo teria agido para desacreditar pesquisas reveladoras da contaminação ambiental com chumbo; empresas de tabaco fizeram o mesmo em relação às associações entre o ato de fumar e o desenvolvimento de câncer de pulmão). Na mais poderosa nação do Planeta, lobbies de poderosas empresas internacionais, ainda hoje, financiam campanhas políticas para agentes públicos que se disponham a negar o aquecimento global.

No que pertine ao Direito, sempre houve dificuldades relacionadas ao seu estudo. Trata-se de uma disciplina do conhecimento humano não-exata, que se debruça sobre um objeto mutável: o Ordenamento Jurídico de uma sociedade política – obra humana cambiante no tempo e no espaço, ao sabor das relações de poder e de suas influências econômicas, culturais, religiosas. Para fazer troça de seu caráter retórico, entre os acadêmicos das ciências jurídicas e sociais, sucessivas gerações de estudantes se deparam com uma máxima jocosa segundo a qual, para quaisquer institutos estudados, sempre existe uma “corrente objetiva”, outra “subjetiva” e uma terceira, “mista”.

Nesse embate dialético, tornaram-se célebres as disputas entre os “jusnaturalistas” (adeptos de um Direito assentado sobre os seres humanos e as características naturais das relações mantidas entre si) e os “juspositivistas” (proclamadores do Direito como uma decorrência mecânica das normas contidas na legislação vigente). Tendências mais modernas, de cariz “alternativista”, buscaram resgatar uma noção sistêmica, denunciando o autoritarismo de um Direito unicamente lastreado na lei posta. Tais doutrinadores se dedicaram a defender a prevalência de valores gerais de uma determinada Sociedade (sobretudo plasmados nas constituições nacionais), para contornar conflitos que a mera aplicação dogmática da lei não era capaz de superar.

Discutida desde a Roma Antiga, trata-se a separação entre o mundo jurídico e os planos da Moral e da Religião, no Ocidente, como um degrau civilizatório mínimo. De fato, na impossibilidade de que a moral individual ou dogmas religiosos sejam impostos a uma Sociedade complexa, composta por indivíduos com distintos propósitos e interesses, somente sob o Império da Lei se pode conferir um mínimo de previsibilidade e harmonia para a vida em sociedade.

Contudo, esse lento e consolidado edifício do saber vigorou, por aqui, somente até o advento da guerra moralista inaugurada, em pleno Brasil do Século XXI. Ao menos, é sob o pretenso combate à corrupção que as garantias individuais, as mais comezinhas regras processuais e a impessoalidade da persecução penal perderam a sua validade. Vivemos hoje, assim, o tempo do espetáculo midiático-persecutor.

Com sua criatividade sem paralelo, os juristas brazucas, orgulho da Nação, estão mostrando ao Mundo e às gerações pretéritas como se faz. No lugar daquela sisudez dos juristas do passado, que procuravam se manter equidistantes dos interesses que moviam as partes, esses novíssimos operadores jurídicos se manifestam politicamente, seja nos autos ou, preferencialmente, fora deles. Formulam suas convicções no power point e as publicizam no timing da mídia. Tornaram-se grandes astros do show business e não tem o menor pudor em dar palestras, participar de programas de entrevistas ou mesmo ganhar prêmios, patrocinados pelos mesmos organismos que incentivam vazamentos de informações, destroçam biografias e divulgam a cruzada patriótica. Não é genial?

Se o ensino das disciplinas dos cursos jurídicos já amargava algumas das dificuldades antes narradas, agora é certo que a graduação universitária precisará ser atualizada. Operadores jurídicos formados há mais tempo também precisarão se reciclar em workshops. Com a capacidade inventiva de nossos juristas, contudo, tenho certeza que, logo, logo, teremos uma reforma curricular. Colaborando com esse mundo novo de oportunidades que se descortina, o despretensioso rábula, que subscreve as presentes linhas, já se antecipa e sugere novíssimas e imprescindíveis cadeiras. Ei-las: “Timing”, “Opinião Pública”, “Como Divulgar Medidas Cautelares na TV”, “Como Fazer Amigos na Mídia e Influenciar Pessoas nos Tribunais” e “Moralismo e Evangelho na Argumentação Jurídica”.

Ironias a parte, essa nova forma de “operar o Direito”, esse crescente ativismo, justifica-se plenamente, para os incautos, diante da crise de representatividade das classes políticas – a qual obrigaria o estamento jurídico a trabalhar com o clamor popular. É muito curioso, contudo, que, fora da persecução penal contra as improbidades das autoridades públicas, outras realidades sociais não reclamem respostas de mesma natureza. Exemplificativamente, ninguém perguntou aos trabalhadores com carteira assinada se eles “curtiram” a mutilação da CLT. De igual sorte, a cidadania brasileira não está sendo convidada a se manifestar sobre a reforma previdenciária. A conveniência na desnacionalização de grandes empresas brasileiras (Petrobrás, Odebrecht, Eletrobrás, Embraer) também não foi indagada ao Povo Brasileiro. Esse mesmo povo também não costuma ser consultado sobre os aumentos de impostos, as desonerações e renúncias fiscais bilionárias em prol de grandes devedores ou mesmo sobre o congelamento do investimento público por duas décadas.

Também não deixa de representar uma grande contradição que o ativismo judicial se apresente assimétrico em relação aos alvos persecutórios, conforme sua filiação ideológico-partidária. Assim, alguns parlamentares, declarados com “fortes elos com o Brasil” e titulares de “carreiras políticas elogiáveis”, podem envolver-se em ilícitos. Para outros, as imunidades não os põem a salvo sequer de prisões cautelares na constância do mandato. Na mesma relação de incoerência, admite-se que o Congresso Nacional possa invalidar as decisões judiciais mediante atosinterna corporis, sem que se reconheça, por simetria constitucional, as mesmas potestades às assembleias legislativas estaduais.

A confusão entre a Moral e o Direito vai formando uma jurisprudência de ocasião, tecida do mesmo modo como se costura uma colcha de retalhos. A intervenção anárquica dos valores individuais dos operadores nos lega uma realidade caótica, uma verdadeira Torre de Babel. Busca-se consertar, com moralismo, inconsistências sociais advindas como consequências de decisões ativistas anteriores, igualmente assentadas no moralismo.

É certo que muitas críticas foram formuladas acerca do positivismo. Dizia-se que a representatividade maior das classes mais abastadas fazia a lei ter especial predileção pelos ricos, e que a igualdade formal de todos perante a lei, por não corresponder à igualdade material, seria insuficiente e causadora de injustiças. Infelizmente, com o advento do ativismo judicial de inspiração moralista, cai por terra até mesmo esse índice civilizatório imperfeito da legalidade, mas tão importante como garantia mínima de convivência e pacificação social.

As elites moralistas que dominam as forças econômicas do País já obtiveram, com o ativismo de seus representantes juristas, grande parte dos objetivos a que se propunham. E obviamente não resistem ao mesmo escrutínio ético que impuseram aos que elegeram inimigos. É certo, assim que esse movimento tem conteúdo de classe e prazo certo para acabar. Ao que tudo indica, os limites da corrente, digamos, “jusmoralista”, sejam representados pela aniquilação do modelo econômico de solidariedade e resgate social e do projeto político progressista. Dia 24/01/2018, data de julgamento da maior liderança popular da América Latina, é o ponto de inflexão.

Se as arbitrariedades podem “estancar a sangria”, o mesmo não se pode dizer das cicatrizes profundas que serão deixadas por esse lapso de retrocesso civilizatório. Para minimizar o estrago, aqui se oferta uma nova contribuição (veja como estamos propositivos). Seria mais ou menos assim. O campo do Direito volta a ser ditado pela imparcialidade. Os operadores deixam de ser seletivos, renunciam ao show business. E o Brasil volta a ser um Estado de Direito. Talvez pareça revolucionária. Mas pode funcionar, e é a única expiação possível para uma geração de operadores jurídicos que, quando precisou fazer valer o Constitucionalismo, as garantias individuais e a Democracia, preferiu vulgarizar a Ciência do Direito. Trocando a grandeza histórica pelos quinze minutos de fama.

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista e advogado, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo

 

Armando Coelho Neto

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.

5 Comentários

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  1. Perspectiva

    O que confundem alguns são as perspectivas de sim mesmo e do cargo que ocupam, dentro da estrutura organizacional do país. Enquanto alguns conseguem dissociar o Eu cidadão do Eu funcionário público, outros colocam sua responsabilidade funcional adaptada a crenças pessoais priorizando o Eu pessoal em detrimento do cargo. Alguns se escondem na “literatura jurídica”, outros no “clamor popular”, outros por mera descrença do ordenamento vigente, mas, sem exceção, todas estas ações não apenas são injustas pela priorização do Eu pessoal do juiz (muitas vezes agindo com perspectiva vinda dos EUA), mas, principalmente, injustas pela seleção do “lado” no qual este atua, prejudicando uns e favorecendo outros.

  2. Então ficamos assim:
     
    se

    Então ficamos assim:

     

    se houver um retorno ´”normalidade” (judiciário lento, com salários acima do teto constitucional, inatingível para a população, indiferente á elite corrupta) todos ficarão satisfeitos?  Nada seria feito para evitar que os desatinos cometidos voltem a se repetir? Concordo com isso não!!! É a tese da conciliação, desgraça desse país…..nego prende, arrebenta, perde o juízo, quando o trabalho termina, não é reponsabilizado por causa da “conciliação”……então tá.  

  3. Icaros

    Sera que vamos ter que refundar os principios do Direito no Brasil? Uma coisa esta muito clara: o judiciario evidenciou com todo autoritarismo de onde ele vem em sua maioria, a quem ele representa e serve. Muitos cidadão brasileiros hoje não têm nenhuma confiança no poder judiciario ao contrario do que pode imaginar a cabecinha do Icaro Sergio Moro e demais procuradores. A Lava Jato não sera um marco entre o antes e depois na corrupção brasileira. Ela sera um marco do golpe de uma instituição em apenas um partido.

  4. Em uma das mais preciosas
    Em uma das mais preciosas jóias do Barroco Mineiro, Diamantina a cidade do Grande JK, estudei com professores que tinha formado em direito. Não havia demanda e outras opções proficionais no judicario para advogados. Eles davam aulas de linguas, filosofia, historia etc, usando suas abilidades intelectuais e trabalhando em areas que os permitian ativar o interesse cultural e intellectual na nova geração. Eu observada com admiração suas maneiras de espressar e racionalizar. A lembrança deles é sempre acompanhada de um sorriso. Até a década de 1980, a profissão de advogados não fazia parte da aspiração de muitos jovens no Brasil. A advocacia era uma das últimas na lista de prioridades daqueles fazendo exames de vestibular. Eu acredito que se eu tivesse nascido nos EUA onde eu moro, eu teria estudado advocacia. Em Nova York, advogados são umas das pessoas com a maior sofisticação racional entre aqueles com quem trabalho e conheço. Nos nossos encontros questões politica e social importantes fazem sempre parte das nossas discuções. Como membro do “Judiciary Commitee”, sou participante ativo na seleção de painéis que selecionam os candidatos para Juiz do Tribunal Civil e Juiz da Suprema Corte. Como Vice-presidente de um clube democratico, também ajudo na organização dos fóruns onde os candidatos selecionados fazem apresentações das campanhas de suas candidaturas. O processo é absolutamente absorvente e extenuante. Mais estas atividades são oportunidades excelentes para conhecer os candidatos, seus conhecimento das leis, como aplicalas e sobretudo aprender sobre suas filosofias e as implicações das leis na vida dos cidadãos, principalmente aqueles que vivem na periferia, os podres, velhos e enfermos. Meu trabalho me coloca em uma cadeira de frente das mais importantes discuções politicas, econômicas, socias e historicas do nosso tempo.

    É com imensa tristeza que vejo hoje a incompetência e corrupção completa do judiciário brasileiro. A falta de reverência e respeito pela Constituição Brasileira inicia no Supremo Tribunal Federal infiltrando, como um cancer incurável, através de todos os nives do sistema judiciário até ao mais novo advogado nos pequenos municipios do país. Para os jovens da minha geração, a unica vantagem de ser um advogado era o titulo de doutor apesar da ausência de valor. Não era a má reputação, mais a falta de relevância da profissão na sociedade fazia maior impressão. Hoje infelizmente ser membro do judiciário no Brasil representa uma vergonha.

  5. novo contrato social

    em sintese, em 2016 rasgamos a constituição, em 2017 rasgamos o proprio judiciário pelo moralismo e agora em 2018 rasgaria-se o contrato “invisivel” social, e inelegilvel lual,  todos seremos nada menos que mais um morro nesta nação chamada Brazil.

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