Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Talvez a alegria, por Maira Vasconcelos

por Maíra Vasconcelos

Tenho saído do meu quarto de criações, tento conversar com o mundo, para tanto esmago mais uma vez todas as flores que me fortalecem. Também as folhas secas. cre-crec-crec. Piso. Há de se rasgar uma barreira por dia, uma barreira por dia apenas por querer pisar o chão sem se esfacelar e se denegrir demais, por querer apenas beijar e ser gentil com o outro, quem saberá. Buscar o querer e a leveza de outrem ao me deparar com a novidade de cada chão, todos os dias – viver pelo bem-querer é um agigantado e suntuoso propósito. Se eu não te conheço, mas quero o seu bem porque prefiro a minha alegria, e minha alegria depende também de ti. Qual é a sua alegria?, diga!, hei de saber, afirmo que sua alegria também é minha e você precisa do meu sorriso, ou nos deixaremos todos sempre sozinhos? Sim. A solidão está em cada chão e as pessoas são tristes, é assim todos os dias, todos os dias quando olho além do meu quarto. Por favor, eu quero a sua alegria. Tenho mãos completamente vazias se o querer do outro a mim nunca chega, tenho apenas e sempre as mãos tão cheias de palavras criativas; ah, se ninguém está a doar seu bem-querer a ninguém, então viverei de mulheres inventadas e recortadas, preenchendo-me assim de querer comum, reinventando, assim crio e multiplico e dou-me um sorriso mesmo estando sozinha neste quarto. Eu quero a sua alegria, por favor. Não sei se irei algum dia desistir. Mas se vivo a esperar, quiçá, tenha apenas lamentos e rezas, em cada dia. Meu Deus!, como se eu rezasse, como se eu lamuriasse – ao escrever a palavra “Deus”, sempre retorno a Ângela ou ela a mim, essa personagem que venera a Deus como se pudesse assim salvar a sua vida, como se às vezes por uma palavra Ângela se embaraçasse em mim, ah, quão horripilante e salvador pode ser trazer à tona um personagem; a noção de Deus é a nossa exata e justa diferença, ao falar em Deus aprendo a separar Ângela de mim mesma, também assim meu chão é severamente mais concreto e racional; criar personagens é possuir novos parâmetros para o conhecimento da realidade. Em chãos pedintes, o lamento e a reza uma hora são ensurdecedores, mas podem ser substituídos por uma música. Sim. Eu canto: canto para transformar todas as coisas. Canto e busco a nota concordante que é a nota urgindo por lograr harmonia mesmo sabendo que a desarmonia poderá ser constante. Enfim, tem-se a música para pisar os chãos. Eu posso cantar a inexistência da alegria compartilhada. Esse escrito de hoje será lido como um canto? Temos a música e a certeza de que seus sopros são a inesperada mudança na parcialidade do ambiente, um ambiente parcialmente pouco amigável. Eu tenho a música para pisar os chãos. Qualquer clássica de Brahms, diria esta descoberta nos últimos dias, Adagio Affetuoso, entra em meu corpo sendo capaz de provocar um relaxamento dos mais sonsos. Oh, alegria alegria como fazer-te apenas minha, essa alegria que não poderá esperar nada de ti, chão de medíocres gulas e egoísmos. Mundinho malfeito. Às vezes, habita-me certo pavor por dirigir-te uma só palavra. Mundinho malfeito. Mas de posse da música, nunca por sua causa precisaremos rezar e lamuriar, desde que se tenha uma música um canto para abafar a grosseira armação de todos os chãos, esse chão tão miserável em alegrias. Ninguém viverá sem músicas e flores.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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