Poesia alucinada para uma guerra civil (mal) disfarçada [Diálogos com o teatro], por Daniel Gorte-Dalmoro

por Daniel Gorte-Dalmoro

Se eu tivesse que resumir “Buraquinhos” ou “O vento é inimigo do picumã” em uma palavra, talvez fosse “fracasso”. Ao salientar o fato de que dramaturgo, atores, equipe técnica serem negros, tratando de um tema negro, Buraquinhos deixa claro nosso fracasso enquanto sociedade: somos um enorme  fazendão, uma gigantesca sesmaria, onde casa-grande e sensala seguem firmes, fortes e hipocritamente disfarçados, repaginados de “o agro é pop”, um pop onde negros seguem descartáveis e a meritocracia contempla sempre os mesmos, sempre brancos – de novidade um pouco mais democrática, o veneno na comida de quase todos. Quem sabe o dia em que haja realmente igualdade de oportunidades, descartável seja uma peça como Buraquinhos, e dramaturgos negros – assim como trans ou mulheres ou que minoria for – sejam apenas dramaturgos e dramaturgas, e o foco esteja inteiramente no seu texto, no seu trabalho, com sua questão identitária sendo um detalhe que perpassa o texto e não que o marca para fora do palco. Ressalto isso porque me pareceu importante o reforço nessa negritude nos agradecimentos ao fim da peça, ainda mais diante da qualidade do texto e da montagem: o texto de Jhonny Salaberg (que também atua) não entrou ali por cota, mas ser o primeiro negro contemplado em doze peças dos quatro anos de edital do Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos, do CCSP (no qual este escriba ficou como primeiro suplente em 2017, com Linha de produção), mostra o quanto de talentos negros e periféricos são descartados pela nossa meritocracia – pela minha experiência, me recuso a acreditar que Jhonny seja um talento fora do comum na periferia, incomum foi ter conseguido sair de lá.

Buraquinhos tem um enredo simples: uma criança negra que vai comprar pão em uma padaria em Guaianases, periferia de São Paulo, no primeiro dia do ano, e é abordada pela polícia militar – essa que tinha autorização de Alckmin para matar quem reagisse (e a ideia de reação é bem elástico nesse caso, respirar pode ser encarado como reação à abordagem da polícia). Nada de novo no front – de comprar pão e do que acontece no caminho. Se se trata de um drama típico da periferia, reverbera como drama humano em todos que resistem ao canto da sereia fascista, como atestam, próximo ao fim da peça, narizes fungando de negros, brancos, amarelos da plateia.

Buraquinhos poderia ir por um caminho fácil, pregar para convertidos, mas opta por uma trilha mais desafiadora e, apesar da temática, não se apresenta como uma peça de denúncia: afinal, o que há de novo para denunciar? Apesar de escrita em 2017, poderia ser a denúncia do assassinato de Marcus Vinicius pelo estado, no Rio de Janeiro. Eles não viram que eu estava com uniforme da escola? Eles não viram que eu tinha doze anos e só fui comprar pão? Daqui dois dias ou dois meses poderia ser a denúncia de outra criança assassinada pelos Estado – ou de jovens, ou de adultos, ou de velhos, sempre pretos pobres periféricos. Salaberg poderia enfileirar nomes e com breves dramaturgias denunciar a situação em que foram assassinadas pelo Estado, numa estratégia que parece antes dessensibilizar as pessoas que mobilizá-las ao agir – ou mesmo ao reflexionar. É, curiosamente, a mesma estratégia do futuro senador Datena e seus seguidores: apresentar tudo explícito, ao ponto de nada mais chocar, e anestesiar para a barbárie, para o sentir, tanto as pessoas que ainda se comovem com o Auschwitz a céu aberto que o Brasil tenta imitar sob a locução de Datena, Galvão Bueno, Bonner e afins – porque não podem se abater com toda atrocidade diária, de hora em hora, de cada 23 minutos, por uma questão de sobrevivência -, como as que não se comovem, porque não conseguem enxergar no outro um igual a si, uma pessoa, por ser negro, periférico, homossexual, transexual, imigrante, nordestino, crackeiro, estigmatizado qualquer (talvez porque essas próprias pessoas abdicaram de se reivindicarem humanas, brutalizadas por cobranças e resultados, no trabalho, na vida social, na vida pessoal, na vida íntima). Enfileirar mais do mesmo, apelar para escatologias (como certos dramaturgos brancos de classe alta que receberam para escrever sobre racismo), poderia servir para o autor se sentir mais leve, convencer as paredes do quarto que está mudando a realidade do país e dormir tranquilo, mas muito pouco serviria para tentar fazer as pessoas enxergarem aquilo que diariamente passa por seus olhos, se darem conta do que realmente significa. É uma criança, foi comprar pão, não voltou para casa porque a polícia a assassinou. Eram cinco jovens, iam a uma balada, foram parados por 111 tiros – o mesmo número de assassinatos na chacina estatal do Carandiru, 111 pessoas mortas covardemente.

Sua tentativa é, sem negar a razão, sensibilizar também pela emoção – pode até ter um efeito catártico, mas quebra com o discurso racional-acadêmico que põe tudo à distância e explica com a pretensa certeza de uma análise de texto de vestibular; ou com a escatologia que gera emoção pela emoção, e ao fim do espetáculo nem lembramos do que tratava, só que deu um aperto no estômago em algum momento e… por falar em aperto no estômago, que tal uma pizza?

E não parece mesmo fazer sentido se centrar no discurso estritamente racional diante de toda a irracionalidade ali tratada. Um Piva periférico e negro vomitando espasmos de quotidiano e dor – dor evitável de um quotidiano que merece ser revolucionado. O rim, o pulmão que vazam pelos furos de bala enquanto a criança baila por cima os fios que enquadram o céu azul da periferia, preocupada em não deixar os pães cair, são poesia alucinada que emerge das marcas de sangue que o Estado estampa no asfalto; o coração que escapa pela abertura feita pela bala e voa sob a forma de uma borboleta-chuteira (teria feito um gol?) até a mãe arrasta gritos de sonhos que crianças e adultos – pretos – insistem em ter, junto ao cheiro do café, à pressão do feijão, e a casa típica da maioria dos brasileiros – retratada como pitoresca, por não aparecer glamurizada na novela (no máximo escarnecida em programas de “humor”), com carne de segunda, refrigerante de segunda, gente de segunda… gente como os soldados da PM, retratados como cães, verdadeiros chacais – o que me faz perguntar sobre o dito de ser o cão o melhor amigo do homem: o que é a amizade em uma sociedade como a nossa?

Inclusive, me pergunto como não reagiria um PM sério – que não seja um perverso, como os retratados na peça e os que fazem muito da (má) fama da corporação [http://bit.ly/2KFiPZo] -, que tenha já sido brutalizado mas não de todo, diante de uma peça como essa: conseguirá se emocionar como os demais presentes, reconhecerá a necessidade de mudanças; ou seu espírito corporativo falará mais alto e preferirá negar o óbvio para preservar seus comparsas e a instituição?

Me faço outro questionamento: diante do caminhar de nosso país, por quanto tempo Buraquinhos poderá ainda ser encenada sem ameaças a dramaturgo, diretor, atores e público? Mais quantas edições um espetáculo como esse poderá ser contemplado – ainda mais por um edital público? Que a presença de Buraquinhos na programação do CCSP este ano não seja recordada como um último suspiro antes de um período de trevas.

02 de julho de 2018

PS: A peça fica em cartaz até dia 15 de julho, de sexta a domingo, no Centro Cultural São Paulo, no metrô Vergueiro, com ingressos a R$ 20,00.

Redação

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