A máquina que enxerga dinheiro

Da Época

Ele viu a cor do dinheiro

O engenheiro Fernando Gil criou a primeira máquina que ajuda os cegos a identificar as cores, ler as notas de real e ganhar autonomia financeira 

Aline Ribeiro

O paulistano Fernando Gil tem uma vida regrada. Estudou com afinco para se tornar engenheiro pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Emendou um mestrado de três anos que lhe custou algumas madrugadas de sono. E hoje dá duro no trabalho, nos fins de semana inclusive. Apesar da qualificação (e do esforço), ele diz que não ganha um tostão. Aos 28 anos, afirma se manter com as economias da época de estagiário enquanto boa parte dos companheiros de faculdade enriquece no mercado financeiro. A família não compreende sua trajetória quase franciscana. “Meus pais me perguntam quando vou arrumar um emprego”, diz. “É uma geração mais conservadora. Fica difícil entender o que faço.”

Gil não é nenhum monge budista, tampouco desapegado de bens materiais. Ele só decidiu seguir um caminho diferente da maioria dos engenheiros, o do empreendedorismo social. Sua empresa, a Auire (uma espécie de “olá” na língua indígena javaés), nasceu com um propósito: desenvolver tecnologias para melhorar a rotina dos deficientes. Embora ainda não dê lucro, a Auire já alcançou um feito. Criou um aparelho, também batizado de Auire, para interpretar cores e identificar cédulas de dinheiro voltado aos deficientes visuais. “Nosso objetivo é garantir mais autonomia nas atividades simples do cotidiano”, afirma Gil. Para quem enxerga, entender o significado da ausência das cores não é um exercício mental imediato. Mas elas são imprescindíveis nas tarefas mais básicas. Desde escolher uma maçã – verde ou vermelha – no supermercado. Até distinguir entre a pílula para dor de cabeça e a usada para a garganta quando ambas têm o mesmo formato.

A engenhoca de Gil está em fase de testes. É semelhante a um controle remoto usado para abrir o portão de casa. O aparelho ainda precisa de ajustes. Vez por outra, confunde a nota de R$ 5 com a de R$ 10 por causa da tonalidade próxima. Há equipamentos importados capazes de identificar cores. Mas não têm a função de reconhecer também o dinheiro. A maioria é feita nos Estados Unidos, onde todas as notas são verdes. A versão tropical tem outras vantagens. Além de falar português, é mais barata. Quando for para o mercado, dentro de dois meses, deverá sair para o usuário final por cerca de R$ 500. A intenção de Gil é ganhar escala e chegar a um valor perto de R$ 100. Um leitor de cores importado custa hoje R$ 1.200 na Laramara, a Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual.

O envolvimento com a questão social se deu cedo para Gil. A casa onde cresceu, em São Paulo, fica a quatro quarteirões de uma favela. Desde pequeno, conviveu com a vizinhança pobre. Começou a fazer trabalho voluntário na adolescência. “Não queria fazer voluntariado só no fim de semana, mas não encontrava um jeito de viver disso”, diz. Foi quando, em 2009, ele conheceu o Unreasonable Institute, uma incubadora americana que seleciona jovens do mundo todo para um programa de dez semanas no Colorado. Faltava apenas uma ideia. Na época, ele namorava a também estudante de engenharia da computação Nathalia Sautchuk, na USP. Ela havia feito o protótipo de um leitor de cores para uma disciplina da faculdade. Eles decidiram então aprimorar o trabalho e inscrevê-lo. A Auire concorreu com 284 projetos de inventores. Foi um dos 25 escolhidos. O único de uma equipe brasileira. Gil combinou com Nathalia que ele iria para o Colorado. Lá aprendeu estratégias de marketing e como elaborar um plano de negócio. Depois do curso, o casal abriu a empresa. Mas o namoro acabou, e Nathalia saiu do projeto.

O potencial (tanto econômico quanto social) da Auire parece grande. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), há no mundo 314 milhões de pessoas com algum problema visual. Cerca de 87% vivem em países pobres. Só o Brasil tem 148 mil cegos. Como Leonardo Ferreira, de 23 anos, que nasceu cego no interior de Pernambuco. Na esperança de que o filho conseguisse enxergar, seus pais o levaram para São Paulo. Aos 4 anos, o menino passou por uma cirurgia de glaucoma e ganhou 15% da visão. Aos 15, ficou cego de novo. Ferreira teve tempo de conhecer as cores. Acha que branco “cai bem” com preto. E que amarelo não combina com roxo. Quando se veste pela manhã, reconhece as roupas pelo tato. Tem tudo decorado na cabeça. Mas para uma peça nova precisa de auxílio. “O leitor nos dá mais independência e autoestima”, diz Ferreira, que testou o aparelho. O equipamento faz mais que ajudar os deficientes a se adequar à estética do mundo dos que enxergam. “Hoje, quando um cego compra algo, ele precisa confiar em quem seleciona as notas do troco. Agora, poderemos conferir nós mesmos”, afirma. É mais um passo para a autonomia financeira.

Luis Nassif

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