The Sopranos Again, por Jorge Alberto Benitz

The Sopranos Again

por Jorge Alberto Benitz

O relançamento da série The Sopranos pela HBO vem criando discussões de toda ordem. Discussões onde surgem teses interessantes e oportunas. Uns dizem que nada na TV foi feito com a mesma qualidade, com a mesma ousadia artística, com a mesma pegada alcançada nesta série, enfim.  Outros a acusam de ao glamourizar o anti-herói ter criado condições para o surgimento dos Trumps e Bolsonaros da vida. 

No caso dos que defendem a tese de que nada foi feito depois capaz de rivalizar ou mesmo seguir The Sopranos, como Alejandro Chacoff no artigo “Sem Herdeiros” publicado na revista Piauí, embora convincente e pertinente quando evoca o fato dela trazer, como nenhuma depois, à linguagem televisiva o vazio existencial no capitalismo tardio, a autoconsciência metaficcional, personagens comuns deprimidos e medicados, peca por centrar somente nestes aspectos quando deveria perceber que algumas séries posteriores tiveram méritos, surfando na onda inovadora representada por Sopranos, ao ousar criticar, por exemplo, a precarização da classe média americana e o sistema de saúde Pré-ObamaCare como em Breaking Bad e o racismo antimuçulmano pós- 11 de setembro como em “The Night Of” (vide artigo que publiquei no OI sobre este ultimo tema). 

Quanto aos que culpam as séries como Família Soprano por glamourizar o anti- herói, por humanizar, mesmo sem que tenha feito algo deliberado neste sentido, o sujeito comum que despido de valores republicanos e democráticos se vê refletido em personagens poderosos incultos, racistas, misóginos, xenófobos, indiferentes aos sofrimentos do outro. Tony Soprano mata o próprio sobrinho Chris. Nos anti- heróis como Tony Soprano inexiste também o desejo de transcendência do senso comum egoísta e inescrupuloso como ocorre no caso dos heróis que mesmo quando são pessoas comuns ou até transgressores tentam de algum modo ao fim e ao cabo atender um valor civilizatório virtuoso e nobre. 

Para piorar os anti- heróis cometem, como Deuses do Olimpo, vinganças cruentas, homicídios, estupros, crimes hediondos, sem nenhum sentimento de culpa. Por exemplo, Tony Soprano é um fervoroso católico que apesar de cometer todo o tipo de pecado grave convive muito bem com isso. Se não estou enganado, sua síndrome de pânico tem mais a ver com sua mãe castradora ou com um evento, narrado por ele a psicanalista, na infância que presenciou envolvendo seu pai do que com a vida criminosa que leva. O sujeito comum que fazia parte antes do advento da maioria silenciosa e agora vocifera na internet também exercita a hipocrisia em um grau que pode ou não se aproximar dos personagens mafiosos e transgressores só perdendo por não ter o poder e o desco mpromisso na intensidade destes com qualquer valor ético. 

Quanto ao descompromisso ético e hipocrisia, basta ver a avalanche de casos registrados na internet de “gente de bem” que vestiu a camisa amarela e foi para a rua se manifestar contra a corrupção pego depois cometendo grossa corrupção. São deputados federais e estaduais, vereadores, médicos, empresários, funcionários públicos, juízes, promotores, profissionais liberais e o diabo. Aqui reside a identidade de grande parcela de pessoas com mafiosos e transgressores de toda ordem como sujeitos capazes de concretizar os desejos obscuros daqueles que estão se lixando para valores democráticos e vibram por poder enfim demonstrar com orgulho a sua ignorância e seu ódio e ressentimento de medíocre a tudo que signifique cul tura e civilização.  

O mundo do crime representa um mundo dos sonhos deste tipo de gente, mesmo que elas não percebam sua afinidade por se acharem, como já disse antes, “gente de bem” que somente partilham opiniões aparentemente hegemônicas nos meios sociais em que vivem. Este é um mundo pré- socrático, pré- racional, que deu voz e organizou os imbecis, como disseram, respectivamente, Umberto Eco e Javier Marías; um mundo onde se joga fora a tolerância com o que pensa ou é  diferente e se pode dar vazão aos instintos mais primitivos defendendo ou mesmo cometendo a vingança pessoal, o homicídio, o racismo, a misoginia, a tortura do adversário e dos inimigos e ser curtido por defender estas bandeiras. 

Daí que espertalhões com um perfil avesso as ideias civilizatórias e dotado de um analfabetismo político igual ao do seu público-alvo, que abominam não só a esquerda, mas os valores progressistas e democráticos iluministas como um todo, perceberam com o advento da internet o quanto são fortes e engataram suas carreiras políticas neste movimento reacionário em direção a barbárie. 

Na biografia de Freud escrita por Elisabeth Roudinesco ela comenta que Freud “após reformular sua concepção de conjunto do psiquismo. Substituía o antigo dualismo pulsional por um novo e, às antigas instancias da primeira tópica – consciente, pré- consciente e inconsciente –, acrescentava as de uma segunda: o eu, o supereu e o isso” e complementa logo adiante, concluindo que “Após recusar toda herança filosófica, Freud agora contemporizava, introduzindo em sua reforma da psique dois dos maiores nomes da filosofia alemã: Kant e Nietzsche. Do primeiro, aproveitava o imperativo categórico, transformado em supereu, e do segundo “a impessoal submissão às necessidades do ser”, retomada por Grodeck sob a forma do isso. ” 

Pegando carona nesta leitura freudiana pode- se dizer que nunca antes na história recente pós- segunda guerra mundial – ou pós- terceira guerra mundial. Estou confuso –  os valores do isso, no que tem de mais primitivo e bárbaro, estiveram tão em alta, para o desgosto de todos os que defendem não a volta de um supereu nos moldes repressivos vigentes em uma sociedade patriarcal, mas um mundo que além de mais compromissado com o meio ambiente seja mais livre, justo e igualitário.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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