A segunda abolição da escravatura, por Juliane Furno

O trabalho doméstico seguiu carregando características similares às vivenciadas na escravidão colonial, prioritariamente a sua característica servil. A empregada era a ‘agregada’ que, mesmo depois de formalmente livre, seguia como ‘dependente’

Do Brasil Debate

A segunda abolição da escravatura, por Juliane Furno

Recentemente, a presidente Dilma sancionou sete dos novos direitos das trabalhadoras domésticas. São eles: adicional noturno; obrigatoriedade do recolhimento do FGTS por parte do empregador; seguro-desemprego; salário-família; auxílio-creche e pré-escola; seguro contra acidentes de trabalho; e indenização em caso de despedida sem justa causa.

No entanto, ainda resta um conjunto de direitos para que – finalmente – as trabalhadoras domésticas possam usufruir das conquistas trabalhistas em iguais condições aos demais trabalhadores formais brasileiros.

A primeira abolição da escravatura foi realizada em 1888, e a segunda parece ter sido agora, porque anteriormente a esse conjunto – ainda que limitado de direitos – as trabalhadoras domésticas permaneciam em amplas condições de vulnerabilidade e instabilidade social.

A carteira de trabalho ainda é um elemento importante para gozar dos benefícios sociais e trabalhistas e, no entanto, ainda não é uma realidade para muito mais da metade das que se dedicam a esse trabalho.

O trabalho doméstico seguiu carregando características similares às vivenciadas na escravidão colonial, prioritariamente a sua característica servil. Segundo o sociólogo Jessé Souza, a trabalhadora doméstica – componente da categoria social da ralé brasileira – mantém sua posição de “agregada” social. Dessa forma, passa de uma situação de trabalhadora formalmente livre para substancialmente dependente.

A quantidade demasiada de mulheres – especialmente negras – no exercício do trabalho doméstico também é resultado da nossa singular formação histórica que construiu um exército de mão de obra “sobrante”, pela impossibilidade de o mercado de trabalho absorver o trabalhador livre.

Desse excedente de mão de obra restou às mulheres o caminho da inserção no mercado mediante a manutenção dos hábitos de nobreza das elites aculturadas brasileiras. Além disso, a presença significativa de trabalhadores à margem do mercado pressionou os salários para baixo, sendo possível a elite dispor de um verdadeiro exército de serviçais a um custo inexpressivo.

É notória a correlação positiva entre crescimento econômico e diminuição da oferta de serviços domésticos. Em 2009, o trabalho doméstico representava 6,4% dos postos de trabalho, no ano de 1999 era 7,4%.

Dessa forma, os governos petistas lograram uma estratégia de desenvolvimento econômico que, embora muito recuada, aliou crescimento econômico com políticas sociais. Bastou uma mudança singela no custo do trabalho doméstico para que as “Madames” saíssem às ruas erguendo cartazes que diziam que agora as empregas domésticas estavam muito abusadas e cobrando muito caro.

No entanto, segundo o professor Marcio Pochmann, no Brasil o pagamento do trabalho doméstico representa escassos 1,6% do total das despesas das famílias brasileiras, parcela relativamente menor que as despesas com energia elétrica (2,2%), telefone (2,4%) e remédios (2,2%).

Em que pese o alarde social, cálculos simples indicam que salários de até R$ 1.247,00 são tributados com uma alíquota de INSS de 8%. Isso representa acréscimo de apenas 172,80, sendo que o gasto com o FGTS mantém-se na casa dos R$ 80,00. São valores baixos e que não justificam a “comoção social e midiática” que apregoa a possibilidade de aumento generalizado de desemprego. Entretanto, para as trabalhadoras, esse valor representa a conquista de segurança futura.

Ainda para o professor Marcio Pochmann, mesmo representando menos de um terço do total das ocupações do país, esse segmento responde por um a cada dois postos de trabalho assalariado sem carteira assinada, além de absorver 30,5% das vagas de autônomos, que geralmente funcionam sem proteção social e trabalhista no Brasil.

Entre 1979 e 2009, o emprego com carteira assinada dos trabalhadores domésticos cresceu míseros 0,8%, em média, pois passou de 21,9% para 27,9%. Seguindo esse ritmo vamos ter que aguardar mais 120 anos!

Juliane Furno – É graduada em ciências sociais pela UFRGS, mestranda em desenvolvimento econômico na Unicamp e militante do plebiscito constituinte do comitê Unicamp

Crédito da foto da página inicial: Marcha da Consciência Negra em São Paulo, Marcelo Carmago/ABr

 

 

Redação

2 Comentários

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  1. Uma abolição “financeira”,

    Uma abolição “financeira”, tudo bem, é um avanço, por garantir direitos trabalhistas aos empregados domésticos, mas o tratamento não é igual ao de um trabalhador de outras áreas, há uma submissão muito grande ainda.
    O filme “Que horas ela volta” retrata isso de forma perfeita, aboliu, mas não libertou, não são sinônimos.

  2. É o crescimento da economia que faz a “abolição”

    Em 2009, o trabalho doméstico representava 6,4% dos postos de trabalho, e em 1999, esse percentual era 7,4%. É o crescimento da economia que abre outras ofertas de emprego mais atrativas que o trabalho doméstico, que desaparece à medida que seu custo sobe além do que as “madames” estão dispostas a pagar. É o mercado de trabalho, e não a caneta do governo que determina o valor dos salários. Os encargos trabalhistas apenas determinam quanto do valor de mercado será pago direta ou indiretamente, ou em outras palavras, quanto entrará no bolso do empregado e quanto entrará no bolso do governo, via encargos depositados em bancos estatais.

    Como o governo está necessitado de aumentar a arrecadação, vemos o porquê de tanta preocupação com direitos trabalhistas.

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