As reformas trabalhistas e a tradicional retórica da modernização, por Raphael Silva Fagundes

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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As reformas trabalhistas e a tradicional retórica da modernização

por Raphael Silva Fagundes

Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude

Guiseppe Tomasi di Lampedusa

É extremamente curioso e sintomático o discurso do governo golpista, das classes empresariais e da grande mídia em insistir na modernização como um argumento para conseguir o que desejam. Esta retórica se apóia no fato de a maior parte do discurso persuasivo ser ipso facto dissuasivo.[1] Está na cartilha da argumentação. Em relação ao projeto das reformas trabalhistas, o objetivo da retórica da modernização é nos dissuadir das conquistas dos trabalhadores realizadas ao longo dos anos. O ministro do trabalho Ronaldo Nogueira disse, ainda nos primeiros passos do governo Temer, que “não podemos confundir a preservação de direitos com a modernização. A modernização é fundamental para que haja uma estabilidade no mercado e para o trabalhador”.[2] Um discurso ameno meses antes de se dizer que seria necessário “cortar na carne”.

No 1° de maio Temer anunciou: “Estamos fazendo a modernização das leis trabalhistas e você terá inúmeras vantagens”.[3] O orador arguto primeiro exclui o ouvinte, legitimando o seu lugar de poder e de benfeitor, depois o inclui através das supostas vantagens que apresenta. Ele casa os seus interesses com os interesses do auditório. O semiolinguista Patrick Charaudeau destaca que essa é uma fórmula importante para o orador tocar o outro[4] e realizar a trama do poder.

Depois de exigir coragem do governo para criar um projeto de terceirização claro, a retórica da modernização é apreendida pela senhora dos ideais liberais e da predominância do mercado no Brasil, Miriam Leitão: “O Brasil precisa modernizar sua legislação trabalhista para adaptá-la à maneira como se trabalha atualmente e também para tentar incluir nas regras trabalhistas mais brasileiros que hoje atuam na informalidade”.[5]

Claro que esse discurso será o mesmo que o do presidente da Mercedes-Benz no Brasil. Em entrevista para o Estadão, Philipp Schiemer declara que:

Temos uma discrepância forte, pois de um lado falamos da indústria 4.0 e de outro temos uma lei trabalhista de 1940. É preciso modernizar essa legislação. Ninguém quer tirar direitos dos trabalhadores, mas é preciso acabar com a insegurança jurídica das empresas.[6]

Esses discursos trazem à tona o que podemos denominar de “argumento da direção”, uma estratégia que estabelece etapas para se atingir um objetivo maior.[7] No caso aqui explanado, sustenta-se a ideia de que, para nos tornarmos modernos, é necessário atualizar as Leis Trabalhistas ao que se chama de Quarta Revolução Industrial.

Uma tradição retórica

Toda essa retórica é antiga, vem desde o “empirismo mitigado” do Marquês de Pombal, onde o Estado deveria ser o grande investidor nas ciências aplicadas, garantindo “a formação da elite burocrático-técnica de que precisa[va]”, sem nenhum interesse pelo gênero humano envolvido.[8]

No entanto, em outros tempos, os termos usados não eram os mesmos de hoje. As palavras da moda eram “civilização” e “progresso”. José Bonifácio é um grande exemplo dessa retórica ao argumentar que Portugal era um reino preso ao passado e que, no Brasil, estaria o destino do reino português. A colônia, com sua população peculiar e “sem história”, não estava presa aos preconceitos imemoriais, por isso teria um futuro para trilhar. O problema do Brasil não seria os selvagens ou os bárbaros, pois estes eram capazes de aprender a civilização.[9]

Mas a Independência veio e, apesar de seus ideais modernos, a voz do patrono dos acontecimentos de 1822 logo foi rejeitada pelas elites que se encastelaram no poder. Mas a retórica do progresso e da civilização permaneceu saudável mesmo sobre as calejadas costas negras. O visconde de São Leopoldo, senador do Império, dizia que o Brasil estava posicionado “no ponto geográfico o mais vantajoso para o Comércio do universo”.[10] Um fenômeno natural que atraia as nações que, em busca do lucro, nos trariam a civilização. Outro interesse que nossa natureza despertava nos estrangeiros era o conhecimento científico, daí conclui o visconde: “tudo, enfim, pressagia que o Brasil é destinado a ser, não acidentalmente, mas, de necessidade, um centro de luzes e civilização, e o árbitro da política do Novo Mundo”.[11] Não se mencionava que tudo era edificado sobre o suor e o sangue dos desafortunados escravos.

A República chegou com o seu discurso de “ordem e progresso” e não mudou muita coisa, embora a escravidão tenha sido abolida anos antes, ainda no Império. Basta lermos algumas crônicas de João do Rio para entrarmos em contato com a situação deplorável dos cortiços que consumiam o centro do Rio de Janeiro. Contudo, o trabalhador era visto como o novo agente modernizador, símbolo das civilizações evoluídas e do progresso. Mas o modelo econômico de exportação não se alterou e o ideal modernizador cristalizou-se sob a ótica do pensamento de Júlio de Castilhos (1860-1903) que “cooptou a retórica positivista como ideologia estatizante e reformista, contra as velhas lideranças liberais e conservadoras”.[12]

A ditadura militar também introduziu o ideal de um Estado patrimonial modernizador. Antonio Paim salienta que o objetivo da Escola Superior de Guerra era a “promoção da racionalidade na atuação do Estado”.[13] No entanto, o governo, com seus tecnocratas, concedeu “indiscriminadamente subvenções e subsídios para a burguesia e isenções para militares, juízes e deputados”, enquanto ao cidadão pobre poucos privilégios foram dados.[14] Além disso, o regime militar teve como objetivo excluir da política os trabalhadores, diferente da era Vargas (1930-1945) que os incluiu, ainda que de forma tutelar.

Hoje a retórica da modernização que se edificou em relação às reformas trabalhistas está em comparação ao modelo adotado desde os anos 1940, quando o Estado Novo criou a CLT como consequência das agitações operárias. Na época, no Brasil havia uma burguesia industrial fraca que não por isso deixou de pressionar o Estado. O populismo e o trabalhismo foram formas adotadas para equilibrar os interesses dos operários e das classes dominantes, incluindo os trabalhadores na política de forma subordinada, arrefecendo os conflitos de classe.[15]

No entanto, os anos se passaram e a burguesia industrial se fortaleceu, tanto a nacional quanto a estrangeira, e exige agora do governo a mudança das leis trabalhistas, para adequar as relações de trabalho aos seus interesses lucrativos. O Estado sai de cena para dar espaço ao mercado. Entra um e sai o outro e nada muda. A elite burocrática-técnica não é mais para compor as fileiras do Estado, mas para agigantar os lucros do capital. Com uma burguesia forte, em um cenário onde uma alternativa socialista tornou-se pífia, esse processo de “conciliação” entre as classes, intermediada pelo Estado, tenderá para o lado dos mais favorecidos, dando, na verdade, uma continuidade ao que foi iniciado na ditadura militar.

Temos que tomar muito cuidado com essa retórica que veste o discurso com uma roupagem moderna e progressista quando, na verdade, o que se pretende é manter o país em sua posição tradicional no jogo de poder do sistema mundo. Ao agenciar o sentimento de esperança em uma população que passa por um momento difícil, essas estratégias argumentativas precisam ser observadas para que possamos desnudar as especulações interesseiras e supostamente lógicas que pretendem mostrar apenas uma perspectiva da solução do problema.


Raphael Silva Fagundes – Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.

[1] REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Trad: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 140.

[2]CORDAN, Natália e CUCOLO, Eduardo. Novo ministro defende a modernização da lei trabalhista, sem retirar direitos. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/05/1770789-novo-ministro-defende-modernizacao-da-lei-trabalhista-sem-retirar-direitos.shtml

[3] Temer diz que 1° de maio é momento “histórico” com reforma trabalhista. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/05/1880121-temer-diz-que-1-de-maio-e-momento-historico-com-reforma-trabalhista.shtml

[4] CHARAUDEAU, Patrick. Pathos e discurso político. In: MACHADO, Ida Lucia; MENEZES, William. e MENDES, Emília. (orgs.). As Emoções no Discurso. Vol. 1. Trad: Emília Mendes. Campinas: Mercado das Letras, 2010. p. 244.

[5] LEITÃO, Miriam. Reforma trabalhista ajudaria a modernizar o mercado de trabalho. Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/reforma-trabalhista-ajudaria-modernizar-o-mercado-de-trabalho.html

[6]SILVA, Cleide. “É preciso modernizar as leis trabalhistas”, entrevista com Philipp Schiemer, presidente da Mercedes-Benz no Brasil. Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,e-preciso-modernizar-as-leis-trabalhistas,10000076102

[7] PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de Argumentação: a nova retórica. Trad: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão, São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 337-339.

[8] RODRIGUEZ, Ricardo Véllez. “Tradição e modernidade no mundo ibero-americano: o caso brasileiro”. In: PRADO, Maria Emília. (org). Tradição e Modernidade no Mundo Ibero-Americano. Rio de Janeiro: UERJ, 2004, p. 67.

[9] ARAUJO, Valdei Lopes de. A Experiencia do Tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008. p. 67.

[10] SÃO LEOPOLDO, Visconde de. “O Instituto Histórico Brasileiro é o representante das ideias de Ilustração, que em diferentes épocas se manifestaram neste continente”. R.IHGB, Rio de Janeiro, 2 ed, Tomo 1, 1856. p. 61. (1839). Disponível em http://www.ihgb.org.br/rihgb/rihgb1839t0001c.pdf. Acesso em 15 de jul, /2011.

[11] Ibid.. p. 62.

[12] RODRIGUEZ, Ricardo Véllez. “Tradição e modernidade no mundo ibero-americano: o caso brasileiro”. In: PRADO, Maria Emília. (org). Tradição e Modernidade no Mundo Ibero-Americano. Rio de Janeiro: UERJ, 2004, p. 70.

[13] PAIM, Antonio. A querela do estatismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileira, 1978. p. 117.

[14] RODRIGUEZ, Ricardo Véllez. op. cit. p. 74.

[15] OLIVEIRA, Francisco de. Ditadura e crescimento econômico: a redundância autoritária. REIS, Daniel Aarão, REDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (orgs.) O golpe e a ditadura militar (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004. pp. 118-119.

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