Rui Daher
Rui Daher - administrador, consultor em desenvolvimento agrícola e escritor
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Estado, capital, trabalho e Brasil, por Rui Daher

Cafezal

por Rui Daher

de CartaCapital,

“É de manhã, vou pela estrada, flor da madrugada, e foi por ela que o galo cocorocó”. É cantarolando os versos de Caetano Veloso fora da ordem que sigo bem cedinho para a casa de um homem que trabalhou muito e hoje descansa. Faz lá as coisas de sua vontade, como fez uma família do trabalho, com direitos sob regras estabelecidas e nem sempre respeitadas. Laralalalá, é de manhã, e cada estrela é uma flor.

Quando trabalhou forte, duro, todos os dias, da madrugada até a noite, os montes de café eram cobertos à tardinha protegidos do sereno noturno, para no dia seguinte chegar à temperatura de tulha, depois de várias vezes rodado ao sol. Lembra-se, com saudade, que a molecada, filhos dos patrões e seus amigos, deixavam-no louco. Descobriam os montes e lá passavam com suas bicicletas. Reclamava e era respeitado.

Na época, o que vinha do campo se transformava. Gente forte de outras regiões do país vinha ajudar São Paulo a se industrializar. Era agronegócio, ainda não criticado, pois benfeitor.

Estamos sentados na varanda. As cadeiras são aquelas espreguiçadeiras, quase-praia, assentos e encostos feitos de um plástico tubular grosso, como espaguetes coloridos, deixam-nos confortáveis. A conversa flui sem que eu me lembre de sair atrás de palestras para públicos distraídos.

Da casa do senhor José Carlos, Carlão como ele prefere, o primeiro filho sai para o trabalho. Somos apresentados.

– Prazer.

– Tchau, pai. A bênção.

– A bênção, meu filho. Vai com Deus.

– Amém, fiquem com Deus.

Minutos mais tarde, chega da rua outro filho. Este pega mais tarde no serviço. Desce da moto e nos cumprimenta.

– A bênção, pai. Peguei o pão.

– Deus te abençoe, meu filho.

A conversa continua. Qual o melhor jeito de apanhar o café, vale a pena arrendar canaviais para usinas quebradas, difícil plantar grandes áreas com hortaliças sem pivô, as grandes famílias centenárias que de tanto brigarem por heranças fizeram na região uma quase reforma agrária produtiva.

Quando o segundo filho se despede, alerta ao pai:

– Pai, hoje tem a Abertura. Chego pra vermos juntos.

Saio de lá com a convicção de que alguma força estranha, à noite, fará eu chutar o balde das inconformidades e assistir à tal Abertura. Poderão ser agronegócio líquido de Salinas/MG, a voz de Cesária Évora gravada no celular, o ódio por quem usurpou a autoria da obra. A outra Abertura, da liberdade e da inclusão, esta demorará a voltar.

No momento, o Brasil passa por desgraças políticas, econômicas e sociais que “nunca antes na história deste País” um grupo da elite teve coragem de fazer. Nem mesmo quando instrumentalizaram os militares e vestiram-lhes a carapuça. Inéditos o descaramento, o disfarce tosco, a ideia do nada.

Voltamos a insuflar a desigualdade e quem se insurge contra isso recebe, como resposta, “mas sempre foi assim”. Nem por um, vá lá, pé-de-pato-amarelo sempre foi assim.

Países que abandonaram o feudalismo, diferente do que se fez e faz no Brasil, souberam, pelo menos, diminuir a desigualdade e criaram sociedades mais justas. Pena não estarem preservando o feito.

Estudos de Barry Eichengreen e J. Bradford DeLong, ambos economistas da Universidade da Califórnia, em Berkeley, respondem ao vaticínio escapista da direita.

Para o primeiro, em 250 anos, seis fases do desenvolvimento desmentem isso: 1) entre 1750 e 1850, os benefícios da revolução industrial britânica canalizados para as classes médias urbana e rural; 2) mais um século, e “certas regiões do mundo souberam materializar ganhos tecnológicos industriais e pós-industriais”; 3) a primeira era da globalização [para mim, imperialismo], entre 1850 e 1914, melhorou o padrão de vida no mundo setentrional, especialmente Europa; 4 e 5) a ‘Era Dourada’, primeiro como decadência social na Europa, depois “revertida pela socialdemocracia, entre 1930 e 1980 (…) através do aumento de impostos aos ricos”; 6) finalmente, o momento atual.

Em todas as fases Estado, capital e trabalho se fizeram conformes para diminuir as desigualdades. Onde? No mundo setentrional. Significante perguntar por que isso não se reproduziu na América Latina e África?

Das franjas do capitalismo que aqui tardio chegou, a conformação se deu ao reverso, para concentrar a renda, esticar privilégios às elites e ampliar as desigualdades e a falta de liberdade.

Ao contrário do que diz DeLong, nessas regiões a abolição da escravatura e “o relaxamento mundial de restrições fundadas em castas”, não foram expressivas para a melhor distribuição, mas tímidas, se arrastaram, e mal tiveram tempo de se afirmar antes que viesse a atual etapa do capitalismo, de caráter puramente financeiro e restritivo aos processos produtivos, mercantis e de trabalho.

Quem pôde ser Carlão foi, quem não foi não será mais.   

 

4 Comentários

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  1. Estado, capital…

    Se me permitir, gostaria de falar de outra pessoa que conheci e faleceu há pouco tempo, com quase 100 anos,. Um espanhol chamado Isabello. Criou 12 filhos carpindo café na região de Marilia. Dizia que quando chegou ao Brasil, o trem chegava até esta cidade. Daí para frente até Pompeia, que viu surgir, foi derrubando mata no machado e plantando café. Não é História  que lemos em lvros. A história nossa é muito recente. Onde está o café de SP? Os barões do café, tão afamados latifundiários? Segundo este sr. nunca os viu ou conheceu. O que dizia é que conheceu muita gente que ficou rica, acordando às 4:30 e trabalhando embaixo do sol. Onde está o interior de SP? Podemos falar que Araraquara, Araçatuba, Barretos, Ribeirão Preto, Marilia, S. J. dos Campos, Sorocaba, Campinas podem ser definidas como “cidades do interior”? Vamos começar a nos enxergarmos e nos respeitarmos. Viva a agropecuaria brasileira.  E outra coisa é que com esta falta de chuva, gostaria que visitassem PIRAPORA DO BOM JESUS, à meia hora das marginais (mas convidem o pessoal da SOS Mata Atlâmtica, que levam um bolada do governo estadual para falarem que está melhorando a qualidade das águas do rio Tiête. ONG organização NÃO governamental?)). Vá sentir o frescor da natureza paulistana. Podem ir por dentro de uma “Vila Alpha”, bairro de endinheitados que pagam uma fortuna para poderem também “apreciar este ar tão natural”. Ironia do caminho vocês passarão por uma “Parque Ecológico”.  Abs.

    1. Zé Sérgio, caro

      Não importa que nossa cultura manteve o termo “do interior” para cidades como as por você citadas. Importa que a pujança urbana que ganharam veio e, em muitas delas, continuam a vir da nossa agropecuária. Incessante, teimosa em se manter, não mais com barões, latifundiários, mas sim com outra estrutura de área, produção e produtividade.

      O Valor Bruto da Produção agrícola paulista, nos últimos anos, mesmo com a cana-de-açúcar em má etapa, foi líder nacional, representando entre 15 e 16% do total, representativos em mais de 30 culturas diferentes. E, sim, temos muito verde bem pertinho de nós. Basta sair de casa e dos chavões para ver. Abraços. 

  2. Querido amigo, Rui

    Tenho lido seus textos tanto no GGN, quanto na Carta Capital e me servem sempre como um atestado vivo de nossos Brasis profundos. Acompanho suas andanças capitais e vou bebendo delas “goles de pinga da melhor qualidade”. Sempre.

    Já lhe escrevi que de agricultura sei bem pouco. Vou sabendo aqui com quem me ensina a semear, adubar, colher. Mas bebo o lirismo da terra como se degustasse o seu sabor. E seus textos, repletos de agridoce, me facilitam sacudir das mãos e das couves e alfaces a terra que nela há e saboreá-las em seguida.

    Senti saudade de dialogar com você por aqui. Também.

    Abraço.

    1. Bem-vinda, querida Odonir

      Aqui onde mais gosto de dialogar. Com todos, mesmo alguns chatos que não têm a sua poética e compreensão política, mas me instigam a argumentação.

      Só não acompanho tanto o quanto gostaria o seu blog porque estamos entrando no momento de semear, adubar, e eu ganhar um pouquinho para as minhas pingas.

      Abraço amigo

      Rui

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