Produtividade, composição setorial da produção e hiato tecnológico

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
[email protected]

 

 Do Blog do José Luis Oreiro 

 

Recentemente uma polêmica envolvendo Paulo Gala e Samuel Pessoa pôs em relevo a questão dos determinantes do crescimento da produtividade do trabalho. Paulo Gala, em artigo publicado no Valor Econômico, apresentou a tese keynesiano-estruturalista de que a dinâmica da produtividade do trabalho depende da composição setorial da produção. Mais especificamente, o baixo ritmo de crescimento da produtividade do trabalho na economia brasileira seria o resultado de uma transformação estrutural perversa ocorrida nos últimos anos, notadamente durante o governo Dilma Rouseff, no qual ocorreu um aumento significativo da participação do setor de serviços, particularmente o setor de serviços associado ao consumo das famílias, no emprego e no produto interno bruto. Como a produtividade do trabalho tende a crescer menos nesse setor, segue-se que a mudança da composição setorial da produção em direção ao setor de serviços teria levado a uma redução do ritmo de crescimento da produtividade do trabalho na economia como um todo, uma vez que a mesma é apenas a média ponderada entre as taxas de crescimento da produtividade nos diversos setores e o peso do setor menos dinâmico teria aumentado nos últimos anos.

Samuel Pessoa em artigo publicado na Folha de S. Paulo contesta essa visão. Para ele a produtividade do trabalho não depende da composição setorial da produção mas das características individuais dos trabalhadores. Isso porque os diferenciais de salário dentro de cada setor de atividade mostrariam de forma inequívoca que existe um “prêmio salarial” para os trabalhadores com mais “capital humano”. Além disso, estudos que comparam a produtividade do trabalho entre setores equivalentes em diversos países (por exemplo, China versus Estados Unidos), mostram a existência de diferenciais de produtividade importantes. Dessa forma, as diferenças observadas na composição setorial da produção não podem explicar as diferenças observadas na produtividade do trabalho. Daqui se segue, portanto, que “a produtividade não é um atributo setorial”.

A argumentação de Pessoa, no entanto, é pouco convincente. Em primeiro lugar, a existência de diferenciais de salário dentro de um mesmo setor não implica logicamente na inexistência de diferencias  de produtividade entre os diversos setores. Aliás, a produtividade do trabalho medida pelo valor adicionado por trabalhador é bastante desigual entre os diversos setores de atividade. Com efeito, conforme podemos visualizar na Figura 1, extraída de Marconi e Rocha (2011), a produtividade do trabalho difere bastante entre os setores de atividade na economia brasileira, a depender do grau de intensidade tecnológica do setor. A produtividade do trabalho na produção de manufaturados de alta e média-alta tecnológica é muito maior do que no setor de commodities agrícolas e extrativas, por exemplo. Isso significa que uma mudança na composição setorial da produção do ultimo setor para o primeiro deverá resultar, ceteris paribus, num aumento da produtividade média da economia.

É provável, contudo, que a produtividade do trabalho no setor de alta e média-alta tecnologia seja maior nos Estados Unidos do que no Brasil. Isso reflete mais a existência de assimetrias tecnológicas entre as empresas desses setores no Brasil e nos Estados Unidos do que a existência de diferenciais significativos no capital humano dos trabalhadores. De fato, me parece difícil aceitar a tese de que a diferença entre a Boeing e a Embraer se deva unicamente, ou principalmente, aos diferencias na formação científica e técnica dos engenheiros e demais trabalhadores dessas duas empresas. O mais provável é que a diferença decorra da existência de um hiato tecnológico entre as duas empresas, o qual, diga-se de passagem, parece estar sendo reduzido ao longo do tempo.

A existência de diferenciais de produtividade entre os mesmos setores de diversas economias não invalida, contudo, a tese de que mudanças na composição setorial da produção podem gerar mudanças significativas da produtividade média da economia. Na verdade a dinâmica da produtividade média do trabalho (na economia com um todo) vai depender da dinâmica do hiato tecnológico – a qual determina a dinâmica da produtividade relativa entre setores similares em países diferentes – e da composição setorial da produção. A produtividade média da economia como um todo pode ficar estagnada num contexto em que as melhorias decorrentes da redução do hiato tecnológico sejam compensadas por uma mudança da composição setorial da produção em direção a setores menos dinâmicos.

Outro ponto que me parece problemático na argumentação de pessoa é o timing da queda do ritmo de crescimento da produtividade. Ao que me parece há um consenso entre os economistas que o ritmo de crescimento da produtividade do trabalho se reduziu nos últimos anos. Se a explicação de Pessoa estivesse correta, então nos últimos anos deveríamos ter observado uma redução do ritmo de acumulação de capital humano no Brasil.  Mas aparentemente não é isso que estamos observando. Pelo contrário, uma das explicações dadas para a redução do ritmo de crescimento da PEA é precisamente o aumento do investimento em educação formal por parte dos jovens de 18 a 24 anos.

Em suma, não existem razões para descartar a hipótese de que o crescimento da produtividade depende, entre outros fatores, da composição setorial da produção. Está claro que este não é o único determinante da dinâmica da produtividade do trabalho. O tamanho do hiato tecnológico é também outro fator importante. No modelo desenvolvido por Verspagen (1993), por exemplo, quando o hiato tecnológico é inferior a capacidade absortiva de um determinado país – ou seja, a capacidade institucional e tecnológica das empresas desse país de absorverem os transbordamentos tecnológicos do exterior – então a produtividade do trabalho poderá crescer mais rapidamente no país retardatário do que nos países que operam na fronteira tecnológica. Nesse caso, os países retardatários poderão fazer o catching-up. Se o hiato tecnológico for muito grande, contudo, então as firmas do país não poderão absorver os transbordamentos tecnológicos e, dessa forma, ocorrerá o falling-behind. O investimento em educação é fundamental neste processo pois é uma das variáveis que afetam a capacidade absortiva de um país, mas certamente não é a única. Se assim fosse, Cuba, mundialmente conhecida pela qualidade do seu sistema educacional, seria um país muito mais rico do que é hoje.

Referências.

MARCONI, N; ROCHA, M. (2011). “Desindustrialização precoce e sobrevalorização da taxa de câmbio”. Texto para Discussão n.1681, IPEA/DF.

VERSPAGEN, B. (1993). Uneven Growth Between Interdependent Economies. Avebury: Ashgate Publishing Limited.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

4 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Síndrome de Macunaíma

    Por trás do argumento do Pessoa, está a velha ideia de que o povo brasileiro, logo os trabalhadores, sofrem da síndrome de Macunaíma: são preguiçosos pela própria natureza.

    Quem nunca ouviu falar da peça, entre no pesquisar logo aqui em cima do blog, digite o nome dele e encontrará uma longa ficha corrida desse Ramphastos tucanus.

    P.S. Pra quem não tem tempo ou tem preguiça para pesquisar: o distinto é do quadro de “especialistas” do Instituto Millenium, coleguinha dos Marco Antonio Villa da vida.

  2. Produtividade de qual trabalhador?

    Eu como engenheiro fico espantado com que facilidade os economistas flutuam sobre conceitos teóricos e levantam teses e planos de ação sobre idealizações que não existem. Não sei como eles estabelecem um mesmo padrão ou mesmo uma moda da produtividade brasileira.

    Estamos falando de qual Brasil, o Brasil-São Paulo que queria se tornar o centro do país em todos aspectos e não sabe nem gerenciar a sua crise hídrica, estamos falando do Brasil-Cerrado que se expande ano a ano sem pensar muito nas crises mundiais. Ou ainda estamos falando no Brasil-Nordeste, que recupera rapidamente um grande atraso que possuía nas décadas passadas.

    Perguntaria ainda, o setor de serviços em que há uma ênfase no artigo, qual região, qual setor específico que falam, estamos falando de um país escolarizado que praticamente estagnou ou de um país ignorante que a cada poucos anos acresce mais um ano na escolaridade média nacional.

    Não há neste país, como pode haver em alguns países europeus, um padrão ou uma norma  de comportamento médio que possa representar tanto do indivíduo como das demais instituições econômicas. Estamos na presença de diversos países, que são simplificados analiticamente pelos estudiosos pela sua incapacidade de perceber a nação como um conjunto de partes que completam o todo.

    A resposta de cada região e dentro destas regiões sub regiões que reagem diferente a qualquer estímulo externo, e se não somos um país mais dinâmico talvez seja mais pelas amaras teóricas que são colocadas por pseudo-intelectuais, tentando impor políticas únicas.

    Podemos nos comparar um pouco com a Europa, a produtividade de diversos países fora do eixo Alemanha-França cresceu em relação a estes muito mais, Portugal é um exemplo, porém as amaras que a política do euro ditada por intelectuais da economia, que não gostam de diferenças porque elas não se ajustam aos modelos teóricos e matemáticos, impede simplesmente o desenvolvimento de vários países.

    Caros economistas teóricos, se o número de variáveis cresce com o reconhecimento da diversidade, não é a realidade que está errada, são seus modelos.

    1. clap clap clap. Exatamente

      clap clap clap. Exatamente como aquela maxima: Estudo do choque elastico e inelastico de  cavalos – como modelo para o calculo imaginemos um cavalo duro e perfeitamente esférico!

  3. Abordagem teórica X prática
    Na minha opinião o Paulo fica mais perto da realidade, mas mesmo assim ainda peca por grossa generalização, o Brasil é grande e diversificado.
    Uma abordagem do problema da produtividade nacional ganha muito se for feita de trás para a frente, com modelos de contraste de fundo. Com isto na medida que se captura as idiossincrasias locais do trabalho, ao mesmo tempo já se vai afinando as correções.
    Agora, não podemos deixar de levar em conta os avanços da computação dos grandes bancos de dados e da inteligência artificial, que viabiliza uma abordagem estritamente analítica e individual, que dá uma posição numérica exata.
    Na minha opinião ambas as estratégias deveriam ser aproveitadas pelo governo, bem com incentivar industrias que são precursoras de inovações em seus setores, como a de bicicletas elétricas.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador