Sobreviver e se reinventar: dilemas do sindicalismo brasileiro pós-reforma trabalhista

Sobreviver e se reinventar: dilemas do sindicalismo brasileiro pós-reforma trabalhista

Anderson Campos, Andréia Galvão, Patrícia Lemos, Patrícia Vieira Trópia[1]

O sindicalismo brasileiro foi profundamente alterado pela reforma trabalhista de 2017. As modificações instituídas ampliaram as formas de contratação precárias (criação do contrato intermitente e do autônomo permanente exclusivo; ampliação das possibilidades de utilização do contrato parcial e temporário; regulamentação do home office; permissão para a terceirização de qualquer atividade; despadronização da jornada e da remuneração) o que afetou a base de representação sindical e colocou os sindicatos diante de um grande desafio: para onde crescer se o sindicalismo brasileiro continua representando predominantemente trabalhadores formais e estáveis?

Ao mesmo tempo, a reforma modificou a dinâmica da negociação coletiva: estabeleceu a prevalência do negociado sobre o legislado; alterou a hierarquia entre acordos, convenção coletiva e lei; proibiu a ultratividade das cláusulas negociadas e ampliou as possibilidades de negociação individual entre empregador e empregado. Justificada por seus defensores como uma forma de estimular a negociação coletiva e fortalecer os sindicatos, a reforma produz exatamente o oposto. Os sindicatos experimentam dificuldades em fechar acordos, devido à maior pressão patronal para instituir cláusulas desfavoráveis aos trabalhadores. Ao extinguir a obrigatoriedade de intermediação sindical na homologação das rescisões contratuais e esvaziar o papel dos sindicatos como representantes dos trabalhadores, a reforma busca enfraquecer a ação sindical. Soma-se a esse conjunto de mudanças o fim da obrigatoriedade do imposto sindical, que fragiliza financeiramente as organizações sindicais. Não obstante, os sindicatos resistem.

Os primeiros estudos sobre a reforma já apontavam que: 1) ela legaliza práticas já consagradas nas negociações coletivas, especialmente nos setores mais precarizados e nos sindicatos com menor tradição de organização; 2) a reação sindical foi politicamente defensiva, evidenciando a ausência de uma estratégia comum; e 3) as principais inovações empreendidas pelos sindicatos se concentravam no campo financeiro[2].

Para examinar o impacto da reforma sobre o sindicalismo brasileiro, realizamos uma nova pesquisa, desenvolvida por meio de surveys aplicados junto a delegados participantes dos congressos sindicais da CUT e da CSP-Conlutas, ambos realizados em São Paulo, em 2019, e entrevistas estruturadas com dirigentes nacionais de quatro centrais sindicais: CUT, CSP-Conlutas, CTB e UGT[3].

A pesquisa evidencia que o processo de degradação das condições de trabalho e proteção social, resultante da combinação entre reforma trabalhista; novas tecnologias e mudanças nas formas de produção; sobreposição entre crise econômica, política e sanitária no contexto de um governo explicitamente defensor da extinção do movimento sindical, colocou os sindicatos diante de muitos desafios: sobreviver, se reorganizar, negociar em condições desfavoráveis, defender sua relevância e a necessidade de sua existência.

Delegados sindicais da CUT e da CSP-Conlutas indicam que os dois principais impactos da reforma trabalhista são perda financeira e aumento da precarização das relações de trabalho. A perda de receita é indicada por 2 a cada 3 delegados da CSP-Conlutas e por 4 a cada 5 da CUT, enquanto o aumento da precarização por 6 a cada 10 delegados da CSP-Conlutas e por pouco menos da metade da CUT.

Coerente com a tendência nacional de queda constante na taxa de sindicalização, verificada pelo IBGE[4] desde 2012, a perda de sindicalizados também é percebida pelos pesquisados, embora seja proporcionalmente mais frequente entre os delegados da CUT (53,1%) do que da CSP-Conlutas (36,3%).

De acordo com 39,1% dos delegados da CSP-Conlutas e 31,9% da CUT, as entidades sindicais passaram a ter mais dificuldade para concluir acordos e convenções coletivas após a reforma. Ademais, houve pressão pela redução de direitos via negociação coletiva na opinião de 1 a cada 3 delegados da CSP-Conlutas e de 5 a cada 10 da CUT. Na percepção de 50,2% dos pesquisados da CSP-Conlutas e 47,9% da CUT, a terceirização constitui a mais frequente medida de flexibilização permitida nos acordos e convenções negociadas pelos sindicatos pós-reforma. Já o parcelamento de férias foi identificado por 1/3 dos pesquisados da CSP-Conlutas e 2/5 da CUT, enquanto cláusulas relativas ao teletrabalho foram apontadas por 1/5 dos pesquisados de cada uma das centrais.

As reações do movimento sindical aos impactos da reforma têm priorizado a sobrevivência das entidades e a preservação das estruturas administrativas existentes, por meio de iniciativas para reduzir a queda de filiados, manter ou aumentar a arrecadação e atrair novos sócios. Os sindicatos de base da CUT e da CSP-Conlutas buscam se adequar ao cenário de drástica redução financeira, redução dos espaços de negociação e representação e de aumento da pressão patronal para restringir direitos e benefícios. Por um lado, para manter e aumentar a arrecadação, mais de 2/3 dos delegados pesquisados das duas centrais indicam que foram feitas campanhas de sindicalização; menos de 1/3 dos delegados das duas centrais também indicou que foram introduzidas novas formas de contribuição, como a taxa negocial em contrapartida aos acordos coletivos. Para atrair novos sócios, foram utilizadas majoritariamente novas estratégias de comunicação ou maior investimento nessa área na percepção de quase metade dos delegados da CSP-Conlutas e de ¾ da CUT. Cerca de 1/3 dos delegados da CSP-Conlutas e quase metade dos delegados da CUT responderam que, para atrair novos sócios, também foram oferecidos serviços assistenciais e premiações. Por outro lado, as reações sindicais permanecem ancoradas aos limites da estrutura sindical e o sindicalismo evidencia dificuldades de se reinventar politicamente, superar o corporativismo e atuar de forma autônoma, o que nos leva a concluir que não houve um salto organizativo. Visando reduzir despesas, 1 a cada 3 delegados da CSP-Conlutas e 2 a cada 5 da CUT indicam que houve redução de apoio a movimento sociais e corte de recursos para manifestações. Além disso, 1 a cada 4 delegados da CSP-Conlutas e 1 a cada 3 da CUT afirmaram que suas entidades reduziram os custos com comunicação. Por sua vez, 1 a cada 10 delegados de cada uma duas centrais informam que houve compartilhamento de estruturas com outros sindicatos. A estratégia política de fusão com outros sindicatos é, todavia, absolutamente marginal entre as reações das entidades para reduzir despesas, tendo sido indicada apenas por 6,4% dos delegados da CSP-Conlutas e 4,9% da CUT.

Porém, a sobrevivência dos sindicatos não depende apenas de condições materiais. Ela requer também um trabalho político-ideológico que possibilite aos sindicatos resistir e enfrentar a lógica neoliberal e os limites impostos pela estrutura sindical. Sobre este último aspecto, as entrevistas com as lideranças nacionais evidenciam que é preciso urgentemente “reinventar” o sindicalismo. Para isso, destacam a necessidade de ampliar o trabalho de base, organizando os trabalhadores a partir dos diferentes territórios nos quais realizam suas atividades, bem como estender a representação em direção aos trabalhadores precários e informais, como é o caso dos trabalhadores de plataformas digitais.

Contudo, essas tarefas não podem ser realizadas sem que o modelo de organização sindical seja superado. Os dirigentes das centrais parecem ter consciência disso, mas os dados das pesquisas nos Congressos revelam que o apego à unicidade sindical ainda é muito grande entre os sindicatos de base. Ainda que haja dúvidas sobre o que fazer, parece-nos que os desafios acima indicados só poderão ser  enfrentados por meio de uma discussão efetiva sobre aquilo que é, historicamente, o calcanhar de Aquiles do sindicalismo brasileiro: um novo modelo de organização, que assegure plena liberdade e autonomia sindical.

[1] Anderson Campos (CESIT/UNICAMP), Andréia Galvão (IFCH/UNICAMP), Patrícia Lemos (CESIT/UNICAMP), Patrícia Vieira Trópia (INCIS/UFU), são pesquisadores da REMIR.

[2] GALVÃO, Andréia; TEIXEIRA, Marilane. Flexibilização na lei e na prática: o impacto da reforma trabalhista sobre o movimento sindical. In: José Dari Krein et al. Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil. Campinas: Curt Nimuendajú, 2018, p. 155-181; VÉRAS DE OLIVEIRA, Roberto; GALVÃO, Andréia; CAMPOS, Anderson. Reforma trabalhista: impactos imediatos sobre os sindicatos e primeiras reações. Cadernos do Ceas. v.248, p. 668-689, 2019.

[3] Tanto os surveys quanto as entrevistas são parte de uma pesquisa mais ampla, fruto de uma parceria entre o Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit-Unicamp) e o Ministério Público do Trabalho.

[4] Cf.

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/28667-taxa-de -sindicalizacao-cai-a-11-2-em-2019-influenciada-pelo-setor-publico.

Redação

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