Onde está o Estado?, por Róber Iturriet Ávila

 

Artigo do Brasil Debate

Por Róber Iturriet Ávila

Não raro há a veiculação da dissociação entre a arrecadação dos governos e o retorno de bens e serviços estatais. O intento, sistematicamente alardeado, é bem-sucedido em formar a opinião pública. Não é difícil de compreender a indignação gerada na população, sobretudo frente ao desconhecimento dos parâmetros de carga tributária e da precária informação das benfeitorias do Estado.

O obscurecimento e a naturalização das ações estatais permeiam o debate acerca da tributação. Os salários dos parlamentares e os casos de corrupção selam uma visão bem sedimentada, escamoteando as reais intenções da repetição de um mantra não verdadeiro, mas hegemônico.

Essa miragem transpassa e gera propositalmente uma cegueira coletiva, que, além de inverídica, está carregada de ideologia e atende a interesses específicos.

O Brasil é um país que oferece um sistema de saúde universal, desde a Constituição de 1988. O resultado disso pode ser observado nas taxas de mortalidade infantil e na ampliação da expectativa de vida desde então. Somos exemplo de vacinação e combate a doenças. Graças à ação do Estado a esquistossomose, a cólera e a leptospirose não são epidemias.

O Estado está na luz dos postes, nas estradas, nos calçamentos, no transporte urbano, no transporte aéreo, no recolhimento do lixo, na destinação do esgoto, na escola pública (da pré-escola ao pós-doutorado), no policiamento, na defesa territorial.

Essa é a parte mais visível. Mas há também Estado na forma de subsídios que garantem a energia elétrica, a produção de alimentos, o investimento em conhecimento, a aquisição de imóveis e o avanço técnico. Há Estado nas políticas de geração de emprego e de desenvolvimento econômico.

Ele está também na seguridade social, ou seja, nas aposentadorias, nas pensões por morte, nos seguros de maternidade e de invalidez. O Estado permite a mediação e o julgamento dos conflitos, a reclusão de malfeitores, além da própria organização das regras que nos permitem viver de forma civilizada e não no caos e na guerra como foi marcada a história humana.

Não há um dia sequer que qualquer cidadão não esbarre na ação do Estado e não se beneficie diversas vezes dela.

A carga tributária brasileira gira em torno de 36%. O PIB de 2014 deve fechar em, aproximadamente, R$ 5,155 trilhões. Isso significa que a renda per capita é de R$ 25.389,00. Nessa medida, cada brasileiro paga, em média, R$ 761,00 em impostos por mês para atender uma série de garantias legais e de reclamos sociais. Embora seja possível aprimorar a eficiência e reduzir o desperdício, para quem sabe fazer conta, salta aos olhos o óbvio: é um recurso escasso para tudo o que exigimos dos governos.

Outro jargão de senso comum é que se não fosse a corrupção, os serviços públicos seriam melhores. De acordo com a Fiesp, o País perde R$ 100 bilhões em corrupção. Ainda que esse dado não seja preciso e nem desprezível, representa apenas 1,9% do PIB. Faz falta, mas não resolve.

Em linha semelhante, o discurso de senso comum alega que os impostos servem para pagar os salários dos parlamentares. Não cabe defender o patrimonialismo e a exuberância do Congresso, de todo modo, o custo do parlamento brasileiro é de 0,19% do PIB. Já todos os funcionários dos 39 ministérios custam 1,2% do PIB.

As comparações corriqueiras com outros países também ignoram os dados. Na Noruega, por exemplo, a renda per capita é de US$ 100.818,00 e a carga tributária de 44%. Dessa maneira, cada cidadão contribui, em média, com R$ 8.800,00 mensais ao Estado. Ou seja, onze vezes mais do que o brasileiro. É lógico e racional que seus serviços públicos sejam onze vezes melhores do que os nossos.

Já nos Estados Unidos a carga tributária está em torno de 27%. Naquele país, entretanto, não há sistema de saúde pública, não há ensino superior gratuito e nem sistema de aposentadoria e pensões pelo Estado. O cidadão estadunidense que não possui seus serviços privados está à margem.

Um dos papéis do Estado é melhorar a distribuição e permitir melhores oportunidades a quem está na base da pirâmide social. Isso está ancorado na compreensão teórica de que o mercado não é plenamente eficaz em permitir oportunidades iguais a todos.

Quando se tem em conta que metade dos brasileiros recebe até R$ 1.095,00 mensais, logo se conclui que milhões de pessoas não teriam acesso algum à saúde e à educação não fosse o Estado. Ao se efetuar a conta de onde efetivamente é gasto, constata-se que 71% da arrecadação preenchem apenas três serviços: saúde, educação e previdência.

Cabe observar que a estrutura tributária brasileira está centrada no consumo e na folha de salários, juntas essas rubricas respondem por 76,26% da arrecadação. Já os impostos sobre propriedade perfazem 3,85% do total.

Convém constatar também que há segmentos da sociedade brasileira que têm índices de desenvolvimento humano equivalentes ao norueguês e não precisam da saúde pública e da educação pública, muito embora usufruam dessas nas cirurgias de alta complexidade, nos transplantes, no ensino superior e nas bolsas de pós-graduação.

Enxugar o Estado pode ameaçar a sustentabilidade de serviços basilares à vida e à dignidade humana. Pode ameaçar o direito de quem não tem condições de pagar por tais serviços e necessita da intervenção estatal para sua subsistência.

Esse tema abarca ainda a justiça social, cuja participação do Estado nos países que lideram os índices de desenvolvimento humano é equivalente à brasileira ou superior. Corrupção, parlamento e ministérios juntos representam 3,29% do PIB. Esse recurso seria suficiente para melhorar substancialmente os serviços públicos?

A retórica de que o cidadão paga impostos e não recebe serviços é astuciosa. Ela vitimiza quem deveria contribuir mais para o bem-estar social, como ocorre nos países mais desenvolvidos.

Os dados são claros e mostram que a elite brasileira contribui menos em termos tributários do que seus congêneres na maioria dos países do mundo. Ainda assim, querem reduzir o Estado. Quem vai corrigir as distorções históricas de 388 anos de escravidão que viabilizou o enriquecimento da elite brasileira? Como as raízes patriarcais serão extirpadas?  A quem interessa um Estado menor?

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Redação

5 Comentários

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  1. Além do mais, muitas são as

    Além do mais, muitas são as devoluções com gastos em saúde, educação, dependentes. Justamente para quem despreza as ações do Estado, não precisa delas, mas ruge se não lhe for devolvido o máximo possível

  2. Continhas

    “O Estado permite a mediação e o julgamento dos conflitos” em que país? Porque no Brasil ações se arrastam por anos, e receber então nem se fala.

    “Na Noruega, (…)  a carga tributária de 44%. (…) cada cidadão contribui, em média, com R$ 8.800,00 mensais ao Estado. Ou seja, onze vezes mais do que o brasileiro.” mas também ganha US$ 100.818,00 * 2,70 = 272.208,60 / 25389 = 10,72 vezes a renda per capita brasileira. Ou seja, lá se tem um serviço melhor pelo mesmo valor proporcional.

    Quer falar do estado, vamos ver como se aplica o dinheiro. Pagamos IPVA para melhorar as estradas, que são ruins, mais pedágios “por fora”. Pagamos impostos para manter saúde, segurança pública e educação, mas (apesar de ter melhorado) ainda é precário o atendimento público, a segurança nem se fala, e a educação de primeiro e segundo graus tem qualidade quase pífia.

    Enquanto isso juizes se dão auxilio moradia, auxilio escola, deputados se dão 14 salário, verbas de gabinete vergonhosas, e a população que se lixe.

    Acredito que a iniciativa privada seja pior, mas o estado pode melhorar muito ainda, de preferência gastando melhor o que já arrecada. Simplificando a estrutura tributária, tirando espaço para o jeitinho e a corrupção, acabando com a terceirização de serviços públicos via ONGs, OSS, fundações, pois não se garante a qualidade nem a correta aplicação do dinheiro público. E acabando com as agências reguladoras e privatizadas, ou no mínimo, que o estado seja remunerado percentualmente pelas concessões, de forma a precisar menos de impostos.

  3. “A retórica de que o cidadão

    “A retórica de que o cidadão paga impostos e não recebe serviços é astuciosa. Ela vitimiza quem deveria contribuir mais para o bem-estar social, como ocorre nos países mais desenvolvidos.”

    Será que quem realmente pode mais contribui mais?…. e aí? Qem vai tornar a tributação mais justa, incidindo mais impostos nas grandes riquezas? E a CPMF, quando volta?

    A classe média é vítima sim, por carregar o piano. Existem trabalhadores na classe média, com melhor nível salarial e que descontam o imposto na fonte. Ela paga o imposto para que haja SUS, escola pública, segurança(!) mas não usuflui desses serviços por sua precariedade, pagando por fora escola particular, previdência privada, plano de saúde… some aí pra ver se não chegamos perto da Noruega no custo final destes itens básicos em proporção ao salário da classe média. O problema não é falta de patriotismo da classe média para arcar com o bem-estar dos mais necessitados, o problema é que a contribuição dos mais ricos deveria ser maior. Você pode nos fornecer a informação sobre os números da sonegação? Aí seu post fica completo.

    E como há indignação gerada por manipuladores da opinião pública, nada mais natural que o governo se esforce para ser o mais transparente possível a fim de neutralizar esta prática…

  4. Onde está o estado

    O artigo em questão foi muito bem escrito, mostrando grande lucidez do autor, com excelente conhecimento do assunto.

    Acredito que o volume de recursos relativos à corrupção esteja subestimado, considerando que esta praga está enraizada nos tres poderes, desde o menor município brasileiro até a esfera federal.

    Desta forma o rombo é muito maior do que tem sido calculado por diversas instituições.

    As informações da Administração Pública nos municípios menores são quase inexistentes, cujos dados não são confiáveis.

    O papel perverso do estado encontra-se, sobretudo,  na má gestão dos serviços sob sua responsabilidade.

    Outros fatores, tais como, o clientelismo, o corpovativismo, a burocracia emperrada, etc, também contribuem para isso.

    Quem trabalha no serviço público como eu, percebe muito bem todos esses problemas.

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