Frederico Füllgraf – Chernobyl: crônica do dia depois

Crianças afetadas pela radioatividade

Manhã de 26 de abril de 1986, tingida de laranja esmaecido por acanhados raios de sol primaveril.

Eu caminhava em direção a uma padaria, em Bremen, noroeste da Alemanha, quando numa banca deparei com as manchetes dos principais jornais, que sacudiram os restos do meu entorpecimento: “Aconteceu o improvável – o acidente do milênio – explode usina nuclear na Ucrânia!“.

Alvoroçado, naquela manhã esqueci um importante compromisso profissional, e o editor que me esperava, relevou, dizendo que estava colado aos noticiários da tevê. 

Os trens alemães atrasaram – incidente não previsto na agenda de um país regrado, sisudo, que naquele dia se esquecera de seus princípios, narcotizado pela onda de choque. O primeiro balanço advertia: 28 mortos em Chernobyl. E uma nuvem com 40 toneladas de um coquetel de substâncias radioativas rumava para oeste, na direção da Europa Central.

Imaginando-me o único brasileiro no olho do furacão, liguei para o Brasil, que dormia o sono dos distraídos. Despertei namorada e amigos, soletrando o nome da catástrofe. Insistiram em que eu voltasse no primeiro avião. Infelizmente eu não podia abandonar minha missão, pois – venenosa ironia – encontrava-me em turnê pela Alemanha, estreando o filme documentário “O veneno nosso de cada dia”, co-financiado pelo governo José Richa, sobre o impacto humano e ambiental do uso de agrotóxicos no Brasil. 

Um solilóquio sobre o absurdo paralisou-me – quem se importaria com malformações de crianças nascidas nos campos de algodão do Paraná, enquanto o céu, na Europa, vomitava radioatividade sobre a cabeça de centenas de milhões de pessoas?

De posse da estória toda, ruminei sobre crenças que da noite para o dia se fazem pó. Por exemplo: a capciosa estatística conjurada pelas “comunidades científicas”, asseverando a “probabilidade 1:1.000 000 000“, de um acidente grave em usinas nucleares. No dia 26 de abril de 1986, esta fantasia irresponsável jazia por terra, junto com os mortos de Chernobyl.

Lembrei-me de Jane Fonda estrelando o thriller “The Day After”, prenúncio cinematográfico do acidente de Three Miles Island, mas intuí que comprara um ingresso para um “filme“ pior. 

Contudo, a turnê agendara compromissos e tinha que continuar. 

Durante a longa viagem para Stuttgart transitei por cenários de uma guerra desesperada contra um inimigo invisível. Nas curvas do Reno, imaginei desatados os fantasmas de Wagner. Da janela do trem divisei imagens do colapso, já banalizadas pelos filmes-B de ficção científica: matraqueado metálico de helicópteros no céu; barreiras policiais bloqueando as estradas; carros esvaziados de seus ocupantes por comandos de robocops com roupa de proteção futurista e máscaras de oxigênio; a estridência das sirenes advertindo acidentes; luzes de alarme piscando em azul, vermelho e amarelo; contadores Geiger subindo e baixando sobre corpos humanos; gado cercado nos pastos como “fator de risco”, confinado em estábulos.

No dia seguinte, durante o café da manhã, no hotel, o bombardeio incessante dos boletins de advertência: “elevada dosagem de bequeréis medidos no solo da Floresta Negra. O consumo de laticínios da região está terminantemente proibido“.

E naquela tarde de domingo, 27 de abril, confrangido, ali na sala da casa do deputado Verde, Willi Hoss, com as janelas para o jardim hermeticamente fechadas, senti-me prisioneiro de um cenário mais macabro que “Primavera Silenciosa”, o romance documental de Rachel Carson sobre devastação e morte nos campos dos EUA, após seu bombardeio com milhões de toneladas de pesticidas. 

Radioatividade, contudo, era a maldição. Não tinha forma, cheiro, nem cor. Era o inimigo amoitado, fantasmático, porque onipresente. Medusa gasosa, deus volátil, todo-poderoso, no vicejante jardim de um bairro de Stuttgart a nuvem radioativa de Chernobyl já desencadeava a metamorfose diabólica. Pessegueiros, pereiras e cerejeiras em flor, saltavam das páginas da literatura, do livro de “Gênesis” até Baudelaire, como metáforas letais da árvore do pecado, do fruto proibido, das flores do mal… – todos intocáveis.

Aquele medo de respirar, o terror de expor-se ao céu que não mais protegia!

Anoitecia, e o cinza que deitava sobre a linha do horizonte pareceu-me o ocaso dos deuses da máquina infalível.

Vinte anos depois, quatro mil mortos (“oficiais”) em Chernobyl – em Angra dos Reis, seriam quantos?

Vinte e cinco anos depois, então Fukushima.

E nos ossos das crianças sobreviventes continua a morder a serpente luminosa.

 

Redação

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