Lungarzo: A Rotina das Aberrações Jurídicas

Carlos Lungarzo
“Vivemos um clima de aberrações jurídicas. Com uma Justiça que persegue os pobres, os dissidentes e a esquerda e é cúmplice da direita”
Entrevista com autor do livro Os cenários ocultos do caso Battisti. Carlos Alberto Lungarzo foi professor titular da UNICAMP, milita em organizações internacionais de direitos humanos

Causa Operária: Por que escrever um livro sobre o caso de Cesare Battisti?

Carlos Lungarzo: Em 2009 escrevi dois pequenos livrinhos para orientar nossa militância. O primeiro foi publicado e impresso em computador. O segundo tinha em torno de 130 páginas e foi impresso pelo movimento de esquerda Crítica Radical (Fortaleza, Ceará). Mas, quando a situação de Battisti ficou mais complexa, tentamos chamar toda a atenção possível e fazer algo mais profundo sobre o tema. Primeiro para mostrar qual era a verdade dos fatos. As pessoas escutavam e viam a televisão e os jornais, que estavam manipulando sua informação. Outras não tinham nem ideia de quem era esse italiano Battisti, acusado de crimes.

Então queríamos aprofundar e mostrar o que realmente tinha acontecido. Foi assim que eu comecei a escrever esse livro, em julho de 2009. Quando Battisti foi libertado, em 09/06/2011, comecei a ajustar o livro à necessidade do leitor. Inicialmente o livro era quase o dobro do atual, e pensamos que não seria fácil de ler nem de vender. Tínhamos que torná-lo atraente, para ser uma referência em informação. Mais de 80% da grande impressa burguesa falava mentiras sobre o caso.

Jornais de grupos políticos ou culturais, como Causa OperáriaBrasil de Fato, Caros Amigos e outros, incluídos Istoé e, sobretudo, a Piauí, mostravam a verdade. Há um jornal importante no Paraná, aGazeta, que fez uma reportagem sobre a família Battisti, mas fora isso, tínhamos 80% da imprensa contra.

Queríamos fazer algo que fosse acessível para todos saberem os fatos e poder refutar as mentiras. Uma coisa é você ser invadido pela TV sensacionalista, onde apresentadores que simulam pânico dizem que há um perigoso terrorista solto no Brasil. Outra é comprar um livro onde se relatam os fatos com o apoio de mais de 300 documentos, em quase 400 páginas e 97 fotografias.

Todos os livros contra Battisti (que são quatro) foram encomendados pela Itália. Do único feito no Brasil, a Itália comprou duas edições fechadas em português (!). Então minha ideia era desconstruir essa tempestade de mentiras: creio que até esse momento tivemos bastante sucesso. Percebemos que o livro está tendo algum efeito. Pessoas que estavam confusas, “Será que ele matou ou não matou?”, compram o livro para se informar. Um termômetro que tivemos foi a própria família Battisti, que é uma enorme rede de famílias com o nome Battisti no Paraná e em RS, que formam uma comunidade de mais de 4000 mil membros. Eles nos convidaram a sua festa anual e compraram cerca de 100 livros, o que equivale a 100 famílias, ou seja, mais de 400 pessoas. Nessa festa havia 700 pessoas. Eles deram boa recepção às nossas provas.

 

Causa Operária: Quais são as revelações de destaque do livro?

Carlos Lungarzo: Há dois tipos de revelações: aquelas que eram conhecidas apenas pelos que leram a documentação, e outra mais confidencial, que obtivemos através de agentes do Estado Francês. Ambas estão rigorosamente documentadas, e foram ignoradas e distorcidas pela mídia brasileira. Aqui vão as principais.

  1. Battisti foi julgado em ausência, sem saber que estava sendo julgado.
  2. Não houve nenhuma testemunha que dissesse que Battisti estava no lugar das mortes. Houve mais de 25 testemunhas no total e nenhuma menciona Battisti.
  3. Quatro testemunhas descrevem um rapaz próximo do lugar do primeiro morto, mas os quatrodivergem na maior parte dos detalhes descritos. Nenhum deles reconhece o retrato de Battisti.
  4. Não houve provas materiais. Pelo menos, a Itália não apresentou nenhuma, nem permitiu que olhássemos seus arquivos.
  5. A sentença italiana se contradiz: às vezes fala de dois tiros, outras de três, no mesmo caso. Também se contradiz quanto aos calibres das armas etc.
  6. O relato sobre a pretensa culpa de Battisti está baseado numa única delação: a de Pietro Mutti, um operário da Alfa Romeu de 25 anos. Ele obteve redução de pena, de prisão perpétua para oito anos.
  7. O mais importante é o caso de procurações para falsos advogados que o Tribunal do Júri de Milão mandou falsificar. Nos capítulos 11 e 19 de meu livro e em meu site há fartas provas desta manobra.

 

Causa Operária: Se tratava de delação premiada?

Carlos: Sim, delação premiada e muito bem paga. De prisão pela vida toda para oito anos que, segundo se acredita, não foram cumpridos. Houve outros delatores, mas apenas repetiram o que Mutti tinha inventado. Esses outros foram premiados. Alguns cumpriram apenas quatro anos por assassinato agravado.

Não se sabe onde está Mutti. As reportagens dele feitas na Itália em 2009 e 2011 são falsas de maneira evidente. Pode ter sido morto pela polícia, ou estar aposentado, em algum local da África, com algum dinheiro para manter o “bico fechado” (becco chiuso).

 

Causa Operária: Como vocês conseguiram as demais informações?

Carlos: Basicamente através da França. Quando a Itália pediu à França que entregasse Battisti, o governo de Jacques Chirac exigiu que a Itália entregasse tais documentos. Mesmo que Chirac estivesse numa vergonhosa cumplicidade com a Itália, na França não é possível fazer coisas totalmente ilegais, e os italianos tiveram que mostrar alguns documentos, depois de meses de desconversar.

Nossos amigos franceses nos deram cópias autenticadas. Também temos fontes próximas do governo francês que não posso revelar.

 

Causa Operária: Em sua opinião, quem está por trás da perseguição a Battisti e quais os interesses?

Carlos: Há muitos interesses e também alguns fatores culturais. Eu sou de família italiana e de longa data percebo o fato cultural. Essa caça ao Battisti é uma grande vingança.

Por que vingança com ele e não com outro?

  1. Ele foi o único que conseguiu escapar.
  2. Ele sempre preservou sua dignidade, não se humilhou. Não puxou o saco dos juízes. Essas coisas enfurecem a esses togados vingativos, fascistas e medievais. Recusou ser delator.
  3. Mais Importante. Battisti é um escritor famoso na França. Eu tenho aqui alguns dos livros dele que foram publicados. Em total, são quase 30.
  4. Todos descrevem a história de pessoas perseguidas. A ideia desse gênero político criminal é que o crime sempre é político, que o caos não acaba nunca. Por exemplo, a polícia persegue um cara que rouba um pão, depois se comete um assassinato por causa desse roubo e a onda de crimes nunca para. No caso do estado de São Paulo isso é muito comum. Quanto mais agitação social há, mais o governo aumenta o número de policiais. O livro de Battisti, por exemplo,Dernières cartouches (Os últimos Cartuchos), descreve um cara chamado Conrado que é um proletário que sai de Roma e se junta a um grupo revolucionário. Ao longo do livro Battisti vai descrevendo todas as atrocidades que se fazem na Itália. Por exemplo, julgamento sem provas, assassinatos em prisões e tortura. E é um livro curto de fácil leitura
  5.  Todos os livros dele tiveram sucesso. Mas esse Dernières cartouches teve um sucesso especial, e se vendia em bancas de jornal. Então uma pessoa que nunca leu história, passa e vê um livro desse e começa a ler pensa: “isso acontece aqui no país ao lado, na Itália”, coisa que essa pessoa não sabia. Então, fascistas e stalinistas se juntaram para atacar Battisti.
  6. Fizeram um plano para deportá-lo da França. Mas ele escapou, jogando na lama o prestígio dos abutres italianos.
  7. Battisti tinha muita popularidade; teve uma passeata em Paris de 20 mil pessoas em favor de sua liberdade. Os italianos ficaram mais furiosos ainda.
  8. Isso explica por que a perseguição foi tão insana, tão cheia de ódio e de atos absurdos e exagerados, como o insulto contra Lula, contra os brasileiros em geral, contra as mulheres, contra o futebol. Uma verdadeira doença em massa, como nos piores tempos de Hitler.

 

Causa Operária: Qual foi a postura da imprensa burguesa perante o caso Battisti?

Carlos Lungarzo: Foi totalmente contrária e inimiga mortal, começando por definir Battisti como terrorista, contrariando a definição de terrorismo do conselho de segurança da ONU.

Esse ódio da mídia foi em parte ideológico, em parte foi subserviência, e também foi suborno, embora eu nunca tenha sabido quanto pagou a Itália nem qual é a lista dos que receberam esse dinheiro.

Folha de São Paulo se referia a Battisti como terrorista, num certo momento eu mandei uma carta para eles dizendo que eles deveriam entender que uma pessoa que está presa não pode cometer nenhum ato de terrorismo. A Folha de São Paulo fez dois editoriais, assinados pelo próprio dono, exigindo a extradição. Depois colocou ênfase em informações falsas.

Em abril de 2009, a Polícia Federal do RJ dizia ter encontrado conexões de Battisti com um grupo terrorista. Havia um delegado, Kleberson, outros policiais menores, um promotor e um juiz que montaram a farsa. Finalmente não acharam nada. Depois disso, a Federal reconheceu que a denúncia tinha sido feita pela Itália.

Outro exemplo: a Folha.com publicou 15 matérias em dois anos sobre o filho de um dos supostos mortos pelo Battisti (Pierluigi Torregiani, pai de Alberto Torregiani, que está paraplégico). Todavia, a mesma perícia legal de Milão diz que Torregiani, ao defender-se de um de seus atacantes, atirou e feriu Alberto por engano.

A Rede Globo fez uma reportagem sobre refugiados. Na primeira meia hora não falou de Battisti, mas começou a falar que tinha um refugiado no Brasil e seguiu com trechos de filmes americanos onde alguém que comete um crime sempre vem para o Brasil.

Alguns meios foram totalmente subservientes aos italianos como, por exemplo, a Veja. Inclusive, há uma matéria que apareceu na versão eletrônica que incita à violência contra o Suplicy.

Outros menores como, por exemplo, a Carta Capital, são especiais. Neste caso, parece que o dono tem interesses com os neostalinistas italianos, mas nunca se mostraram provas disso. De qualquer maneira, o exagerado ódio dessa revista por Battisti faz suspeitar que há algo pessoal.

 

Causa Operária: Sobre o STF, qual foi o papel em relação ao Battisti?

Carlos Lungarzo: No STF, a tendência legalista foi formada por Marco Aurélio, Carmem Lúcia, Eros Grau e Joaquim Barbosa. Nunca o Brasil entregou um preso político legalmente, nem durante a ditadura militar. Os militares sequestraram numerosas pessoas, mas o judiciário, mesmo sob a ditadura, nunca devolveu um perseguido.

Indubitavelmente um perseguido político tem direito a asilo. A polícia italiana tem fama por sua brutalidade. Agora, o que acontece é que os outros ministros tinham interesses próprios para mandar de volta Battisti. O Ministro Cezar Peluso tem nacionalidade italiana e deu à Itália absoluto poder durante o julgamento, como se o Estado Italiano fosse mais um juiz. Aliás, ele é um católico radical e a Igreja estava mortalmente contra Battisti.

Gilmar Mendes e a juíza Ellen Gracie são da direita, do PSDB, e sua intenção era bater no governo de Lula.

Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Britto não sabemos que tipo de razões tinham, mas seu comportamento foi muito confuso.

A questão de Battisti é simples: em qualquer país ocidental, quem decide se uma extradição é lícita é a justiça. Se a justiça diz não, o governo não pode dizer sim. Agora, se o tribunal diz sim, cabe ao chefe de Estado aceitar ou não. É exatamente o contrário com um refugiado. O STF não pode revogar um refúgio, foi por isso que a revogação de Battisti foi ilegal.

 

Causa Operaria: Qual seria a atualidade do caso Battisti e do seu livro?

Carlos Lungarzo: O caso Battisti tem muita atualidade pelo seguinte, o caso dele serviu como pretexto para fazer uma espécie de luta de poderes. Está muito claro que no Brasil existe uma tentativa de o judiciário se transformar numa espécie de ditadura. Vimos isso recentemente em muitos casos, com o mensalão e também no caso da promotora que quer processar os 72 estudantes da USP, que podem pegar 8 anos de cadeia. Então a primeira atualidade é que todos os demais poderes estão sendo submetidos ao judiciário, como nas piores ditaduras teocráticas. A segunda coisa é que o caso Battisti não está totalmente fechado. Neste momento um promotor do Distrito Federal quer revogar o visto de Battisti, que tem um visto igual ao meu, de permanência. Ou seja, Battisti ainda é um bode expiatório.

Eu queria fazer um apelo à militância: Não pensem que a coisa está tranquila ao ponto de cruzarmos os braços, temos que nos manter fortes e nos reativarmos rapidamente. Devemos seguir mantendo nossos vínculos com os centros europeus de solidariedade, e prosseguir com nosso contato com a Corte de Direitos Humanos da OEA e o Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Com respeito ao meu livro, acho que foi fundamental para mostrar que vivemos num clima de aberrações jurídicas. Com uma justiça que persegue os pobres, os dissidentes e a esquerda, e é cúmplice da direita. Por isso eu quis mostrar no meu livro, o que é uma vingança típica do judiciário. Existem muitos casos, mas são de menor relevância. O de Battisti é de mais de 30 anos. Todos sabemos que uma pessoa pode ficar presa por mais de quatro anos por roubar um medicamento para um filho que beirava a morte, ou ser torturada por roubar um shampoo e perder um olho, como aconteceu com uma menina favelada cujo caso foi relatado em Caros Amigos por Tatiana Merino.

Minha ideia é mostrar que o caso de Battisti é muito especial. Além disso: a iniquidade do judiciário é tão forte na Itália como no Brasil. Aliás, é um caso de vingança política que nunca se viu antes na história. Então de repente eu pensei: “Estamos num mundo governado por loucos sádicos e místicos”. E isso dá um pouco de medo. Não dá para confiar nessas pessoas. Amanhã eles podem dizer: “não queremos argentinos ou uruguaios no Brasil; vamos condenar todos eles a 30 anos de prisão perpétua”. Estamos nas mãos de monstros. Se a sociedade não acorda, qualquer aberração pode acontecer.

Eu quero agradecer e me sinto feliz por contribuir. Eu tenho um blog que chama “a luz protegida”, http://aluzprotegida.blogspot.com.br e o outro site sobre o Caso Battisti, que tem mais informações.

Redação

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