A morte nossa de cada dia

Por Eliana Rezende
 

Quantas mortes cotidianas, pequenas, miúdas somos capazes de acumular em uma existência inteira?

Morremos a cada grande decepção, de tédio, de medo, de desejos, por ausências, por faltas, arrependimentos, anseios, despedidas e até de vergonha!

Estranho pensar que as pessoas, em geral, temem tanto sua morte derradeira e final, aquela que consome a carne, remove o oxigênio e paralisa células e coração, e se esquece que passa uma vida inteira aprendendo a morrer, deixar, desapegar, abandonar… ser deixado, largado e abandonado, preterido e até esquecido!

Então por quê do medo da última de todas as mortes?

Aquela que não nos obrigará a acordar no dia seguinte para de novo ver-mo-nos morrer?

Ainda há os que morreram uma vez e nunca mais conseguiram voltar a viver.

A morte em vida apagou-lhes o brilho, as vontades, os desejos, o viço… Morreram quando encontraram o medo do medo. Não foram capazes de encarar suas fragilidades, decepções, frustrações e optaram por, simplesmente, esquecer para ser esquecidos.

Assistem de longe aquela que teria sido sua vida.

Houve os que morreram de medo de aprender a viver com outros, de aprender a entrega, a troca. Tiveram medo de aprender que viver ao lado de outro significa em alguns momentos ceder e compor e levaram à morte relações ainda no nascedouro.

Muitos morreram de medo de mudar e ficaram presos no infinito de suas repetições e vícios. Sepultaram-se no tédio e no esquecimento de vidas imóveis e estanques. Morrendo de medo de opiniões alheias, críticas e avaliações.

Há os que morreram de inveja, ostentação, luxúria e simplesmente não entenderam suas vidas despojadas destes apetites tão mortais.

Morremos de desejos, uns cálidos e outros muito quentes, sutis ou arrebatadores, contidos ou descontrolados, cheios de pudores ou totalmente despudorados, alguns débeis outros avassaladores, mas todos desejos que morreram quer por nossas próprias ações, quer por alheias.

Morremos de saudades. De lugares, de pessoas, de cidades, de encontros, de vidas que tivemos.

Morremos pelo que dissemos e pelo que deixamos de dizer!

Ainda há os que morrem de esperar, ou os que ao contrário morrem de tanto procurar e não encontrar.

Morremos de angústia e de alegria…morremos…morremos…

Mas ainda que morrendo cada dia, encontramos a magia da ressuscitação diária e nos colocamos de novo ao alcance daquela que será a próxima das nossas mortes. Prisioneiros que somos daquilo que parece ser um eterno retorno de mortes em vida.

E assim seguimos, como na mitologia, com a vida por um fio em mãos de Cloto, Láquesis e Átropos. Tecendo destinos e nos destinando de acordo com seus caprichos.

Cloto, a fiandeira, tece o fio da vida de todos os homens, desde o nascimento;

Láquesis, a fixadora, determina o tamanho e enrola o fio, estabelecendo a qualidade de vida que cabe a cada um;

Átropos, corta-o quando a vida que representa chega ao fim.

Os Destinos assim repartidos para cada pessoa, no momento de seu nascimento: uma parcela do bem e do mal, embora cada pessoa pudesse acrescer o mal em sua vida por conta própria. Usando como ferramenta do destino a Roda da Fortuna. As voltas da roda indicavam períodos bons e maus.

E assim a vida numa brincadeira feita em trocadilhos, nos faz levantar todos os dias acreditando que a vida não nos faltará. Que a roda da fortuna continuará a rodar e que mesmo morrendo a cada dia a vida prosseguirá nos fazendo despertar de cada uma de nossas mortes, para receber nosso quinhão de bons e maus momentos.

 

 

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Redação

14 Comentários

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  1. ‘A única certeza que temos na vida é a morte”,

    já dizia a minha avó, sabedoria popular. Entretanto, como morremos … quase todos os dias!

    Na verdade, acho que esse legado de Prometeu, é que nos deixa preso à rocha, morrendo aos poucos, sentindo–nos com o fígado comido por corvos.

    Mas logo depois renscemos, temos nosso fígado recomposto.

    E assim com força para prosseguir e morrer de novo no dia seguinte e mais no outro e no outro tudo de novo.

    Fênix !!! 

    1. A única certeza…

      Ol@ Odonir…

      Sim. Boa lembrança a tua. 

      O que tentei mostrar é que as pessoas ficam tão preocupadas com a morte que acham que é a os levará ao túmulo e se esquece que a vida é escola para morrer!

      Simples assim. Por isso, para quê temer a morte?

      Abs

      : )

      Eliana

  2.  
    É isso. Pelos costumes de

     

    É isso. Pelos costumes de nossa sociedade, na medida que o tempo passa, vamos ficando cada vez mais encarnados. Como mostra o texto, ocorre exatamente o contrário, vamos é desencarnando aos poucos, até o desencarne final da existência no corpo. A natureza é sábia. 

  3. Aprendendo a Viver

     

    não se aprende nada com a vida.
    até hoje vivo enfiando minha cabeça em bocas de jacaré e vivo me jogando de penhascos.
    só se aprende com a morte.
    mas daí já é tarde.
    na verdade aprendemos um pouquinho a cada dia.
    por isto não existe um momento em que chega a morte.
    a morte é algo que vai se adquirindo no dia-a-dia.
    quanto mais se aprende, mais morto vai ficando.

    1. Aprendendo a viver…

      Ol@ Marcelo…

      Aprender ou não é uma opção. A morte em vida é que não há como escapar dela. 

      Alguns acrescentam suas proóprias parcelas de mal à sua cota incial. E assim seguimos. Ressucitando e seguindo…

      Abs

      Eliana

  4. Mudança

    Heráclito de Éfeso nos traz em um de seus postulados a nossa maior angústia. Buscamos a perenidade das coisas, das conquistas, dos afetos. Mas – sabemos todos com clareza – o homem que entrou ontem no rio e se banhou, já não é o mesmo hoje, nem o rio o é tão pouco.

    Ontem, se estávamos certos de caminhar na rota correta, hoje há a possibilidade de reconsiderarmos.

    Não, não é abraçar a ciclotimia nem a inconstância. Não é enlouquecer e levar junto todos ao redor. Não é roubar a paz de ninguém; mas é construir a sua. Saber que fez o que podia naquele momento. Não lamentar esta morte diária de que fala a articulista já que inexorável. E nem se culpar pelo feito porque não há como retroceder. Considerar os aprendizados, discernir, estar atento. Ouvir, diante da situação, o que lhe diz seu intelecto: foi bom, foi ruim, machucou, rendeu frutos, como foi? A partir deste ponto – talvez de um ponto anterior, difícil de precisar – tudo já mudou. Ouvir sua intuição. Qual a sensação? Boa, incômoda, ruim?

    Quantas vezes nos perguntamos:  eu lamentei realmente aquilo que aconteceu?  E por que lamentei?  Provou ser o melhor.

    No sono, dizem, morremos. Vamos buscar uma outra vida; onírica, inconsciente, consciente, real? Não se tem certeza e muitas são as probabilidades; o conhecimento que detemos não nos responde peremptoriamente, com a perenidade (olha ela aí outra vez!) que desejamos.  Quando voltamos dele, se vivemos algo, mesmo que somente um sonho, visões de um dia cheio, já não somos os mesmos.  O sonho nos foi acrescido.

    Este devir não nos agrada, queremos as certezas, mas é no entanto o sabor da vida.  As certezas estão no caminhar, não nas definições. Só fazendo cada minúscula partícula com atenção, aplicando tudo que já trazemos e conquistamos, podemos, tateando, construir o melhor caminho possível. Mas é só o que podemos, fazer o melhor; o resto é arrogância.

  5. Morremos todo dia sim, alguns mais, alguns menos…
    É um fato biológico, não somos paramêcios nem hidras. Somos finitos, aceitemos nossa imortalidade enquanto dura!E, enquanto imortais, não percamos tempo nos preocupando com o fim da viagem. Pois esta, é nossa única certeza.Não transformemos frustações nem atrasos em paradoxos insolúveis. A estas alturas deveriamos ter percebido que vida e justiça, não andam sempre de mãos dadas. Às vezes estão até em campos opostos. O tempo criado por nós humanos, é algo muito particular. O tempo dos outros, é tão particular a cada um dos outros como o nosso. Todas as ‘coisas’ (como em criaturas da natureza), têm seu próprio tempo. Os objetos (como em criados pelo homem), têm um ainda menor.Desejamos como ideal, e conceitualmente, ideal é perfeito e inalcansável, uma vida justa, sem dor, e feliz… e ideal.Todos, vez por outra, encontramos a pedra no meio do poema, a chuva que não para, o fundo do poço e o fim da picada.Eu sei, já dei de cara com pedras, enquanto frio e molhado, num fundo de poço apinhado com gente armada de pá e picareta, ocupada a cavar mais um pouco.E, provavelmente irei passar de novo… guardo minhas pá e picareta sempre à mão.O sol ilumina os felizes e desditados, com a mesma luz e os aquece com mesmo calor. Não faz diferença a alegria ou desdita, não somos identificados com crachá dupla-face; hoje feliz, amanhã… não mais.Eu quero!E isso justificaria todo meu contentamento?Disse certa vez, que: “nós somos o meio-ambiente dos outros” ao perceber que estamos todos juntos e QUALQUER ação nossa afeta nosso vizinho. Nem sempre intencional ou de propósito, mas nossas palavras e ações (ou a falta delas) nos atingem, a todos, de formas inesperadas. Mesmo que nos saibamos todos bem intencionados e certos.Seria um paraíso, não haveria genocídios, guerras, fome, peste e… desculpe, mas haveria mortes. Não somos imortais paramêcios nem hidras.Morremos todo dia sim, alguns mais, alguns menos.,,,”Mas espere”, diria Pandora, “ainda somos imortais mesmo que falíveis. Tentemos bem melhor, amanhã”.Tentemos empáticos e gentis (http://pensadosatinta.blogspot.com.br/2014/05/empaticos-e-gentis-para-que.html).

  6. Uma certa arte – Elizabeth

    Uma certa arte – Elizabeth Bishop (tradução de Nelson Ascher)

    A arte da perda é fácil de estudar:
    a perda, a tantas coisas, é latente
    que perdê-las nem chega a ser azar.

    Perde algo a cada dia. Deixa estar:
    percam-se a chave, o tempo inutilmente.
    A arte da perda é fácil de abarcar.

    Perde-se mais e melhor. Nome ou lugar,
    destino que talvez tinhas em mente
    para a viagem. Nem isto é mesmo azar.

    Perdi o relógio de mamãe. E um lar
    dos três que tive, o (quase) mais recente.
    A arte da perda é fácil de apurar.

    Duas cidades lindas. Mais: um par
    de rios, uns reinos meus, um continente.
    Perdi-os, mas não foi um grande azar.

    Mesmo perder-te (a voz jocosa, um ar
    que eu amo), isso tampouco me desmente.
    A arte da perda é fácil, apesar
    de parecer (Anota!) um grande azar.

    (Elizabeth Bishop)
    (Do livro ASCHER, Nelson. Poesia alheia. 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro: Imago, 1998.)

  7.  
      Excelente texto!  Nos

     

      Excelente texto!  Nos dias de hoje é comum as pessoas falarem só de alegrias, conquistas, sucesso, avessas que são a qualquer reflexão como a que se fez aqui.

    1. Excelente texto!

      Ol@ Dulcinéa…

      Sim, vc tem razão. Este processo que muitas vezes parece fuga revela que algumas palavras são tabu. E as pessoas se esquecem que morrer não apenas lá no final. 

      Abs e obrigad@

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