Estarão as prisões obsoletas?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

 

No ano de 2018, aqui mesmo no GGN, publiquei as resenhas de dois livros importantes. Um deles expõe a realidade cotidiana deprimente e absurda do sistema prisional brasileiro. O outro defende a tese de que o Direito Penal e o Processo Penal são incapazes de realizar o sonho de pacificar a sociedade. Encerrarei a trilogia “castigo e lucro” com a resenha de uma obra que defende a abolição das prisões. A autora desse livro, Angela Davis, dispensa apresentações.

O livro “Estarão as prisões obsoletas?” tem 6 capítulos. Um deles se refere especificamente à questão das mulheres encarceradas. Começarei por ele, pois as presidiárias estão sujeitas a abusos específicos que demonstram como e porque as prisões devem ser abolidas em virtude de possibilitarem a imposição de punições corporais/sexuais que foram banidas há séculos pela legislação.

“À medida que aumentou o nível de repressão nas prisões femininas e, paradoxalmente, conforme a influência dos regimes de prisão doméstica diminuiu, o abuso sexual – que, como a violência doméstica, é mais uma dimensão da punição privativa das mulheres – tornou-se um componente institucionalizado da punição por trás dos muros da prisão. Embora o abuso sexual de prisioneiras cometido por guardas não seja sancionado como tal, a indulgência generalizada com a qual os transgressores são tratados sugere que, para as mulheres a prisão é um espaço no qual a ameaça de violência sexual que assoma na sociedade em geral é sancionada como um aspecto rotineiro da paisagem da punição do sistema penitenciário.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 84)

As prisões já fazem parte da paisagem urbana e rural. No Brasil elas crescem como se fossem erva daninha.

“Na maioria dos círculos, a abolição das prisões é simplesmente impensável e implausível. Aqueles que defendem o fim das prisões são rejeitados como idealistas utópicos cujas idéias são, na melhor das hipóteses, pouco realistas e impraticáveis e, na pior delas, ilusórias e tolas. Isso exemplifica como é difícil imaginar uma ordem social que não dependa da ameaça de enclausurar pessoas em lugares terríveis destinados a isolá-las de sua família e de sua comunidade. A prisão é considerada algo tão ‘natural’ que é extremamente difícil imaginar a vida sem ela.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 10)

“Consideramos as prisões como algo natural, mas com frequência temos medo de enfrentar as realidades que elas produzem. Afinal, ninguém quer ser preso. Como seria angustiante demais lidar com a possibilidade de que qualquer pessoa, incluindo nós mesmos, pode se tornar um detento, tendemos a pensar na prisão como algo desconectado de nossa vida. Isso é verdade até mesmo para alguns de nós, tanto mulheres quanto homens, que já vivenciaram o encarceramento,” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 16)

As relações entre o neoliberalismo e a expansão do sistema prisional são evidentes. O aumento da criminalidade está relacionado à miséria e à exclusão social, duas coisas que os políticos neoliberais (Jair Bolsonaro e João Doria Jr., por exemplo) se recusam a combater inclusive e principalmente quando oferecem ao “respeitável público” o aumento da repressão criminal como se ele fosse um remédio capaz de pacificar uma sociedade que se pretende manter desigual. Invisibilizada, a violência econômica estrutural produz um novo tipo de violência pública: o encarceramento em massa.

“A prisão se tornou um buraco negro no qual são depositados os detritos do capitalismo contemporâneo. O encarceramento em massa gera lucros enquanto devora a riqueza social, tendendo, dessa forma, a reproduzir justamente as condições que levam as pessoas à prisão. Há assim, conexões reais e muitas vezes complexas entre a desindustrialização da economia – processo que chegou ao auge na década de 1980 – e o aumento do encarceramento em massa, que também começou a se acelerar durante a Era Reagan-Bush. A demanda por mais prisões, porém, foi apresentada ao público em termos simplistas. Mais prisões eram necessárias porque havia mais criminalidade. Contudo, muitos estudiosos demonstraram que, quando o crescimento repentino de prisões teve início, os índices oficiais de criminalidade já estavam caindo.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 17/18)

“…a prisão revela formas solidificadas de racismo contra negros que operam de forma clandestina. Em outras palavras, raramente são reconhecidas como racistas. Mas há outras histórias racializadas que também afetaram o desenvolvimento do sistema penal norte-americano – as histórias dos latinos, dos nativos americanos e dos asiático-americanos. Esses racismos também se solidificam e se combinam na prisão. Como estamos acostumados a falar de raça em termos de brancos e negros, muitas vezes deixamos de reconhecer e combater expressões de racismo que tem como alvo pessoas de cor que não são negras. Consideremos as prisões e detenções em massa de pessoas do Oriente Médio, do Sul e da Ásia ou de descendência muçulmana no período posterior aos ataques de 11 de setembro de 2001 ao Pentágono e ao World Trade Center.

Isso nos leva a duas importantes questões: as prisões são instituições racistas? O racismo está tão profundamente entranhado na instituição da prisão que não é possível eliminar um sem eliminar o outro? Essas são questões que devemos manter em mente enquanto analisamos as ligações históricas entre a escravidão nos Estados Unidos e os primórdios do sistema penitenciário.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 27/28).

A permanência na prisão pelo tempo fixado na sentença deveria garantir a realização de dois objetivos em relação à pessoa do criminoso: o cumprimento da punição e; a ressocialização do condenado, ou seja, sua preparação para retornar à vida em sociedade. Entretanto, existe um terceiro objetivo, que nunca é declarado nas condenações criminais, que o sistema prisional tem garantido a terceiros: o lucro proporcionado aos empresários que exploram o trabalho dos detentos, às empresas que são proprietárias dos presídios (caso dos EUA) ou que fornecem bens e serviços às prisões públicas (caso dos EUA e do Brasil).

“Com a aprovação da Décima Terceira Emenda à Constituição, a escravidão e a servidão involuntária foram abolidas ‘exceto como punição por crime, pelo qual a parte deve ter sido justamente condenada’. De acordo com os Códigos Negros, havia crimes definidos pela lei estadual pelos quais apenas pessoas negras podiam ser ‘justamente sentenciadas’, Assim, ex-escravos, que tinham acabado de ser libertados de uma condição de trabalho forçado perpétuo, podiam ser legalmente condenados à servidão penal.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 30)

“Os proprietários de escravos podiam se preocupar com a sobrevivência de cada um dos escravos, que afinal, representavam investimentos consideráveis. Os condenados, por outro lado, eram arrendados não como indivíduos, mas como um grupo, e podiam ser obrigados a trabalhar literalmente até a morte sem afetar a lucratividade de uma equipe.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 34)

“Cresci na cidade de Birmingham, no estado do Alabama. Por causa de suas minas – de carvão e minério de ferro – e de suas siderúrgicas, que permaneceram em atividade até o processo de desindustrialização da década de 1980, a cidade era conhecida como ‘a Pittsburg do Sul’. Os pais de muitos dos meus amigos trabalhavam nessas minas e usinas. Apenas  recentemente descobri que os mineiros e metalúrgicos negros que conheci durante a minha infância herdaram seu lugar no desenvolvimento industrial de Birmingham dos detentos negros forçados a executar esse trabalho sob o sistema de arrendamento.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 37/38)

“No início do século XXI, as diversas empresas privadas do setor penitenciário em operação nos Estados Unidos, possuíam e administravam instituições que abrigavam 91.828 prisioneiros federais e estaduais. Os estados do Texas e Oklahoma têm o maior número de pessoas encarceradas em prisões privadas. Mas o Novo México aprisiona 44% de sua população carcerária em instalações privadas, e estados como Montana, Alasca e Wyoming transferiram mais de 25% da sua população carcerária para empresas privadas. Em arranjos que lembram o sistema de arrendamento de condenados, os governos federal e estadual e os governos dos condados pagam às empresas privadas uma taxa por cada preso, o que significa que essas empresas privadas têm interesse em reter os detentos na prisão pelo maior tempo possível e em manter suas instalações cheias.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 103)

“Em 2000 havia 26 corporações com fins lucrativos atuando no setor penitenciário nos Estados Unidos, que operavam cerca de 150 instituições em 28 estados. As duas maiores dessas empresas, a CCA e a Wackenhut, controlam 76,4% do mercado privado de prisões no mundo. A CCA está sediada em Nashville, Tennessee, e, até 2001, sua maior acionista era a multinacional sediada em Paris Sodexho Alliance, que, por meio de sua subsidiária americana Sodexho Marriot, fornecia serviços de alimentação a novecentas faculdades e universidades nos Estados Unidos. O Prison Moratorium Projetc, organização que promove o ativismo juvenil, liderou uma campanha de protesto contra a Sodexho Marriot em campi por todo o país. Entre os campi que deixaram de usar os serviços da Sodexho estavam os da SUNY Albany, da Goucher College e a James Madison University. Os estudantes já tinham feito protestos pacíficos e organizado manifestações em mais de cinquenta campi quando a Sodexho finalmente se desfez de sua participação na CCA, no outono de 2001.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 105)

“As prisões privadas são fontes de lucro para as empresas que as administram, mas as prisões públicos estão tão completamente saturadas de produtos e serviços lucrativos de empresas privadas que a distinção não é tão significativa quando se poderia imaginar. As campanhas contra a privatização que apresentam as prisões públicas como alternativa adequada às prisões privadas podem ser enganosas. É verdade que uma das principais razões para a rentabilidade das prisões privadas é a mão de obra não sindicalizada que elas empregam, e essa importante distinção deve ser destaca. No entanto, as prisões públicas estão agora igualmente atadas à economia corporativa e constituem uma fonte cada vez maior de lucro capitalista.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 107/108)

“A retórica da reforma prisional que sempre embasou as críticas dominantes ao sistema não vai funcionar nesta nova configuração. Se as abordagens reformistas tendiam a reforçar a permanência da prisão no passado, certamente não serão suficientes para questionar as relações econômicas e políticas que a sustentam hoje. Isso significa que, na era do complexo industrial-prisional, os ativistas devem levantar questões difíceis sobre a relação entre o capitalismo global e a disseminação de prisões que seguem o modelo dos Estados Unidos por todo o mundo.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 108)

Segundo Angela Davis, nos EUA o encarceramento em massa é uma nova face do racismo estrutural e da exclusão social. No Brasil não tem sido muito diferente https://www.metropoles.com/brasil/direitos-humanos-br/negros-sao-maioria-nos-presidios-e-entre-as-vitimas-de-homicidios. Lá, o excesso de disciplina nas escolas educa as crianças pobres para a vida dentro dos presídios. Aqui, as deficiências do sistema público de educação entravam a mobilidade social e produzem o “lixo social” que será posteriormente recolhido à prisão.

“A racialização do crime – a tendência a ‘imputar crime a cor’, para usar as palavras de Frederick Douglass – não diminuiu conforme o país foi se livrando da escravidão. Uma prova de que crime continua a ser imputado a cor está nas muitas evocações de ‘perfil racial’ em nosso tempo. É fato que é possível se tornar alvo da polícia por nenhuma outra razão além da cor da pele. Departamentos de polícia em grandes áreas urbanas admitiram a existência de procedimentos formais destinados a maximizar o número de afro-americanos e latinos detidos – mesmo na ausência de causa provável. No período que sucedeu aos ataques de 11 de setembro, um grande número de pessoas cujas origens remontavam ao Oriente Médio ou ao Sul da Ásia foi preso ou detido pela agência policial conhecida como Serviço de Imigração e Naturalização (INS, na sigla em inglês). O INS é a agência federal com maior número de agentes armados, mais até mesmo do que o FBI.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 32/33)

“Quando crianças frequentam escolas que valorizam mais a disciplina e a segurança do que o conhecimento e o desenvolvimento intelectual, estão frequentando instituições que as preparam para a prisão. Se essa é a difícil situação que enfrentamos hoje, o que reservará o futuro se o sistema prisional tiver uma presença ainda maior na nossa sociedade? No século XIX, ativistas abolicionistas insistiam que, enquanto a escravidão continuasse, o futuro da democracia seria realmente sombrio. No século XXI, ativistas antiprisionais insistem que um dos requisitos fundamentais para a revitalização da democracia é a abolição mais do que urgente do sistema prisional.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 41)

O capitalismo transformou o binômio “crime e castigo” em “castigo e lucro” mediante a perpetuação de três crimes invisíveis que não são objeto de punição: o racismo estrutural, a exclusão social programática e a ausência de mobilidade social garantida pela adoção de políticas neoliberais. Mas segundo Angela Davis é possível romper os grilhões que foram criados pelo capitalismo.

“O processo por meio do qual o encarceramento se tornou a maneira primária de punição imposta pelo Estado estava intimamente relacionado à ascensão do capitalismo e ao surgimento de um novo conjunto de condições ideológicas, Essas novas condições refletiam a ascensão da burguesia como a classe social cujos interesses e aspirações patrocinaram novas idéias científicas, filosóficas, culturais e populares. É, portanto, importante compreender que a prisão como a conhecemos não surgiu no palco histórico como a forma suprema e definitiva e punição. Foi simplesmente – embora não devamos subestimar a complexidade desse processo – o que fazia mais sentido em determinado momento da história. Deveríamos, portanto, nos perguntar se um sistema que estava intimamente relacionado com um conjunto específico de circunstâncias que predominaram durante os séculos XVIII e XIX pode continuar reinando absoluto no século XXI.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 46)

“Criar projetos de desencarceramento e ampliar o leque de alternativas nos ajudam a colocar em prática o trabalho ideológico de desmontar o vínculo conceitual entre crime e castigo. Essa compreensão mais elaborada do papel social do sistema de punição exige que abandonemos nossa maneira habitual de pensar sobre a punição como uma consequência inevitável do crime. Teríamos que reconhecer que o ‘castigo’ não é uma consequência do ‘crime’ na sequência lógica e simples oferecida pelos discursos que insistem na justiça do aprisionamento, mas sim que a punição – principalmente por meio do encarceramento (e às vezes da morte) – está vinculada a projetos políticos, ao desejo de lucro das corporações e às representações midiáticas do crime. O encarceramento está associado à radicalização daqueles que têm mais probabilidade de ser punidos. Está associado a sua classe e, como vimos, a seu gênero, que também estrutura o sistema penal. Se insistirmos que as alternativas abolicionistas perturbam essas relações, que se esforçam para desvincular crime e punição, raça e punição, classe e punição, gênero e punição, então nosso foco não pode se restringir apenas ao sistema prisional como uma instituição isolada, mas deve se voltar também para todas as relações sociais que sustentam a permanência na prisão.” (Estarão as prisões obsoletas? Angela Davis, Difel, Rio de Janeiro, 2018, p. 121)

O livro de Angela Davis é bem estruturado e contém as informações indispensáveis para o leitor compreender como e porque o capitalismo engendrou e se beneficiou do encarceramento em massa. Mas ele ataca apenas um sintoma da doença. A causa do mal que aflige a civilização foi dissecada por Raphael Boldt na obra “Processo Penal e Catástrofe”. No livro “BR 111 – a rota das prisões brasileiras”, Fábio Mallart e Rafael Godoi [orgs.] escancaram a realidade do sistema prisional brasileiro para que o leitor possa avaliar e julgar por si mesmo se o Processo Penal cumpriu seu objetivo ou se a Inquisitio deve ser substituída pela Disputatio junto com a abolição dos presídios. Os livros da trilogia “castigo e lucro” são, portanto, complementares.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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