Marielle Franco, uma vida matável?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Marielle Franco, uma vida matável?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O assassinato da vereadora carioca me fez lembrar uma obra importante que li no começo deste ano de 2018:

“… ainda hoje, a lógica perversa que autoriza e promove o assassinato de pessoas qualificadas como ‘bandidos’ permanece em vigor nas ruas da cidade. Não pode ser outra a constatação diante das imagens de policiais abordando suspeitos, executando-os e, em seguida, forjando a cena de um suposto ‘confronto’, como em novembro de 2012, no Butantã.

O uso deliberado, excessivo e desproporcional de força letal caracteriza o modo de operação da Polícia Militar, como mostram as cenas exibidas ao vivo, em junho de 2015, na Rede Record e na TV Bandeirantes, de um policial desferindo seguidos disparos em dois suspeitos rendidos e desarmados, caídos no chão, após perseguição. 

Não se trata, portanto, de despreparo das forças policiais que, nessa chave deveriam ser reformadas, aprimoradas e capacitadas, mas, sim, de um extremo preparo – taticamente formulado, testado e legitimado – para a produção da morte daqueles que são considerados indesejáveis e perigosos.

Ressalta-se ainda as ressonâncias que esse modo de operação encontra nos veículos da grande imprensa – mas também em parte da população – cujas execuções são justificadas pela lógica tinha passagem ou do quem não reagiu está vivo. São múltiplos os discursos que fortalecem a visão do ‘bandido’ e, em particular, do ‘ex-presidiário’, como figuras preferencialmente matáveis.

Na grande imprensa, quando se noticia que a polícia matou um suspeito, logo se justifica o ato evocando os antecedentes criminais do cadáver; ou, pelo contrário, mas com semelhante efeito, quando se noticia que a polícia matou um ‘inocente’, um ‘trabalhador’, condena-se o fato dela não ter executado um ‘bandido’. Nesse sentido, constata-se – em carne e sangue – uma das dimensões de produtividade do dispositivo carcerário contemporâneo: a produção de vidas matáveis.” (BR 111 – a rota das prisões brasileiras, texto Vidas Matáveis, Fábio Mallart e Rafael Godoi, editora Veneta, São Paulo, 2017, p. 26/27).

O fenômeno identificado em São Paulo se reproduz no Rio de Janeiro, onde a letalidade policial tem sido justificada há décadas pela grande imprensa. Ontem a vítima foi uma vereadora do PSOL.

Marielle Franco era ativista dos direitos humanos. Em 28 de fevereiro de 2018 ela foi nomeada pela Câmara dos Vereadores para compor a Comissão que supervisiona a intervenção militar no Rio de Janeiro. Em 10 de março de 2018 ela denunciou um caso grotesco de violência policial em Acari. Quatro dias depois ela seria morta com quatro tiros na cabeça. O modus operandi do assassino (ele disparou quatro tiros na cabeça da vítima) revela que podemos estar diante de uma execução realizada por um atirador experiente.

A vereadora não tinha passagem pela polícia, não há qualquer indício que ela tenha sequer tido tempo de reagir. Mesmo assim Marielle Franco foi abatida como se ela também pertencesse ao conjunto de pessoas cujas vidas são matáveis.

O que desejava o assassino de Marielle? Puni-la porque ela defendia os direitos humanos, impedi-la de supervisionar a intervenção militar no Rio de Janeiro, se vingar porque a vereadora denunciou a violência policial em Acari? A natureza política da execução me parece evidente. Esse assassinato complicará as relações entre os agentes do Estado encarregados de cumprir e fazer cumprir a Lei dentro da Lei e aqueles que pretendem impor uma versão autoritária da Lei cometendo excessos passíveis de punição.

É de se supor que neste caso – a exemplo do que ocorreu quando a juíza Patrícia Acioli foi assassinada – o Estado conseguirá localizar, processar, condenar e prender o responsável. Marielle Franco tinha o perfil de uma vida matável (negra, favelada e defensora dos direitos humanos), mas ela exercia um cargo eletivo e a defesa da dignidade da Câmara dos Vereadores obrigará o Estado a agir como se a vida dela tivesse importância. Caso contrário, a população carioca poderá começar a acreditar que qualquer vereador pode ser morto, algo que nem mesmo os parlamentares que defendem a violência policial desejam.

A corda arrebentou do lado do mais fraco quando Marielle foi assassinada. Ela também arrebentará do lado mais fraco quando o pistoleiro foi triturado nas malhas da justiça como ocorreu com os assassinos da juíza Patrícia Acioli. Todavia, a estrutura que possibilita a distinção entre vidas matáveis e não matáveis restará intacta.

Um fato importante neste caso está sendo desprezado pelos jornalistas que comentam o que ocorreu ontem. A punição exemplar dos assassinos da juíza Patrícia Acioli não foi capaz de impedir a execução da vereadora Marielle Franco por motivos semelhantes.

Patrícia Acioli era juíza, branca e de família tradicional. A vida dela não era matável. Marielle Franco era negra e tinha uma origem humilde. Sua vida foi considerada matável pelo assassino. Ambas foram executadas porque ousaram defender os direitos humanos e combater a criminalidade policial instigada diariamente pela imprensa. Mas é obvio que a imprensa não vai querer reformar a si mesma para que o Estado possa ser reformado. O assassino que puxa o gatilho é o criminoso. Apenas ele será cassado e enjaulado, para que os jornalistas possam continuar a fazer o que fazem melhor (construir contextos em que a violência se espalha seletivamente pela sociedade, de maneira a atingir apenas os pobres e aqueles que defendem os direitos deles).

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

2 Comentários

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  1. Escobar pintou e bordou, até matar Galan.

    quem sabe agora que mataram um político aqui, eles mudem de idéia. passem a olhar com outros olhos a conveniência das milicias.

  2. – Oi. Aqui é a Marielle

    – Oi. Aqui é a Marielle. Sou amiga da sua irmã e já almocei com você. Tenho um problema trabalhista.

    – Sim?

    – Meu marido sofreu um acidente e morreu por 30 minutos. Ele voltou a vida, mas ficou com sequelas. A empresa não quer mandar ele embora.

    – Ligue depois para minha irmã.

    Recebi esta ligação hoje pela manhã. A voz era feminina, mas muito desagradável. Não conheço nenhuma mulher chamada Marielle. Imagino que o nome da vereadora assassinada foi usada para me intimidar, pois escrevo textos no Jornal GGN combatendo a violência policial.

    De fato, estava começando a escrever o texto divulgado hoje quando recebi a ligação estranha e ameaçadora. Mas estou tranquilo, pois aprendi a manusear armas de fogo com meu avô quando era criança. Sei me defender.

     

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