O vandalismo histórico do mercado no Brasil, por Fábio de Oliveira Ribeiro

De maneira geral, podemos dizer que a imprensa cobriu o episódio do assassinato de maneira adequada. O mesmo não se pode dizer da cobertura das manifestações.

O vandalismo histórico do mercado no Brasil

por Fábio de Oliveira Ribeiro

O assassinato de um rapaz negro no Carrefour provocou uma reação vigorosa. Unidades do supermercado foram invadidas, mercadorias foram jogadas no chão. Um princípio de incêndio foi registrado em uma delas.

Hamilton Mourão, general-vice a serviço do programa de desgoverno do capitão presidente, imediatamente negou que tenha ocorrido racismo. Ele foi desmentido pela matriz francesa do próprio Carrefour.

De maneira geral, podemos dizer que a imprensa cobriu o episódio do assassinato de maneira adequada. O mesmo não se pode dizer da cobertura das manifestações.

Como sempre ocorre em nosso país, as manifestações foram imediatamente criminalizadas.

Telejornalistas classificaram os manifestantes de vândalos. Qualquer reivindicação política que eles façam às autoridades poderá ser ignorada. O Estado não deve negociar com vândalos é a versão brasileira do famoso “We do not negotiate with terrorists” do governo norte-americano.

É assim que o racismo estrutural funciona e se perpetua em nosso país. Sempre que qualquer reação política ameaça o “status quo” ele é preservado mediante um subterfúgio. No caso específico do Brasil isso tem sido uma regra desde os tempos coloniais.

A legislação portuguesa distinguia os índios em amigáveis e hostis. Exemplo desse tratamento pode ser visto no Regimento de 17 de dezembro de 1548:

“… são da linhagem dos Tupinambás, e se alevantaram já, por vezes, contra os Cristãos e lhes fizeram muitos danos, e  que ora estão ainda alevantados e fazem guerra e que será muito serviço de Deus e meu serem lançados fora dessa terra, para se poder assim povoar, assim de Cristãos, como de gente da linhagem dos Tupiniquins, que dizem que é gente pacífica; que se oferecem a os ajudar a lançar fora, e a povoar e defender a terra…” (item 16, página 4).

O rei comanda ao seu legado Tomé de Souza não molestar os Tupiniquins, considerados pacíficos. Autoriza-o a utilizá-los na guerra contra os Tupinambás. Os índios pacíficos poderiam ser deslocados de seus territórios de origem e assentados nas terras das quais ajudassem a expulsar os inimigos do Rei.

Esses aliados deveriam ser tratados como vassalos da Coroa, se possível convertidos ao cristianismo. Quanto aos outros índios, aqueles considerados hostis, eles podiam ser tratados a ferro e fogo. O Rei outorgava ao seu legado e aos colonos o legítimo direito de fazer a guerra contra os Tupinambás especificando os meios indispensáveis para que eles pudessem cumprir sua obrigação (vide o item 32, do Regimento de 17 de dezembro de 1548).

O problema: assim que os Tupinambás foram dizimados ou forçados a migrar para o interior de Pindorama, os aldeamentos coloniais no litoral cresceram e os colonos começaram a cobiçar as terras ocupadas pelos Tupiniquins total ou parcialmente cristianizados. Eles não podiam molestar os índios sem ferir a legislação do reino, exceto se eles pudessem ser considerados hostis.

A dinâmica que se seguiu foi singela. Os colonos provocavam os índios pacíficos, quando reagiam eles eram declarados hostis pelas autoridades. Seguia-se uma expedição punitiva que resultava na apropriação das terras anteriormente outorgadas aos ex-aliados da Coroa portuguesa. Alguns traços desse comportamento podem ser vistos até hoje na ação dos policiais e agentes de segurança. Não é por acaso que o Judiciário quase sempre legitima as agressões e os assassinatos cometidos por PMs atribuindo validade e eficácia aos autos de resistência à ação policial.

Essa é a dinâmica que a imprensa brasileira normaliza ao chamar manifestantes de vândalos. Os negros que se levantaram contra a letalidade dos seguranças do Carrefour podem (ou devem) ser tratados como se fossem índios hostis do século XVI. As reivindicações deles obviamente serão automaticamente ignoradas.

Em nosso país, o que se espera das vítimas da violência racial é apenas uma coisa: a total ausência de reação. Se forem agredidos eles não podem revidar. Se ousarem organizar alguma reação, a violência utilizada contra eles será ainda maior e tudo o que eles disserem não terá qualquer relevância política.

As terras ocupadas pelos índios, fossem eles amigáveis ou hostis, não tinham qualquer valor econômico. Elas só adquiriam valor se e quando eram incorporadas ao patrimônio dos colonos e empregadas na produção colonial. Branqueadas ou cristianizadas, os territórios indígenas foram se tornando mais e mais valiosos. Esse valor, transmitido por herança, constitui o principal cabedal dos capitalistas brasileiros.

O mercado não reagiu ao ocorreu no Carrefour. As ações da empresa não sofreram qualquer flutuação. Isso não deveria causar qualquer surpresa. Os proprietários dessas ações são homens brancos cujo patrimônio tem uma história de acumulação extremamente violenta. É evidente que a letalidade do supermercado em relação aos negros não deve afetar os interesses deles.

Muito pelo contrário. Como vivemos num país construído pelo racismo e estruturado para perpetuar o poder político e econômico dos homens de bem racistas, é possível que o mercado valorize as ações do Carrefour. Afinal, aquele supermercado racialmente letal não é uma empresa qualquer. Há provas inequívocas de que o Carrefour tem o que nós podemos ironicamente chamar de um “elevado quociente de branquidade”.

O corpo negro morto estendido no piso do Carrefour é apenas um problema temporário.

Qualquer modificação do “status quo” afetaria os interesses políticos e econômicos da sociedade dos homens de bem racistas. E não se engane: eles são brancos como a neve europeia e, portanto, intrinsecamente honestos e virtuosos. Bem… ao menos essa é a imagem que eles construíram para si próprios a fim de esquecer o sangue dos indígenas e dos escravos que os antepassados deles derramaram.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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