Resistência e diálogo: métodos para lidar com discursos de ódio crescentes, por Camilin Marcie de Poli

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Montagem: Reprodução/Pinterest

do Justificando

Resistência e diálogo: métodos para lidar com discursos de ódio crescentes

por Camilin Marcie de Poli

“O mal é um mistério indecifrável.

Ele está aí não para ser compreendido

mas para ser combatido.”

Leonardo Boff

Após um curto período de descanso acadêmico, mas já com saudades da coluna e do feedback dos leitores, estava pensando sobre o tema que iria abordar no meu primeiro texto da segunda temporada da coluna Justiça & Liberdade, do Justificando.

Acompanhando a recente polêmica instaurada nos meios de comunicação social como um todo, e refletindo sobre os reflexos dela na sociedade, pensei ser preciso tecer algumas considerações críticas sobre a cultura do absurdo, imperante de forma veemente no atual cenário nacional.

 

É evidente que opinião cada um tem a sua, e que é preciso respeitar, seja ela fundamentada nos mais refinados autores da filosofia e da ciência política, seja na mais medíocre e manipuladora das emissoras, pois, convém lembrar, cada um escolhe aquilo que lhe apraz.

Entretanto, percebi que não devemos nos calar e aceitar a onda de discursos de ódio e intolerância crescentes a cada dia, sob pena de contribuirmos (por omissão) com os danos que daí advém. Assim, devemos enfrentar essa lógica perversa através da reflexão crítica e do diálogo, resistindo e denunciando os perigos que com ela se apresentam.

Com efeito, não é de hoje que vemos opiniões insensatas tomando espaço na mídia e no mundo de relações.

Machismo, racismo, sexismo, homofobia, preconceitos e discriminações de toda ordem, embora repugnantes,sempre estiveram presentes na sociedade. Eles insistem em se produzir e reproduzirem tempos em que se não tem mais lugar para tamanha irracionalidade, que é fruto de uma cultura do absurdo.

Contudo, os fatídicos e recentes eventos vividos no Brasil, demonstram que a exteriorização do ódio e o combate ao outro estão cada vez mais manifestos no cotidiano dos indivíduos e das Instituições. Prepondera a intolerância, cresce o autoritarismo, multiplicam-se os abusos, inobservavam-se as formas, aumentam-se as arbitrariedades, evidencia-se o cultivo ao ódio em detrimento da democracia, e por aí vai.

É preciso repelir essa falta de civilidade e interromper esse caminho de barbárie para que coisas muito piores não aconteçam, pois, é importante lembrar que “a história é mestra da vida porque nos mostra que o que ocorreu no passado continua acontecendo no presente”[1].

Como se pode notar, assim como em outras épocas nas quais o autoritarismo foi utilizado como mecanismo de extermínio da política e das diferenças, os indivíduos são constantemente atraídos (sobretudo pela mídia) ao treinamento do ódio através da repetição imprudente e acrítica de discursos prontos.[2]

O escopo é recrutar adeptos para a manutenção do status quo e para a legitimação da repressão, através da criação de uma massa de manobra.

Com isso, os indivíduos são estimulados a não pensar, ou seja, são induzidos a um vazio de pensamento que os torna presas fáceis e os leva a perda da humanidade. Essa ausência de pensamento, que é pressuposto do fascismo, contribui para que o mal cresça e se mostre na sua forma mais extrema, e ainda assim, seja visto como algo normal.[3]

Desde essa perspectiva, é possível perceber que muitas vezes a reprodução desses discursos não decorre de escolhas políticas e/ou ideológicas, mas de pura incapacidade de reflexão e de pensamento crítico (para não dizer ignorância). O mais chocante é que grande parte desses discursos é usada para justificar o autoritarismo, restringir direitos, solapar garantias, legitimar a barbárie, permitir uma política de extermínio, e seus reprodutores sequer se dão conta disso.

Intitulam-se pessoas de bem, e acreditam ser demasiadamente esclarecidas e detentoras da verdade (que verdade?). Falam de política, direito, filosofia, economia, com a maior segurança e intimidade, como se detivessem o conhecimento (que não possuem), usando de um nefasto discurso de autoridade, porém, sem qualquer autoridade no discurso.

Nada mais fazem do que reproduzir o que viram nos meios de comunicação social (programas sensacionalistas, redes sociais, etc.) de maneira mecânica e impensada.

Sequer se dão o trabalho de verificar a veracidade das informações passadas e repassadas. Não pensam, não questionam, não raciocinam. Apenas repetem, copiam, compartilham.

Aplaudem a violência, pactuando com o desrespeito, com a crueldade, com a tortura, com a matança, com o horror. Distribuem ódio e intolerância, em uma completa banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos[4].

São os fariseus do nosso tempo

Essa ideologia fascista, baseada na negação, é cada vez mais internalizada e naturalizada pelos indivíduos e pelo Estado. Nega-se tudo: o outro, as diferenças, as conquistas históricas, a luta de classes, os direitos humanos, o conhecimento, a história, o diálogo, a cidadania, etc.[5] Vira-se as costas para a opressão, para o sofrimento alheio, para a injustiça.

Desconsidera-se que vivemos em um estado de exceção que se mostra como regra.[6] Infelizmente, a lógica histórica descrita por Arendt continua em plena atividade[7] em um Estado que se intitula Democrático.

Todavia, convém lembrar que a democracia se perfaz, sobretudo, com o reconhecimento da diferença. A existência da forma democrática exige a constante busca por uma sociedade igualitária, justa e inclusiva.

Pressupõe uma sociedade na qual se viabilize o diálogo e o respeito a alteridade. Logo, não se pode permitir a violação dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Não se pode abrir mão da dignidade, da liberdade, da igualdade, da justiça, do respeito e tantos outros, sob pena de se ter um autoritarismo travestido de democracia.

Desde esse ponto de vista, não se deve viver de maneira acrítica e irreflexiva. Não se pode ser terrível e assustadoramente “normal” como Eichmann, o oficial nazista descrito por Arendt.[8]

É preciso criar condições de possibilidade para a interrupção da intolerância, para a concretização da igualdade, para o crescimento do diálogo, para uma verdadeira mudança cultural.

O pensamento conservador e o discurso legitimador da normalidade do absurdo não podem ter mais espaço em um país que se diz civilizado.

É preciso acabar com as práticas autoritárias, repudiar o ideal de eliminação da diferença, repelir o discurso de ódio, fazer cessar a política de extermínio, combater a banalidade do mal.

Ainda que vivamos em tempos sombrios, em que não é fácil vislumbrar um futuro melhor para as próximas gerações, precisamos lutar e ter esperança. Não podemos esquecer que tempos como esses não são algo novo ou raro na história e, até mesmo neles temos o direito de esperar alguma luz.[9]

Mais do que nunca é preciso recuperar a capacidade de ouvir e aceitar o outro e as suas diferenças.É necessário resgatar o passado e refletir criticamente sobre ele, de modo a reorientar o pensamento e as ações para que Auschwitz não se repita.[10]

E o diálogo é o único meio de resistência contra essa cultura que insiste em legitimar o absurdo. É por ele que devemos combater os discursos fascistas, pois, como observa Casara, “dialogar com um fascista, e o sobre o fascismo, forçar uma relação com um sujeito incapaz de suportar a diferença inerente ao diálogo, é um ato de resistência.”[11]

É preciso resistir enquanto ainda temos tempo.

“Primeiro levaram os negros

Mas não me importei com isso

Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários

Mas não me importei com isso

Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis

Mas não me importei com isso

Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados

Mas como tenho meu emprego

Também não me importei

Agora estão me levando

Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo.”

(Bertold Brecht)

Camilin Marcie de Poli é Doutoranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em Direito. Graduada em História. Professora da FAE. Advogada. Escritora. Autora da obra “Sistemas Processuais Penais” e de diversos artigos na área jurídica.


[1]DUSSEL, Enrique D. Caminhos de libertação latino-americana: história, colonialismo e libertação. v. 2. São Paulo: Paulinas, 1984, p. 225.

[2]TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2016, p. 37-38.

[3]Nesse sentido, ver: ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

[4]ARENDT, Hannah. Eichmann… Op. cit., p. 274.

[5]CASARA, Rubens. Apresentação. In. TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2016, p. 12-13.

[6]BENJAMIN, em sua 8ª tese, sustentou que “a tradição dos oprimidos nos ensina que ‘o estado de exceção’ em que vivemos é a regra.” Como se pode notar, seus escritos continuam bastante atuais. MATE, Reyes. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin sobre o conceito de história. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 2011, p. 187.

[7]ARENDT, Hannah. Eichmann… Op. cit., p. 274.

[8]ARENDT, Hannah. Eichmann… Op. cit., p. 299.

[9]ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 7.

[10]MATE, Reyes. Meia-noite…Op. cit.,p. 33.

[11]CASARA, Rubens. Apresentação… Op. cit., p. 15.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. Mas também devemos ser

    Mas também devemos ser realistas: que fração da população brasileira está preparada para falar de fascismo com um fascista ? E dos que se dispõem a falar, que fração obtém algum êxito ? Imagino que seja muito pouco em face da capacidade dos meios de comunicação de disseminar o ódio.

  2. …resistir “dialogando” com quem é cínico ou fanático, como?…
    Identifiquei-me totalmente com o texto, Suas premissas, seus conceitos, o que defende, ficando com dez pontos de interrogação na cabeça apenas em relação ao último parágrafo:
    .
    “E o diálogo é o único meio de resistência contra essa cultura que insiste em legitimar o absurdo. É por ele que devemos combater os discursos fascistas, pois, como observa Casara, “dialogar com um fascista, e o sobre o fascismo, forçar uma relação com um sujeito incapaz de suportar a diferença inerente ao diálogo, é um ato de resistência.””
    .
    Venho falando sobre o “mundo-matrix” brasileiro, que nada mais é (o conceito, a ideia) do que centenas de articulistas dizem cada um à sua maneira, mas simbolizando a mesma cognição com a realidade: Hoje, somos uma sociedade tornada perversa, fascista, intolerante, banhada em nojos e ódios, e acima de qualquer dessas coisas, FARSESCA! Multidões falam, pensam, sentem, agem e reagem, baseadas exclusivamente em informações, conceitos, crenças, ideias, nelas inoculados pela grande mídia e outros agentes sociais que representam o discurso dominante nesses tempos. Não fosse tudo isso DOENTIO, jamais um ser humano seria condenado em um processo cuja base é um imóvel que nunca, jamais lhe pertenceu – de tão nonsense, absurda e patética que é a premissa para o julgamento do cidadão. Só para citar um dos exemplos que demonstram que o Brasil virou, de fato, um HOSPÍCIO, pior, um Hospício teatral, caricato, cínico e insano o suficiente para que a FICÇÃO assuma a força de uma “realidade” totalmente inventada por quem tomou o poder e tudo faz para aniquilar as vozes dissidentes na sociedade…..
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    Serei honesto…. Minha “queixa” sobre a solução apontada pela autora – o diálogo com essa turba… – tem a ver com minhas próprias frustrações nas parcas tentativas em que busquei o uso dessa “ferramenta”, o diálogo. Confesso também ainda estar preso à uma fase – que batizei para mim mesmo de “ética” e “justa” – que consiste em denunciar a esses brasileiros, seu erro, seu fascismo, sua ignorância, sua incoerência e hipocrisia, bem como as consequências para nossos pobres e miseráveis de todos os erros cometidos por esses fanáticos.
    .
    Recentemente li um texto primoroso, em que alguém usa Lacan como base para afirmar – os argumentos eram impecáveis! – a total impossibilidade de diálogo, quando “acusamos” o outro, o achincalhamos, mesmo que cobertos de todas as razões, as mais justas…..
    Isso me deixou na mesma sinuca de bico que esse texto! Como não desmascarar e denunciar a gravidade do comportamento dessa gente tornada rebanho humano, preconceituosos, fanáticos, mesmo os que entre eles sejam civilizados, educados e gentis (como deveriam ser à sua época, milhões de nazistas alemães….) ? Se não aponto a falta de ética, a enfermidade, a farsa, a manipulação havidos em seu comportamento, é como se eu mesmo me tornasse cúmplice deles, por OMISSÃO…. – Se “pulo essa parte”, o diálogo mesmo assim parece impossível, tão distantes são as formas de ver a realidade do país, as causas, as soluções…. Quero Lula eleito, eles o querem preso, quero programas sociais, eles querem o Estado mínimo, tenho horror à Lava Jato, eles a celebram…… – Onde o ESPAÇO para o tal do diálogo?
    .
    São coisas em que tenho refletido encontrando mais perguntas e dúvidas do que respostas.
    .
    Uma conclusão simplória e pragmática me confortou: aos cínicos, combater ferozmente, aos golpistas, idem…. Assim como a qualquer um, “ingênuo” ou não, “apenas um manipulado”, ou não, desde que estejam marchando contra a democracia, a tolerância, ao que é justo.
    .
    No “frigir dos ovos”, o fato é que estamos em guerra! Como tudo nesse país, uma guerra fantasiada de FARSA, caricata, mascarada, mas ainda assim, uma guerra.
    .
    É dialogar com quem se mostrar disposto, no mais, é resistência e luta com as forças, as armas, a ética, o pragmatismo que nos couber.
    .
    Um super super idealismo em tempos de guerra, pode ser o caminho da derrota antecipada.

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