Cidadania

Olsen Noção, por Antonio Lassance

Olsen Noção

por Antonio Lassance

O almirante Marcos Sampaio Olsen, comandante da Marinha, não tem noção do absurdo que cometeu ao se insurgir contra o projeto, em discussão no Congresso Nacional, que pretende incluir o nome de João Cândido Felisberto no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.

Vou usar as aspas da nota que o comandante revoltado escreveu para destacar as palavras que ilustram o quanto, ela sim, é digna dos adjetivos que ele vocifera contra os marinheiros amotinados em 1910 e, em particular, à figura emblemática de João Cândido.

A começar, é “deplorável” que o almirante tenha enviado essa manifestação diretamente aos congressistas, “fendendo a hierarquia”. O almirante não entendeu até hoje que militar não apita em questões de ordem política e social? Não avisaram a ele que o DOPS acabou? O ministro José Múcio não deu a ele uma aulinha básica sobre para que serve o Ministério da Defesa? Não explicou que quem cuida de questões dessa natureza, junto ao Congresso, é o ministro, e quando for o caso? Nesse episódio, pelo menos um dos dois se mostrou despreparado para a função que ocupa. Talvez, ambos.

Olsen é, na melhor das hipóteses, um sem noção. Todo e qualquer registro histórico mostra que os marinheiros de 1910 lutavam para não serem tratados como escravos. O almirante chama o episódio de tentativa de obter “vantagens corporativistas e ilegítimas”, em busca de um “regime de trabalho menos exigente”. Não ser açoitado, receber salários regulares, não comer comida podre, que coisa! Esses marinheiros queriam o quê? Mamata?!

Quando a gente lê o Olsen revoltado com o fato de que os marinheiros “utilizaram equipamentos militares para chantagear a nação” e têm responsabilidade pelo “sangue de brasileiros inocentes derramado” e “pelo descomedido emprego da violência de militares contra a vida de civis brasileiros”, a gente quase imagina que os comandantes militares usam essas mesmas aspas em todo 31 de março para condenar o golpe que patrocinou torturas, sequestros e assassinatos ao longo de 21 anos.

O almirante vai além e condena a “subversão” e a “ruptura de preceitos constitucionais organizadores e basilares das Forças Armadas”, “que nada contribuirá ao pleno estabelecimento e manutenção do verdadeiro Estado Democrático de Direito”. De novo, eis a mais perfeita condenação que um militar deveria fazer ao golpe de 1964. O problema é que isso, do ponto de vista jurídico, não cabe à chamada Revolta da Chibata, de 1910.

Quem conhece minimamente a história sabe que o Estado de Direito estava do lado dos revoltosos. O Decreto n° 003, de 1889, publicado logo no dia seguinte à Proclamação, diz o seguinte, literalmente:

O Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brazil, attendendo ao patriotismo e disciplina com que se houveram as praças da armada que cooperaram no movimento nacional, que deu em resultado a proclamação do actual regimem, decreta:

Art. 1º Fica reduzido a nove annos o tempo da duração de serviço na armada para os recrutados e para os procedentes das escolas de aprendizes marinheiros.

Art. 2º Fica abolido na armada o castigo corporal.

Sala das sessões do Governo Provisório, 16 de novembro de 1889, 1º da Republica.

Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisorio, Aristides da Silveira Lobo, Ruy Barbosa, Quintino Bocayuva, Benjamim Constant e Eduardo Wandenkolk, ministro da Marinha.

Sim, meu caro Olsen. Os amotinados tinham razão e eram eles que estavam do lado da lei e da ordem republicana. A nossa Marinha (à época, chamada de Armada) proibia que seus oficiais aplicassem chibatadas a seus subordinados desde 1889. Já era 1910. Após verem mais de duzentas chibatadas sendo aplicadas a um colega marinheiro, cujos ossos das costelas só não ficavam mais à mostra por conta dos jatos de sangue que jorravam, você realmente acha que não era hora de alguém dar um basta? Ou o pessoal estava se precipitando?

O Ministério da Defesa tem agora um problema difícil de resolver. Afinal, se João Cândido não pode ser herói porque era um revoltoso, Tiradentes, outro militar revoltoso, também não pode. E agora? Vai ter que ser expurgado do Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria por ser um exemplo “deplorável” de uma “página da história nacional”?

Mas a coisa é ainda mais complicada. Durma-se com um barulho deste: Joaquim Marques Lisboa também não pode constar desse livro. Por que não? Porque ele lutou na guerra de Independência. Além de amotinado, traidor—pelo menos, de acordo com a minúscula e tortuosa régua do atual comandante aquático. Para quem não sabe, Joaquim Marques Lisboa, vulgo Marquês de Tamandaré, é o patrono da Marinha do Brasil. Sim, Olsen, quem diria? A minha, a sua, a nossa Marinha nasceu de revoltosos. Isso não merece também uma nota? Que tal?

João Cândido, o almirante negro, já é um herói. Registrar esse fato no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria é apenas uma homenagem que os parlamentares do Congresso podem fazer, quae sera tamem. É algo que todo mundo já sabe. Todo mundo, menos o Olsen.

Antonio Lassance é doutor em ciência política e historiador.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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Redação

Redação

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  • Quando o gato dorme, os ratos fazem a festa.

    Não há comando em chefe das FFAA.

    O Governo Lula está embaixo da cama, tremendo de medo.

    Desde 2002.

    É aterrador a invasão de assuntos que não cabem a Marinha e a nenhuma outra força.

    As FFAA são uma vergonha, estuário de privilégios para seus oficiais, ineficiência todos os sentidos e insubordinação ao poder civil, que na verdade, não exerce poder algum, como dissemos.

    Enfim, esse país é um lixo governado por indigentes e com uma elite batedora de carteira.

  • No final dos anos 90 o Teatro Popular União e Olho Vivo montou a peça, da qual participei, "João Cândido do Brasil - A Revolta da Chibata". Ao iniciar a pesquisa nos arquivos da marinha os dois integrantes que foram lá pesquisar quase foram arremessados pela janela quando disseram o que queriam e foram 'delicadamente' avisados de que não deveriam fazer tal coisa. Pra pesquisar mudamos as pessoas e usamos nomes de oficiais 'brancos' para ter acesso de forma indireta a documentos relativos à Revolta. A 'nota' do milico de plantão repete, sem os palavrões, o que os pesquisadores ouviram naquele 1998 da boca de um oficial. Tenho nojo de milico, e não é de hoje.

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