Um gestor que quer vender tudo vai gerir o que?, por Juliana Borges

Foto: Eduardo Ogata/Secom

Do Justificando

por Juliana Borges

Já na campanha eleitoral, João Dória Jr. demonstrava suas intenções de fazer da cidade de São Paulo um grande negócio. Ainda em Julho de 2016, em entrevista, o atual Prefeito defendia “uma onda de privatização de bens públicos”. Após a vitória, em outubro de 2016, reforçava seu discurso, afirmando os recursos que poderiam vir para a cidade, compensando diminuição do orçamento municipal de 2017, em cerca de R$3bi, em relação ao do ano de 2016.

Logo após a posse, a gestão do atual Prefeito começou, então, a colocar seu projeto de venda da cidade em ação. Já em Fevereiro, o Secretário Municipal de Cultura, André Sturm informava que 52 bibliotecas públicas municipais e o Centro Cultural São Paulo (CCSP) seriam abertos para administração de organizações sociais. Significa, na prática, abrir para a iniciativa privada o maior sistema de bibliotecas públicas da América Latina, que recebe cerca de 4 milhões de consultas por ano. O principal argumento do Secretário da pasta, à época, era de que a contratação de artistas pela administração direta era “muito complexa” e deveria seguir “uma série de procedimentos”. Procedimentos que garantem transparência e bom uso da verba pública não parecem ter entre fãs membros do Secretariado atual.

Ainda em Fevereiro, é anunciado pelo Prefeito o pacotão de privatizações contendo dezenas de patrimônios da cidade. Além do Autódromo de Interlagos, o complexo do Anhembi e o Pacaembu, cartões da cidade, Dória apresentou que o Bilhete Único também seria aberto para a iniciativa privada. Para se ter uma ideia, a bilhetagem envolve mais de 5 milhões de usuários do transporte público, mais de 90% das viagens de ônibus e uma movimentação de milhões por dia.

Entre idas e vindas, o Projeto de Lei no. 367/2017 que, segundo o próprio texto, “disciplina as concessões e permissões de serviços, obras e bens públicos que serão realizadas no âmbito do Plano Municipal de Desestatização” (PMD), foi apresentado à Câmara no começo da segunda quinzena de Junho. O referido Plano, coordenado pela Secretaria Municipal de Desestatização e Parcerias da Prefeitura, em sua versão final, tem 55 projetos, sendo 12 prioritários: bilhetagem de transportes; terminais de ônibus; cemitérios, crematórios e serviços funerários; mercados municipais; parques, Pacaembu; imóveis municipais; Complexo Anhembi; Autódromo de Interlagos; moradia social; equipamentos e serviços de educação infantil; e iluminação pública. O PMD também cria um Fundo Municipal de Desenvolvimento que, segundo o site da Secretaria responsável, terá seus recursos “empregados em áreas sensíveis da administração, como saúde, educação, habitação, mobilidade e segurança”. Interessante.

Sob o verniz de um bom palavreado, a desestatização significa, em linhas gerais, abrir a cidade para a venda. Um Plano de tamanha magnitude, envolvendo 55 projetos, não teve qualquer apresentação, debate e interlocução com a sociedade civil. A gestão municipal alega que o resultado do PL apresentado é fruto de estudos realizados. Estes estudos podem ser apreciados pela população? O nível de acelera é tão grave que o PL demorou tanto para chegar à Câmara porque até a base aliada do atual Prefeito se incomodou com o ritmo e sem a garantia de qualquer mecanismo de consulta e participação. Um dado interessante: os conselhos Participativo Municipal e o da Cidade foram transferidos para a Secretaria que formulou o Plano! Por que nenhum diálogo?

Um ponto interessante do discurso da Administração Municipal é de que o Plano tem como objetivo obter recursos para áreas sensíveis. Mas o próprio plano entrega para a iniciativa privada áreas sensíveis da cidade, a saber: transporte e mobilidade, envolvendo-se bilhetagem, terminais e corredores; moradia social; equipamentos e serviços de educação infantil e iluminação pública. Ou seja, áreas que aparecem sempre como prioridades da população em qualquer campanha eleitoral do município. Se estará nas mãos da iniciativa privada, como a atual gestão diz que investirá nestas áreas? Ou será um investimento indireto? Sem dúvida, faz muito sentido entregar para que outro gerencie, lucre com isso e o poder público siga subsidiando. No que a cidade ganha?

O fato é que não se trata de ganho para a cidade, mas de ganho para a especulação imobiliária, para empresas e para o sistema financeiro – o projeto que prevê entregar a bilhetagem oferece a proposta de adicionar funções ao bilhete, como crédito e débito. É ou não um prato cheio para os bancos?

E este Plano – que já teve a entrega do Pacaembu aprovada em primeira votação, mas que só retornará ao debate da Câmara dos Vereadores em Agosto, pela falta total de diálogo da gestão – é uma das pontas do pano de fundo ideológico da atual administração e está, totalmente, articulado a outras ações violentas e repressoras na cidade como as ocorridas na Cracolândia e na Favela do Moinho. O excessivo uso de força e de agentes repressivos está indissociado dos interesses do capital especulativo. Mesmo em contextos de ampla exploração, conforme aponta Foucault, a lógica do controle e exclusão são os lugares negados, os “lugares-não-lugares”, destas populações vulneráveis na lógica interseccionada do sistema de dominação. Como consequência da lógica da exploração do trabalho, o corpo-máquina ao desprover-se desta característica, que seria seu único objetivo no sistema capitalista, torna-se desnecessário de controle e tem sequestrada sua atuação política, sendo, com isso, passível da desumanização e do aniquilamento. Ou seja, há gritantes interesses corporativos e financeiros guiando a construção de ações e projetos da atual gestão.

Não se trata de garantir direitos, melhorar serviços. O discurso de uma suposta eficiência serve para desmantelar a estrutura estatal para os que mais necessitam de serviços públicos e gratuitos: negros e negras pobres e periféricos.

O que temos visto em São Paulo é o mais próximo de nós, o sequestro do Estado pelo Capital. Uma tendência que se alastra pelo mundo em crise sistêmica, em que não são mais necessárias as mediações das relações entre Estado e sistema por uma classe política. Hoje, o capitalismo tem apresentado, sem mediações, suas próprias representações para a “gerência” do Estado e de seus interesses. E uma das facetas desta reestruturação sistêmica é a proliferação de práticas restritivas da democracia, desmonte e desorganização do Estado criando sociedades “politicamente democráticas e socialmente fascistas”, na linguagem de Boaventura de Sousa Santos. Ou seja, há uma aposta destes “gestores do capital” na crise de representação e participação. Esvaziamento de conselhos, pouca ou nenhuma interlocução com a sociedade civil, nenhum diálogo com setores organizados e dos movimentos sociais, mas a abertura de estruturas paralelas às estruturas do Estado com o objetivo de aplicar uma agenda regressiva e de entrega dos bens públicos.

João Dória, que já defendeu que a seca do sertão nordestino fosse atração turística, não tem nenhum compromisso com os trabalhadores e trabalhadoras da cidade. O que ele pretende, como empresário que é, e sob um verniz de parcerias, é abrir o caminho para um setor da sociedade que apenas objetiva o lucro.

A “Cidade Linda” de João Dória é uma cidade higienizada, ou seja, sem negros, negras, indígenas e pobres. Desobrigando-se de patrimônios e bens públicos fundamentais para uma parcela da população, a atual gestão desobriga-se das competências administrativas e, principalmente, políticas que tem com a cidade e com as pessoas que vivem em São Paulo.

Juliana Borges é pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde cursa Sociologia. Foi secretária-adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013).

Redação

Redação

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  • Podia tentar vender a burrice

    Podia tentar vender a burrice dos paulistanos que votaram nele, mas acho que isso ninguém quer... Não tem o tal "valor de mercado"...

  • Podia mirar no exemplo

    Podia mirar no exemplo dasgrandes cidades americanas, tudo é publico, até o serviço deonibus coletivo, nem aeroportos são privados, parques, bibliotecas, cursos de teatro, há um enorme espaço para o coletivo nos EUA, nem se concebe colocar fins lucrativos em equipamentos publicos como aqui bovinamente se pretende.

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