Crise

Com Zumbi e Evaristo Ocupação Psicanalítica traz o memorial da Maré para reconstrução da democracia

do Portal Favelas

Com Zumbi e Evaristo Ocupação Psicanalítica traz o memorial da Maré para reconstrução da democracia

“Pensaram que iam te enterrar, mas não sabiam que você era a semente!”

Dizer que pode ser lido em várias pichações nos muros e vielas das favelas do Rio de Janeiro desde que Marielle Franco foi brutalmente assassinada

Hoje, primeiro dia da consciência negra após derrota nas urnas do representante do colonialismo brasileiro atualizado, antes mesmo de Lula assumir a presidência e iniciar a desbolsonarização do país, Cláudio Castro, o governador assassino da juventude preta, dá seu recado: três dias de operação nas favelas do Rio – Manguinhos, Jacarezinho e outras comunidades. 20 de novembro de 2022 testemunhamos o sangue mais uma vez da população das favelas do Rio. Assassinatos, nenhuma visibilidade, moradores reféns, criança desaparecida, cachorro morto a facadas. O que quer isso dizer? Por que no dia de Zumbi dos Palmares? Qual o objetivo de trazer horror e escárnio à população negra e pobre da periferia do Rio de Janeiro junto no dia do símbolo maior da luta contra o racismo?

Operação sangrenta no Jacarezinho – Dia 20 de novembro de 2022

Movimentos sociais, trabalhadores da saúde mental, psicanalistas e jornalistas periféricos unem-se na direção de traçar um plano de ação que faça frente a essa postura obscena e hedionda do poder público.

A partir do evento organizado pelo “Redes da Maré” no dia 4 de novembro, um memorial às vítimas da violência do Estado e de confronto entre grupos armados, a Rede de Atenção à Afetados pela Violência do Estado (RAAVE) – coletivo de profissionais e pesquisadores no campo da Saúde Mental, da Psicologia e da Psicanálise, articulados pela Defensoria e Ouvidoria da defensoria pública do Estado do Rio – traz sua contribuição para a construção da memória, do registro, da simbolização que permite que a população atingida venha a elaborar o luto de chacinas e massacres que sofre o povo preto e pobre em nosso país. Devastação irreparável, mas que no entanto, seu enfrentamento é condição para que o Brasil venha a construir efetivamente uma democracia plena e uma decolonização de suas estruturas subjetivas e de poder. O Ocupação Psicanalítica, que tem hoje quatro núcleos no país (Minas, Espírito Santo, Rio e Bahia) é um coletivo formado por psicanalistas, alunes de psicologia e pesquisadores, em sua maioria pretos, pretas e pretes e tem como uma de suas principais atribuições a escuta das populações em enfrentamento à violência de Estado. O Ocupa Rio, em parceria com o Portal Favelas, decidiu vir a público para que o dizer que está sendo construído desde esse memorial, venha a ser coletivizado, considerando que o racismo estrutural, marca da constituição do laço social em nosso país, mostra que não tem como ser enfrentado apenas no um a um da clínica, é preciso uma transformação de toda a sociedade.

Foto: Rafaela Leocadio

Nós, pesquisadoras e pesquisadores extensionistas, optamos pela metodologia que temos desenvolvido junto aos demais núcleos estaduais, inspirada em Conceição Evaristo, como modo de romper um silenciamento histórico de mulheres negras e fazer ecoar vozes múltiplas e plurais, que por tantas e tantas gerações foram abusadas, violentadas, subalternizadas e destituídas de sua subjetividade, embora estivessem sempre lá, com a força da sua palavra, que ecoa pelos orifícios, pelas bordas da máscara do silêncio (como diz Evaristo), produzindo subversão não apenas de sua condição de objeto resto do patriarcalismo racista colonial, como também da invenção coletiva para saída de um povo que não aguenta mais ser subalternizado e violentado. Pensamos que a desbolsonarização do Brasil se dará a partir das sementes de Marielle, semeada como antídoto, ali mesmo, no epicentro onde o ovo do fascismo colonial brasileiro foi chocado: as favelas do Rio de Janeiro.

É válido citar que a ideia deste trabalho partiu de uma supervisão, mostrando a ressignificação das experiências escutadas por cada uma e cada um que, diante do impacto com o encontro com o real pode num segundo tempo, um tempo de elaboração pela fala, se encontrar com o lugar a ser ocupado pelo psicanalista, para que sua escuta não seja a reação de sua impotência ou o reforço do empuxo humano à exaltação do horror. Esse dispositivo criado por Freud para a formação dos analistas, para que pudessem verificar seu lugar no vínculo transferencial convocado por seus pacientes e re-situar seu ato, ganha com a invenção dos analistas brasileiros no trabalho em coletivo, o desafio de enfrentar o sofrimento racial decorrente da necropolítica. Num ambiente de troca clínica onde a maioria de pessoas pretas e periféricas intervém nos clássicos modos de ler os significantes e a experiência atravessada pelo clínico, a psicanálise avança frente a seus impasses éticos ligados à tradição da branquitude e amplia a efetividade de sua lâmina cortante, nos tempos que correm. Com base nas supervisões que tivemos após o evento, pudemos reunir elementos que vão de encontro ao olhar universalizante, que repete a cegueira ou a lógica míope elitista e omissiva, incapaz de enxergar aquilo que está longe, por mais perto que o objeto esteja.

Essa referência marcante usada como disparador por Cauê Ribeiro, psicanalista do Ocupa Bahia, do Psiu-UFBA e também do Ocupa Rio, utilizada para reiterar a fala de Leila Lemes, Psicanalista do Ocupa Minas e Rio ao se dirigir a uma das integrantes do Ocupa Rio, que perdera seu irmão assassinado e que demonstra na supervisão como sua dor não pode ser excluída do encontro seu corpo com aquele memorial: “seu corpo preto ao entrar ali como psicanalista e não como vítima mais uma vez, já introduz algo de plenamente transformador para aqueles que você vai escutar e para a construção inédita que aquelas mães estavam inventando!” Todo contexto de violência vivido naquele território ressoava de forma contundente para os ouvidos sensíveis dos membros do ocupa Rio – “é preciso estar vivo para viver” – frase essa que nos remete ao texto de Vladmir Safatle que convoca os vivos para votar pelos mortos, para que não sejam mortos mais uma vez. Por considerarmos que está em marcha a construção de uma psicanálise antirracista e decolonial, nos colocamos atentos à importancia histórica de um memorial como esse, que passe a contar as histórias, inscrever os nomes, legitimar as vidas de cada uma das crianças, dos jovens, das mulheres e homens pretos, periféricos, indígenas que hoje são assassinados cotidianamente pelo Estado brasileiro, mas também nos tempos da escravização, da invasão das terras e florestas, do extermínio dos nossos povos e linguas tradicionais, dos desaparecidos da ditadura militar; será preciso considerar que tudo isso seja escrito, documentado, tornado monumento. E que o atravessamento dos que escutam seja permeado pelo devido impacto que ele tem na violência presente na subjetividade de cada brasileiro.

Foto: Vitória Nathalia

Sofia Smid – A grande Conceição Evaristo nos ensina sobre escrevivência, a colocar vida na nossa escrita e a embarcar nessa aventura de escrever como quem escancara “estou aqui”. “Não vim aqui para fazer dormir os da Casa Grande, mas para fazê-los acordar de seus sonhos injustos”. Utilizar da escrevivência na Psicanálise é apostar nas narrativas em primeira pessoa, para a construção de conhecimento atravessado pelo inconsciente – que tanto tem contribuído para os avanços da Saúde Mental no enfrentamento ao encarceramento dos loucos e dos pobres – mas que agora visa uma nova volta, rumo o aquilombamento em nossas práticas institucionais.

Eramos 8 estudantes de psicologia do Instituto de Psicologia da UFRJ e uma da ECO (Jornalismo) integrantes do Ocupa Rio e tivemos nossa primeira experiência prática com a extensão, indo a um território tido como extremamente violento no Rio de Janeiro, para escutar os sujeitos, no ambiente, suas falas e participar da inauguração do memorial à algumas das vítimas da ação policial ou de facções, em sua maioria jovens e algumas crianças. O Redes da Maré, promotor do evento, conforme definição em seu próprio site, é uma instituição da sociedade civil, cujas ações visam à garantia de políticas públicas efetivas que melhorem a vida dos 140 mil moradores do conjunto de 16 favelas da Maré. Este foi criado há mais de duas décadas e é resultado de um longo processo de implicação dos seus fundadores com o movimento comunitário no conjunto de favelas da Maré e, também, na cidade do Rio de Janeiro.

Dito isso, trato essa experiência inteira na pessoa central das vivências experienciadas dessa tal forma. Sexta, dia 4 de novembro, nós, novos integrantes da extensão do coletivo Ocupação Psicanalítica, junto ao RAAVE, tivemos nossa primeira experiência prática com a extensão indo a um território tido como extremamente violento no Rio de Janeiro, prestar atenção nos sujeitos, no ambiente, nas falas ali ditas. O evento era simplesmente a inauguração do memorial à algumas vítimas de violência do Estado, evento este organizado pelo Redes da Maré, que conforme definição em seu próprio site, é uma instituição da sociedade civil cuja ações visam à garantia de políticas públicas efetivas que melhorem a vida dos 140 mil moradores do conjunto de 16 favelas da Maré. Este foi criado há mais de duas décadas e é resultado de um longo processo de implicação dos seus fundadores com o movimento comunitário no conjunto de favelas da Maré e, também, na cidade do Rio de Janeiro.

As primeiras experiências, num geral, já ganham destaque em nossas vidas, dão aquele frio na barriga, aquela sensação de “será que consigo?”, “será que sou capaz?”, aquelas milhares de expectativas. Isso tudo me foi presente, mas ao presenciar um evento que contava, principalmente com as mães de dezenas de crianças que foram assassinadas por quem deveria nos proteger… foi algo que nada me preparou!

Muitos momentos marcaram a minha ida à Maré. Acho que o primeiro, que me chamou atenção foi que na frente do muro com os azulejos com os nomes e sobrenomes das pessoas assassinadas, tinha uma praça para que as crianças pudessem brincar e se divertir – nos lembrando que a pulsão de vida deve permanecer, até e principalmente nesses casos. Ao adentrar um pouco mais ali na praça, percebi que tinham uns desenhos das próprias crianças, em que as folhas continham uma divisória e de um lado tinha escrito “o que não deveria existir” e “o que deve acontecer”. Muitas daquelas crianças, escreveram com todas as letras que o RACISMO não deveria existir, que a violência não deveria existir, que crianças morrendo não deveria existir. É nítido que elas sabem o que se passa, sabem nomear o que as assombram e, principalmente, sabem o porquê de muitos dos seus amigos, irmãos e parentes, não estarem mais aqui. É muito mais do que embrulhar o estômago, é inominável!

Pouco depois deste momento, começou a cerimônia que inaugurou o muro com azulejos com os nomes dos que se foram e com mensagens de familiares e pessoas próximas. Esse momento foi muito lindo, não consegui segurar as lágrimas e acabei me encharcando da dor das mães, das famílias e dos amigos das vítimas. Uma fala que me marcou bastante foi de um menino, inclusive do Redes da Maré, que disse algo como: “por muito tempo eu achei que com essa idade eu não estaria mais aqui, meu nome poderia ser um dos azulejos e por pouco não é. Meu objetivo é estar vivo amanhã.” Não preciso dizer mais nada.

Agora, um momento que me despertou muita raiva foi quando aquela rede de imprensa comercial, conhecida por apoiar tudo de ruim que existe no Brasil (golpes e mais golpes) chegou lá para “cobrir o evento”. Cobertura essa que se basearia na espetacularização do sofrimento e principalmente no lucro em cima da dor daquelas pessoas. O fotógrafo pedia pra enquadrar a seguinte cena: as mães ao lado dos azulejos como se estivessem abraçando seus filhos vivos, como a foto do porta-retrato da sala de estar.

O Portal Favelas, dispositivo de insurreição dos habitantes das favelas, que publica a narrativa do próprio morador periférico (que integra nossa extensão), tem me ensinado muito sobre a mídia popular e esse sobre a função da mídia hegemônica de sustentar o estado assassino. Essa imprensa tem interesses muito diversos da proposta desse jornalismo que nasce dos territórios de opressão. Esse jornalismo constrói narrativas estigmatizadas e não permite que o real que existe ganhe voz. O jornalismo dessa grande emissora é uma estratégia para a propagação de estigmas e preconceitos.

Essa experiência me exigiu vida, morte, sensibilidade, olhos bem abertos, escuta atenta mas principalmente… me exigiu fúria. Fúria para seguir em frente, para desejar que seja diferente, fúria para construir uma prática em psicologia atravessada pela ética psicanalítica, que consiga acolher essas pessoas.

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Redação

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