RIO – Veio de uma americana o incentivo para documentar uma questão bem brasileira. Megan Mylan, vencedora do Oscar em 2009 pelo curta “Smile pink”, chamou a atenção do amigo mineiro Joel Zito Araújo para os debates intensos que vinham acontecendo no país sobre desigualdade racial por causa das políticas de ações afirmativas. E perguntou: “Não é hora de a gente fazer um filme sobre isso?”.
A resposta de Joel Zito foi positiva. Em 2005, a dupla de cineastas embarcou em uma jornada de quase cinco anos. Acompanharam e filmaram a vida de três pessoas “no epicentro do debate” – como Joel define. As histórias estão reunidas em “Raça”, que entra em circuito no Rio nesta sexta-feira.
— Acho que pegamos um momento histórico do Brasil, igual ao movimento de direitos civis nos Estados Unidos. E tinham filmes fundamentais sendo feitos naquela época. Como documentarista, tive uma oportunidade única — diz Megan Mylan, que trabalhou em uma ONG brasileira duas décadas atrás. — Não demora para você perceber que o branco é quem tem o poder. Foi uma coisa que ficou no meu coração e na minha cabeça.
O documentário concentra-se no cantor e apresentador Netinho da Paula, em sua tentativa de consolidar o canal TV da Gente, composto, majoritariamente, por funcionários afrodescendentes; no senador Paulo Paim (PT-RS), em seus esforços para aprovar o Estatuto da Igualdade Racial; e na ativista quilombola Miúda dos Santos, em sua defesa pela posse de terras e pelo respeito às tradições de sua comunidade em Linharinho, no Espírito Santo.
O longa soma-se a uma lista de trabalhos de Joel sobre a identidade negra, como o seu documentário de estreia “A negação do Brasil” (2000) e a ficção “Filhas do vento” (2004), com um elenco totalmente negro. Em “Raça”, ele apostou em uma narrativa diferente, a do cinema direto – que conta a história apenas pelas imagens, sem intervenções como mensagens explicativas na tela ou narrações.
— Sou filho de mãe negra e pai branco. Minha mãe foi empregada doméstica. Vivi uma dupla situação da questão racial, através dela e de mim. Quando entrei na universidade que me dei conta de como o racismo interfere na vida das pessoas. Meus filmes refletiam isso de forma inconsciente — explica o diretor.
Megan diz que a parceria com o brasileiro, de quem é amiga desde os anos 1990, foi essencial.
— Acho que uma americana branca, mesmo fã do Brasil, jamais deveria fazer esse filme [sozinha]. Foi super natural fazê-lo com Joel. Não imagino ninguém melhor — pondera, em português fluente, a co-diretora.
“Raça” foi exibido no Fespaco, o maior e mais importante festival de cinema do continente africano (em Burkina Faso), onde foi bem recebido. Não foi premiado, mas Joel considera a passagem por lá “uma grande coisa”. Megan acrescenta que não fez o longa pensando em prêmio. Dizendo-se orgulhosa pelo produto final e privilegiada “por fazer parte desse momento do seu país”, ela fala da importância de nunca esquecer que, apesar do engajamento, cinema também é diversão.
— Não somos documentaristas ativistas. Achamos a arte e o entretenimento fundamentais. As pessoas precisam ver um filme bem feito, mas, ao mesmo tempo, com um olhar social. Se nós dois estivéssemos com foco em prêmios, não que não os queiramos, mas se fossem prioridade, o caminho do filme teria sido o Oscar — diz a cineasta, detentora, além de uma estatueta da Academia, de um Independent Spirit Award, conquistado pelo documentário “Lost boys of Sudan” (2003).
Ela conclui citando outra característica que, para ela, tiram os clichês de “Raça”.
— Tem pouquíssimo samba, não tem praia e não tem futebol.