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Inclusão financeira via fintechs orientadas pelo investidor versus o “Modelo Maricá”: a solução brasileira voltada à comunidade

Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

Inclusão financeira via fintechs orientadas pelo investidor versus o Modelo Maricá: a solução brasileira voltada à comunidade

por Milford Bateman e Fernando Amorim Teixeira

Com o advento de novas tecnologias, desde meados dos anos 2000, grandes mudanças vêm ocorrendo no modus operandi do sistema financeiro globalmente e na forma como este interage com os demais agentes econômicos e com a sociedade. Uma das transformações são as chamadas fintechs, que podem ser definidas como tecnologias utilizadas para apoiar ou habilitar serviços bancários e financeiros em geral. Em sua forma mais simples, uma fintech envolve maior capacidade de transacionar serviços financeiros por meio de um telefone celular ou dispositivo inteligente, tornando mais fácil, barato e rápido (i) obter um empréstimo; (ii) fazer um depósito de poupança; (iii) transferir e receber dinheiro; e (iv) pagar e receber por bens e serviços, por exemplo.

No Brasil, tais plataformas têm se desenvolvido de forma mais agressiva nos últimos anos[1], atuando em nichos de mercado antes dominado por agentes financeiros mais tradicionais e causado celeumas públicas por conta de uma regulação mais branda e riscos associados[2]. Em outros lugares do mundo, entretanto, a discussão já está bem mais adiantada e alguns resultados concretos da maior presença dessas tecnologias são matéria de discussão[3].  Isso porque no entorno da crise de 2008, uma icônica plataforma de transferência de dinheiro móvel do Quênia, a M-Pesa, se apresentou como a pioneira nesse mercado, prometendo inaugurar uma nova “idade de ouro” do capitalismo através de uma “Revolução Fintech[4].

O caso M-Pesa[5] atraiu a atenção do Banco Mundial e de outros atores internacionais, sendo considerado exemplo a ser replicado mundo afora, uma espécie de tábua de salvação para a fracassada onda das micro-finanças[6] que, por fim, não entregou a prometida redução da pobreza global[7]. Ao rebatizar o modelo no início de 2010 como “inclusão financeira”[8] – termo fartamente utilizado atualmente no Brasil – a comunidade financeira internacional vendeu a ideia que uma oportunidade de acesso a serviços básicos por meio de fintechs (incluindo o microcrédito digital), permitiria, finalmente, que as populações mais vulneráveis escapassem da pobreza ao se tornarem microempreendedores[9], donos de seu próprio destino.

Uma das razões por trás de todo esse entusiasmo foi o potencial financeiro dessas plataformas, ilustrado pelo fato de o Grupo Safaricom, entidade corporativa que opera a plataforma M-Pesa, ter emergido como uma das corporações mais lucrativas da África. Assim, o setor de fintechs foi rapidamente alçado à um dos investimentos mais atraentes do mundo, dando início ao chamado ‘modelo de fintech orientado pelo investidor’. A possibilidade de combinar lucros acima da média e a ideia de que o combate à pobreza estava ocorrendo de forma simultânea, permitiu a construção de uma narrativa extremamente sedutora.

Para contestar essa visão, em texto de discussão recém-publicado pelo Transnational Institute[10] (TNI, organização sediada em Amsterdã na Holanda), sustentamos que tal narrativa é falaciosa e imprecisa. Trazemos uma série de exemplos para ilustrar os argumentos apresentados e defendemos que, embora algumas experiencias tenham causado benefícios iniciais – como redução de custos e maior acesso a serviços financeiros – os resultados no médio e no longo prazo são bastante discutíveis. No texto, seis questões problemáticas associadas a esse modelo tradicional são elencadas, perpassando desde apoio a empresas improdutivas, até a potencialização de fraudes e roubos e gerando toda a sorte de infortúnios para a população ao induzir os mais vulneráveis a incorrerem em sobre-endividamento, ao invés de contribuir para solucionar seus problemas.

Não obstante, um exemplo brasileiro vem chamando a atenção exatamente pelo uso de tecnologias financeiras através de uma lógica comunitária. A experiencia de Maricá, no litoral do estado do Rio de Janeiro, ao utilizar tecnologias financeiras como a plataforma e-dinheiro, associada a uma moeda comunitária digital, vem demostrando grande potencial de utilização da tecnologia para transformação local.

Pilotado pela prefeitura da cidade, o emergente “Modelo Maricá” é baseado na moeda Mumbuca, que é gerenciada pela instituição de desenvolvimento comunitário da cidade, o Banco Mumbuca. Esse arcabouço institucional e financeiro local permite o impulsionamento do consumo e da arrecadação do município, interligando os cidadãos beneficiários do programa de renda básica[11] e os comerciantes da cidade, gerando externalidades positivas para toda a população. Mais recentemente, programas de crédito local em moeda digital vêm sendo trabalhados pelo banco, havendo potencial de incremento real da atividade econômica – se combinados com uma estratégia de desenvolvimento de mais longo prazo – através de um papel ativo do Estado. Em suma, visualiza-se que com um pouco de imaginação e disposição é possível implantar inovações financeiras voltadas para economias mais produtivas, inclusivas, equitativas, dignas e socialmente justas.

Milford Bateman é Professor Visitante de Economia no Departamento de Turismo e Economia da Juraj Dobrila University of Pula, Croacia; Professor Adjunto da St Mary’s University in Halifax, Canada; Pesquisador Honorário do Royal Holloway, University of London, Reino Unido e; Pesquisador Associado do Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento, FINDE, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Fernando Amorim Teixeira é Professor de Economia no Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ), doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense (PPGE/UFF); pesquisador do Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE), da Universidade Federal Fluminense (UFF); e técnico do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE).

O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. Twitter: @Finde_UFF

Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas. O grupo objetiva estimular o diálogo e interação entre Economia e Política, tanto na formulação teórica quanto na análise da realidade do Brasil e de outros países. Twitter: @Geep_iesp

O Núcleo de Estudos em Economia e Sociedade Brasileira (NEB) desenvolve estudos e pesquisas sobre economia brasileira, em seus diversos aspectos (histórico, político, macroeconômico, setorial, regional e internacional), sob a perspectiva da heterodoxia. O NEB compreende como heterodoxas as abordagens que rejeitam a hipótese segundo a qual o livre mercado proporciona a melhor forma possível de organização da economia e da sociedade.


[1] http://finde.uff.br/wp-content/uploads/sites/43/2020/08/TD-11-Fernando-Amorim-Teixeira-completo.pdf

[2] https://valorinveste.globo.com/produtos/servicos-financeiros/noticia/2021/09/20/febraban-cita-altos-juros-do-nubank-e-diz-que-fintechs-gostam-de-pagar-meia-entrada.ghtml

[3] https://freidok.uni-freiburg.de/fedora/objects/freidok:11524/datastreams/FILE1/content

[4] https://www.economist.com/leaders/2015/05/09/the-fintech-revolution

[5] https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1593387

[6] https://www.bloomsbury.com/in/why-doesnt-microfinance-work-9781848138957/

[7] https://www.aeaweb.org/articles?id=10.1257/app.20140287

[8] https://www.worldbank.org/en/topic/financialinclusion

[9]https://www.mckinsey.com/~/media/mckinsey/featured%20insights/Employment%20and%20Growth/How%20digital%20finance%20could%20boost%20growth%20in%20emerging%20economies/MGI-Digital-Finance-For-All-Executive-summary-September-2016.ashx

[10] https://www.tni.org/en/publication/the-promises-and-perils-of-investor-driven-fintech

[11] https://bostonreview.net/articles/paul-katz-leandro-ferreria-brazil-basic-income-marica/

Finde/GEEP - Democracia e Economia

O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino. O Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas.

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O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino. O Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas.

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