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Os filhos bastardos do liberalismo – 2

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Outro episódio me chamou a atenção, em relação ao liberalismo militante dos anos 2000. No caso, um debate que tive com Eduardo Gianetti da Fonseca – que é muitas vezes mais preparado do que os Ali Kamel da vida.

Foi no Instituto de Estudos Avançados da USP.

Eduardo enveredou pela análise biológica da economia, para concluir que os pobres brasileiros tinham a mesma natureza dos animais que não se preparam para o inverno. Por causa deles, dessa ansiedade em se endividar para consumir, é que os juros não baixavam. Se fossem bichos previdentes, em vez de financiamentos a juros elevados, poupariam o correspondente à prestação e comprariam mais adiante à vista.

Acho um horror essas análises biológicas da economia, quase tão mecanicistas quanto os cabeças de planilha. Ignoram aspectos psicossociais, emoções, efeitos da alta e da baixa autoestima sobre os cidadãos. Falta-lhe sensibilidade sociólogica, visão psicossocial para entender os grandes fatos transformadores. O sujeito que saí da extrema pobreza é totalmente diferente do que era antes.

No debate, contei o caso de uma moça que cuidava da minha filha de 2 anos. Quando começou a onda de financiamento, foi na casa Bahia comprou sofás, uma geladeira, uma maquininha de café.

Um dia pediu para levar a Bibi para apresentar para os vizinhos. Foram de ônibus até a estrada de M’Boi Mirim.

Fomos à tarde para pegar a Bibi.

Ela nos esperava em um puxadinho pintado recentemente. Tinha uma sala bonitinha, caprichada e os sofás para nos receber. Quando chegamos, chamou os vizinhos e serviu um café coado na máquina nova e suco resfriado na geladeira.

Até um biólogo perceberia que o ato de consumir mudou a natureza da moça. Tornou-se cidadã, sociabilizou-se, estava orgulhosa de poder “receber”. Essa mudança teve implicações em sua vida profissional futura, em sua vida pessoal. Deixou de ser bicho-do-mato. Perdi contato, mas possivelmente ganhjou coragem para fazer cursos profissionalizantes, mudar de status funcional.

É isso que o trabalho da professora Walquíria mostra: o poder libertador do crédito, do dinheiro, para quem não tinha possibilidades.

Walquíria até sugere que o Bolsa Família passe a pensar em centros de convivência públicos. Porque uma das facetas mais relevantes desse novo cidadão é que perde a vergonha de se relacionar com terceiros de frequentar ambientes com outras pessoas. A vergonha de não ter crédito, de ser analfabeto, de não saber se vestir o afastava do convívio social.

Um dia ainda levo o Eduardo para conhecer M’Boi Mirim, para tirar essas ideias de que gente e bicho têm reações iguais. 

Luis Nassif

Luis Nassif

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