Esportes

O Direito à Cidade x O Direito ao Futebol, por João Marcus Pires Dias

O Direito à Cidade x O Direito ao Futebol

-Neoliberalismo nas Escolinhas de Futebol-

por João Marcus Pires Dias

Segundo os historiadores, o futebol no Brasil existe desde os meados da década de 1890 quando o brasileiro esportista Charles Miller retorna da Inglaterra com duas bolas em sua bagagem. No ano de 1916, já com bastante popularidade, o futebol brasileiro passa para uma nova fase, com a criação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), cuja finalidade era regulamentar e profissionalizar o esporte.

Desde então o futebol profissional e o amador no Brasil exerce uma fascinação muito grande nas pessoas. De uma contínua regionalização nos bairros periféricos dos centros urbanos, desde os campos de várzea aos estádios construídos na primeira década de 1900. Com o passar dos anos o futebol profissional passa por profundas transformações contemporâneas, tanto nas grandes metrópoles, como nas cidades menores, aprofundando suas características como produto de mercado.

Em 1930 acontece no Uruguai a primeira Copa do Mundo, um marco para que o futebol profissional passe a fazer parte da economia globalizada.

Naquela época a inserção do atleta ao profissionalismo dava-se início principalmente nos jogos da várzea, como também, nas peladas em ruas e praças. Não existia a chamada “escolinha de futebol”, não se pagava para a criança aprender a jogar bola. Fazia parte da infância as próprias crianças montarem os times, usarem a criatividade na demarcação do campo, traves etc, “Da bola de meia até ser Pelé”. O adulto não fazia parte do processo, era todo das crianças. Com seus 15 anos, idade aproximada e já quase adolescente, em sua maioria, as crianças pertencentes as classes sociais menos favorecidas economicamente, começam a frequentar o futebol de várzea com campos próximos das dimensões dos campos profissionais, traves, redes no gol, com grama ou sem, árbitros etc. 

Os campos de várzea espalhados pelas metrópoles e cidades do interior são os celeiros dos futuros craques brasileiros. Dali saíram Pelé, Garrincha, Leônidas da Silva (o Diamante Negro, apelido carinhoso dado a ele pela torcida uruguaia), Pepe, Rivelino, Zico, Pita, Casa Grande, Serginho Chulapa e centenas de outros craques.

Infelizmente a dinâmica da urbanização descontrolada à partir da década de 1980 faz com que ocorra uma nova espacialidade urbana, impactando nos processos historicamente constituídos que atingem diretamente os campos de várzea.

Os campos de futebol de várzea ainda existentes nas grandes metrópoles passam a se concentrar nas regiões periféricas, no qual moram a população das classes socioeconômicas mais carentes de renda, infraestrutura urbana, saúde, cultura e lazer, pois ali até então os terrenos não interessavam ao capital imobiliário.

Contudo, desde o surgimento do futebol no Brasil até sua profissionalização, poucos jogadores eram oriundos da classe média. Mais precisamente, os pais pertencentes a essa classe não se interessavam em ter seus filhos como jogadores de futebol profissional, além de morarem em espaços mais centrais da cidade com uma infraestrutura urbana qualificada e provida de bens e serviços, essas famílias dificilmente deixavam seus filhos extrapolar os limites metropolitanos da região central para a periferia. Dessa forma, o sonho de se tornar um jogador de futebol profissional era um processo disseminado, na grande maioria, para as famílias mais pobres sem custos elevados. Basicamente o ingresso de um adolescente, faixa de 15 anos em diante, se dava no jogo da várzea, no qual um conselheiro ou diretor de um time profissional se apresentava para o jovem com um cartão e pedindo para ele participar de uma peneira. O jovem que chegava ao clube de futebol profissional e tinha êxito em ser selecionado para fazer parte da equipe não era cerceado daquele “futebol moleque” que chamou a atenção do olheiro, pelo contrário, era lhe dado todo o incentivo para que ele continuasse com sua criatividade. Ali ninguém ensinava ele a jogar bola.

A partir do início do século 2000, com novas tecnologias de informação e comunicação, bem como, a hegemonia do capital financeiro em suas interações com as dinâmicas neoliberais passam a imprimir um novo conceito, do qual o grande montante financeiro que gira no futebol cria novas dinâmicas em torno do esporte profissional. Dessa forma, surgem novos espaços que são ampliados rapidamente seguindo as tendências globais na direção das políticas neoliberais, o que conta é, a aproximação do mercado da bola junto aos consumidores com um novo nicho: As Escolinhas de Futebol.

O novo setor de serviço pago é um empreendimento que percorre o caminho inverso da formação do até então atleta craque de futebol. Por ser uma modalidade paga, que oferece uma infraestrutura mais completa que o modelo anterior, e atrelada a um forte marketing no qual o “Sonho de ser jogador (a) de futebol” passa a ser o do “Sonho de ter meu(s) filhos (as) como jogadores (as) de futebol”, atrai as famílias da classe média, na medida em que as escolinhas de futebol estão localizadas na sua região de moradia e oferecem o fetiche da ascensão social entre seus pares e o sucesso.

Porém, a realidade do mercado de trabalho futebolístico brasileiro é outra. De acordo com estudos divulgados em 2019 pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol), 88% dos atletas profissionais percebem salários entre R$ 1.001 e R$ 5.000. Além da carreira ser curta, 10 a 15 anos no máximo para um atleta que não têm contusões sérias, a remuneração baixa exige que o atleta tenha outras fontes de renda e trabalho que na maioria das vezes o tira definitivamente da arena futebolística profissional.  

Mas os pais não se atentam a isso, e passam a criar uma expectativa muito grande em ter seu filho inserido na ciranda futebolística não como uma criança mas sim como um produto de mercado para compra e venda futura. 

O novo processo de produção capitalista que é a formação de atletas profissionais começa cedo. Aos 7 ou 8 anos a criança já vai para a escolinha de Futsal ou para um time profissional, Santos, Flamengo, Cruzeiro etc. Ali ela têm toda a infraestrutura já instalada, quadra, uniforme, bola, vestiário, treinador, comissão técnica etc. São ensinados domínio de bola, marcação, jogar coletivamente ao invés de deixar a criança livre para criar. Ao assistir um jogo dos baixinhos (as), fica evidente nas falas dos treinadores à beira do campo: “toca a bola, mata a jogada, volta para marcar” em vez de “vai para cima, dribla, chuta no gol”.

Com o passar da idade, 10 anos em diante, os treinos passam a ser quase que diários em meio período e jogos em finais de semana, em suma, a criança divide seu tempo entre treino e escola. Aos 13 anos a criança já está condicionada a jogar com “intensidade, maior posse de bola, pressão na hora certa” e várias outras terminologias do futebol atual. Marcar vários gols, dar caneta, chapéu, drible da vaca, bater falta no ângulo são coisas do passado, não se pode mais fazer isso. O importante é condicionar a criança para ganhar sempre, seguindo estritamente o pensamento neoliberal que determina vencedores e perdedores como uma nova divisão social. Os pais adoram ver seus filhos nessa “evolução” e os elogios dos treinadores lhes incentivam a pensarem que estão no caminho certo e um futuro promissor para seus filhos. O investimento é caro e arcado pelos familiares como: comprar sempre as chuteiras e outros materiais de marcas famosas, viagens, estadias para a família acompanhar o jovem, além de que, algumas vezes os pais são forçados a se ausentarem no trabalho ou se revezarem para levar o filho no treino, jogos etc.

Por fim, aos 14 anos em diante a pressão para aqueles que conseguiram chegar lá é maior. A criança passa a ser cobiçada pelos clubes com a premissa de que o sonho quase utópico será realizado. Então há um acordo tácito entre pais e clube, no qual a criança passa a ser de dedicação exclusiva do time de futebol. Começam a morar nos centros de treinamentos, os treinos passam a serem diários em 2 períodos, a escola só a noite, não sei quando eles têm tempo para fazerem a lição de casa ou estudarem para provas, enfim. Os finais de semana estão reservados aos jogos de campeonatos muitas vezes em locais distantes, obrigando aos pais e familiares próximos acompanharem, afinal não vêm mais o filho no dia a dia da semana.

Olhando para o núcleo familiar, o custo do investimento para tornar o filho um atleta profissional é muito grande, ocorre gradativamente a eliminação do todo em favor do sucesso de um indivíduo em detrimento dos demais. Desde a ausência da criança no lar durante a semana até o abrir a mão de um final de semana saudável, pois a família precisa acompanhar ou levar o filho no jogo do time, seja onde for. A cobrança é grande, em um jogo que presenciei com crianças de 10 e 11 anos, elas davam carrinhos como os profissionais para desarmar os adversários e outras jogadas de competição pura, muitas faltas, cheguei a ver um baixinho levantar as travas da chuteira na cabeça do goleiro adversário. Por outro lado,  os pais nas arquibancadas gritavam palavrões para os árbitros e bandeiras como se fosse o jogo da morte, atitudes de estresse muito elevadas para um jogo entre crianças. Cheguei a presenciar o comentário de uma mãe que torcia para que um menino se machucasse no campo, pois assim ele daria lugar ao filho dela que era o reserva.

Por fim, na pesquisa apresentada pela CBF, apenas 3% dos atletas profissionais percebem como salário entre R$ 50.000 a R$ 500.000,00. A pergunta que se faz é: Será que vale a pena abrir mão do compartilhamento de afeto com as crianças em sua fase mais importante para participar dessa pirâmide tão desigual que é o mercado de trabalho do futebol? A triste realidade é que as dinâmicas do neoliberalismo estão tomando conta do mundo do futebol infantil.

João Marcus Pires Dias – Cientista Social, torcedor e frequentador de estádios de futebol a mais de 40 anos, foi jogador de várzea em São Paulo e atualmente dá suas caneladas pelo Bar100Lona em Poços de Caldas. Pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles..

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