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Ainda na selva?

A maioria dos livros didáticos retrata os índios ligados apenas ao passado colonial brasileiro

Diante de um homem parado na plataforma de uma estação de metrô em plena São Paulo, duas senhoras se mostram curiosas. Uma desconfia que o homem seja um índio, e a outra, mais descrente, argumenta: “Não viu que ele usa calça jeans? Não é possível que ele seja índio usando roupa de branco. Acho que ele não é índio de verdade”. A fala da senhora revela um estereótipo comumente associado aos indígenas: para serem “de verdade”, eles têm que ter determinadas características físicas e morar na floresta. Se transitam com desenvoltura pela cidade e sabem ver as horas, por exemplo, provocam espanto. Mas o índio em questão derruba qualquer estereótipo: Daniel Munduruku mora em São Paulo, anda de metrô e faz doutorado em Educação na USP.

A visão das duas senhoras, reflexo de um desconhecimento sobre as populações indígenas no Brasil, é mais comum do que se imagina. Um dos prováveis motivos pode estar no livro didático de História, especialmente em suas imagens. Boa parte dessas obras vincula os grupos indígenas exclusivamente ao momento da colonização. Retratados como coadjuvantes de uma história da qual também foram protagonistas, são apresentados sem qualquer informação sobre sua realidade antes da chegada dos europeus. Os livros ainda impossibilitam o relato das experiências contemporâneas dos diversos grupos indígenas, já que sua presença é associada apenas ao passado colonial.

Tudo isso reforça a percepção de inferioridade e atraso, o que pode ser notado pelo discurso da senhora do metrô. A escolha didática acaba deixando de lado que os índios não são simplesmente índios, mas sim tupinambás, tamoios, payayás, tarairiús… Faz esquecer que o termo “índio” – criado pelo europeu – homogeneizou uma variedade de grupos sem qualquer identificação entre si. Usar o termo no singular cria uma realidade inexistente, como se eles fossem um único grupo. Há inúmeras diferenças e singularidades nos povos nativos das Américas que não podem ser ignoradas. Lembrar desse grande detalhe é um bom começo para se compreender as causas do desconhecimento.

A identidade de um grupo não se define nas características físicas, mas,  sobretudo, em referências culturais. Índios podem viver em cidades, junto a não índios, e estabelecer contatos com eles, mas os conhecimentos adquiridos vão ser filtrados por suas culturas. Enquanto os índios conseguirem manter seus sentidos e valores e se identificarem como tais, não vão deixar de ser índios.

Os enganos são muitos, mas algumas obras atuais procuram romper com os estereótipos, mostrando os índios como sujeitos ativos na História do Brasil. No entanto, essa postura não corresponde à totalidade das produções editoriais. Além disso, se esta preocupação é cada vez mais comum em textos, não se pode dizer o mesmo quanto às ilustrações: há uma menor elaboração sobre elas.

Quando se trata de imagens, a questão se torna muito mais complicada. A seleção das ilustrações que são publicadas nos livros é um ponto importante, mas o modo como elas são trabalhadas em sala de aula também é fundamental para ampliar a percepção do aluno. O uso da imagem como documento não é recente entre os pesquisadores, mas na comparação entre trabalhos acadêmicos que as utilizam no lugar das fontes escritas há uma enorme desproporção. Consequência: os profissionais da História – futuros autores de livros didáticos e professores – nem sempre refinam suficientemente sua habilidade no trato com as imagens.

As imagens estão presentes nos livros escolares no Brasil desde o século XIX, com o propósito de fazer os alunos “verem as cenas históricas”, e tais cenas estavam em sintonia com os valores evolucionistas da época. Deste modo, os índios eram normalmente retratados em uma combinação de estereótipos, com saia de penas e cocares, de forma romantizada ou animalizada. Naquela época, as ilustrações eram encaradas exclusivamente como uma confirmação do texto e serviam como estratégia de memorização de conteúdos. Muitas vezes criados com o intuito de reproduzir informações do texto, os desenhos eram tomados como verdade. Pinturas do século XIX, como “A primeira missa no Brasil”, de Victor Meirelles (1832-1903), eram apresentadas como se fossem uma experiência do século XVI.   

Mas as imagens também são documentos de época e fazem parte do conteúdo histórico. Um pintor do século XIX que retrata um indígena no século XVI leva em conta conhecimentos e valores de seu tempo, muito distintos daqueles do período retratado. Desse modo, mesmo que as ilustrações fiquem apenas a serviço do texto, não se pode descartar sua pertinência histórica, identificando quem foi seu autor, a data e o contexto em que foram produzidas. O livro didático mantém um sentido de autoridade sobre os conteúdos que estão sendo tratados, já que tem um papel proeminente na formação dos brasileiros. A modernização tecnológica não alcançou a todos e, a despeito dela, estas obras são depositárias de confiança. Por isso, as ilustrações merecem atenção redobrada. Afinal, os estudantes podem se lembrar delas mesmo sem acessar ou sequer se recordarem do texto.   

Um exemplo que pode servir de alerta está no livro Você faz a História, de Márcia Hipólide, destinado a estudantes do 6º ano da Pueri Domus Escola Associadas, em São Paulo. Nele, os índios são retratados na floresta com armas e adornos. Há legendas indicando os nomes das tribos, locais e momentos em que as fotos foram feitas, mas, mesmo assim, as ilustrações remetem à elaboração tradicional e homogeneizadora: não concebem indígenas vivendo em cidades, com acesso à tecnologia ou vestidos como não índios.

O conjunto das imagens disponibilizadas aos alunos induz a uma leitura dos índios apartados dos não índios. Além disso, todas as ilustrações do volume são fotos, registro que dá a ilusão de realidade. Na diagramação das páginas, o problema se agrava. A diferença é acentuada pela oposição entre ambientes – floresta e cidade – e agentes – eles e nós. A imagem de crianças indígenas pescando sozinhas no rio contrasta com a de uma criança de uniforme e mochila que, conduzida por um adulto, sugere o caminho para a escola.

Resumidamente, são raros os historiadores que têm habilidade para tratar de documentos iconográficos e da intensa exposição de imagens da sociedade atual. Este é apenas um breve panorama da ponta do iceberg que contribui para que grande parte dos brasileiros desconheça a história dos indígenas e os reduzam a estereótipos.  

EUNÍCIA FERNANDES É PROFESSORA DA PUC-RIO E AUTORA DO ARTIGO “IMAGENS DE ÍNDIOS E LIVROS DIDÁTICOS: UMA REFLEXÃO SOBRE REPRESENTAÇÕES, SUJEITOS E CIDADANIA”, PUBLICADO NO LIVRO A HISTÓRIA DA ESCOLA. AUTORES, LIVROS E LEITURAS (FGV, 2009).

Saiba Mais – Bibliografia

BITTENCOURT, Circe. “Livros didáticos entre textos e imagens”, In: O saber histórico na sala de aula. SP: Contexto, 1997.
CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos Índios do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MUNDURUKU, Daniel. Histórias de índio. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1996.
SILVA, Aracy Lopes da & GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (orgs.). A temática indígena na escola. Novos subsídios para professores de 1o. e 2o. graus. Brasília: MEC/MARI/ Unesco, 1995.

Saiba Mais – Internet

www.socioambiental.org
www.ifch.unicamp.br/ihb/
http://www.danielmunduruku.com.br/

Professores e historiadores têm o papel de refletir e abrir espaço para a crítica sobre a maneira como os índios são retratados. Será necessário um longo trabalho até que crianças e adolescentes olhem um indígena de calça jeans no metrô sem imaginar que ele deixou de ser índio.

Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/educacao/ainda-na-selva
Redação

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