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E, no entanto, eles nos temem.

Professor, falta dinheiro, falta reconhecimento, por vezes, ânimo até, mas tua aula ainda mete medo nos poderosos. 

O editorial de 29nov2015 da Folha de São Paulo, ”Base frágil”, onde se critica acidamente a proposta do MEC para a BNC – Base Nacional Comum Curricular transpira e escorre a ideologia conservadora a tal ponto que torna-se reacionário e falacioso. Além de conter um clamoroso erro conceitual.

No entanto, afora ser reacionário, e, por óbvio, conter erro conceitual, ser um texto ideológico não me causa espécie. Não poderia ser de outro modo, tratando-se de um texto sobre educação. A educação básica de qualquer país, ou sua falta, é sempre uma ação política da maior importância. Logo, escolherem-se os conteúdos a ser ministrados também o é.

Estranha-me é que o editorial pareça tentar nos fazer crer que é possível uma educação neutra. Quanto mais em, por exemplo, história e linguagem – as humanidades.

Estranha-me também que o autor considere-se dotado de capacidade para fazer juízo de valor sobre o conteúdo proposto para discussão: “Não começou nada bem o processo de formulação de um imprescindível currículo mínimo para a educação básica no Brasil”.

Nada bem, baseado em quê?

Veremos que em ideologia política, em falácias e em erros conceituais.

Comecemos pelas falácias.

“Organizado pelo Ministério da Educação, [o texto da proposta] contou com a participação de 116 especialistas – cuja identidade permanece desconhecida, o que no mínimo impede o público de aquilatar sua proficiência em matéria de tamanho significado social”.

“Não será neste espaço limitado que se resolverão todas as mazelas da BNC. Tal objetivo só poderá ser alcançado num debate aberto, com o concurso de especialistas reconhecidos -não de ideólogos anônimos- e de todas as entidades empenhadas em salvar a educação brasileira”. 

Pelo menos, três falácias claras.

A recorrente falácia ad hominem – o texto da proposta para a BNC vale por si próprio, posso concordar ou não com ele, mas pouco importa quem o escreveu.  Pela mesma lógica, o autor do editorial da Folha, “cuja identidade permanece desconhecida”, ou seja, trata-se, para mim, de um “anônimo”, tampouco tem qualquer importância. O editorial fala por si.

A segunda falácia é o editorial julgar que os coordenadores do texto da proposta são ideólogos e o próprio autor do editorial não o seja também. O diabo são os outros.

Há aqui ainda uma manipulação da informação. Basta uma visita a pagina do MEC sobre a BNC, na aba “protagonista”, para ficar-se sabendo que a comissão de especialista não é autora do texto e sim sua organizadora.

Como o próprio MEC deixa claro: “A Base Nacional Comum Curricular será resultado do trabalho coletivo de diferentes atores do contexto educacional: especialistas das áreas de conhecimento, gestores, professores da educação básica, estudantes e público em geral”.

Aliás, qualquer um de nós, incluído o autor do editorial, pode contribuir com a BNC. Basta acessar a aba ”contribua” para participar da consulta pública.

À equipe de especialista cabe tão somente “produzir documento preliminar da Proposta da Base Nacional Comum Curricular bem como produzir relatório consolidando os resultados da discussão pública para entrega ao Conselho Nacional de Educação – CNE… A discussão pública … será realizada nas unidades da federação sob a coordenação das secretarias de educação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, bem como com as associações acadêmicas e científicas que atuam nas áreas de conhecimento da Educação Básica.”.

Este é o texto da PORTARIA N- 592, DE 17 DE JUNHO DE 2015 do MEC que instituiu a Comissão.

Posso estar enganado, mas a afirmação de que se tratam de “ideólogos anônimos” talvez decorra de uma dificuldade do autor em pesquisar. Eu não tive nenhuma dificuldade em saber quem forma a tal comissão. Bastou consulta a página do MEC correspondente – ”A equipe”.

Pelo visto, a Folha perdeu uma grande oportunidade de enviar sabujos para farejar a vida dos integrantes da equipe e denunciar mais um “aparelhamento petista”.

A terceira falácia é considerar que as ideias das quais discorda são as “mazelas da BNC” e que suas próprias ideias são capazes de “salvar a educação brasileira”. Falácia e presunção.

Agora, a ideologia reacionária.

Contra o que se deblatera o editorial?

“No caso das ciências humanas,… Os defeitos se concentram na excessiva valorização das histórias africana, latino-americana e ameríndia, em detrimento do clássico percurso que abrange Antiguidade, Idade Média, Renascimento, Modernidade e Era Contemporânea”.

Não sei de onde o autor do editorial tira que a BNC propõe “omitir a transformação das ideias e as revoluções europeias, como o Iluminismo e a Revolução Francesa”. Mas esta também é uma das suas preocupações inclusive.

Sem dúvida, dar ênfase à história da África e latino-americana e ameríndia é uma decisão ideológica. Torna a educação de história menos euro-centrada. Mas o oposto não é menos ideológico.

Aqui caberia um debate sobre para que serve o estudo da história. Não serei eu a iniciá-lo, mas creio que não erro se disser que também serve para referenciar o aluno em seu próprio mundo e tempo, posicioná-lo.

Por essa ótica, qual seria o referencial mais útil para um aluno brasileiro negro – para ficar na novilíngua que une pretos e mulatos em um único designativo – ela também ideológica? Para que ele se posicionasse em relação aos seus mundo e tempo. Saber quem foi a Rainha Ginga, rainha dos reinos do Ndongo e de Matamba, aproximadamente a atual Angola, no século XVII, ou Cleópatra, a última rainha da dinastia de Ptolomeu, no Egito do último século antes de Cristo? E para os garotos brancos, seus colegas?

E para mim, que reconheci minha avó materna como uma índia, já adulto, vendo uma foto de família onde ela aparecia ao lado do meu avô, um homem branco de olhos azuis, foi assaz importante saber diferençar o rei Alexandre Magno do imperador Carlos Magno.

E, uma vez que saiba que Napoleão III não é o neto de Napoleão Bonaparte, para que me valeria saber que a Guerra Cisplatina tem a ver com eu passar pela imigração no aeroporto de Montevidéu, mas não ter de fazê-lo em Porto Alegre? Aliás, não o faço devido aos resultados da Guerra dos Farrapos, mas isso que importância tem, se eu souber as características do primeiro e do segundo triunviratos romanos?

Mas as objeções do editorial não ficam só na área da história.

“No capítulo das linguagens, nota-se a predominância de noções pedagógicas um tanto espontaneístas. Dá-se destaque demais a “práticas” (artístico-literárias, político-cidadãs, investigativas) e à “apropriação” de códigos, e de menos a ferramentas cruciais como ortografia, gramática e vocabulário”.

Concordo em número, gênero e grau. Sendo o aluno, capaz de reconhecer em um texto quais são suas orações subordinadas substantivas objetivas diretas, que importa se ele é ou não capaz de interpretar o texto, de criá-lo, tanto menos.

O editorial parece pouco se importar com a semântica, mas dá ênfase à sintaxe. Isso vai muito além de uma mera questão lógica, tem a ver com o cidadão que está sendo formado. Trata-se da diferença entre formar um cidadão que se encatará diante de um discurso político bem articulado, mas que nada diz e o cidadão que entenderá que o tal discurso político, embora bem articulado, nada diz.

Que cidadão a escola formará é uma decisão ideolágica, sem dúvida.

Mas, claro, o editorial da Folha não se quer ideológico, conservador e reacionário.

Por fim, o erro conceitual.

“A Base Nacional Comum Curricular (BNC) … está longe de oferecer fundamento sólido para dar clareza a docentes e familiares sobre o que alunos têm o direito de aprender e escolas têm a obrigação de ensinar”.

“… o que alunos têm o direito de aprender e escolas têm a obrigação de ensinar”.

Depois de 25 anos em sala de aula, do fundamental ao desenvolvimento profissional de engenheiros e administradores, ensinando química, estatística ou sistemas de gestão, tenho claro para mim: eu sei o que ensinei, mas jamais saberei o que meus alunos aprenderam.

Quem comete um erro assim não conhece a diferença entre os processos de ensino e de aprendizagem. Não entende que a missão do professor está cumprida quando o aluno racionalizou o assunto ministrado em aula e formou sua própria opinião.

E assim acaba por temer que os professores tenhamos o poder de “desencaminhar” os alunos. E as alunas, que perigo. Fazendo com que eles aprendam teorias contrárias à moral e aos valores da tradicional família brasileira, do amor à pátria e da fé cristã.

Logo, seria mais seguro e adequado, prescrever-se todos os procederes do professor. Do planejamento do curso ao plano de aula.

“Há [na BNC] uma vaga indicação de que 40% do tempo seria preservado para regionalizar o aprendizado, o que parece exagerado e soa mais como concessão à superestimada autonomia docente”.

Veja-se lá o risco em nos fazer “concessão à superestimada autonomia docente”.

O pessoal da Ditadura de 64 também temia os professores, chegou a matar vários deles para “salvar a educação brasileira”.

 

PS1: a definição dada pelo MEC para BNC:

“A Base Nacional Comum Curricular (BNC) vai deixar claro os conhecimentos essenciais aos quais todos os estudantes brasileiros têm o direito de ter acesso e se apropriar durante sua trajetória na Educação Básica”.

Grifo meu, se o autor do editorial tiver dificuldades em perceber a diferença entre ter acesso ao conhecimento e aprender com o conhecimento, providencio um desenho. Ou o poema ”Poesia matemática” de Millôr Fernandes.

PS2: a Oficina de Concertos Gerais de Poesia se orgulha de ser um antro de perdição moral e pedagógica. Você não gosta de mim, mas sua filha gosta.

Redação

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