Notícia

Gabriel Yuji Kuwamoto Silva (1996-2024), por Daniel Afonso da Silva

Gabriel Yuji Kuwamoto Silva (1996-2024)

por Daniel Afonso da Silva

Para os meus confrades – os que ficam e ao Gabriel que partiu – das Modalidades Historiográficas, Ano I.

Eu revisava mentalmente as passagens principais do longo artigo “Uma ode ao octogenário da libertação de Roma” que preparava como demanda do mês para o Jornal da USP, quando recebi, no meio da manhã da terça-feira, 23/04, a notícia amargamente impressionante da morte do Gabriel.

Não teve jeito. Um estupor tomou conta de mim e de pronto me tragou para a sua escuridão. Não pude suportar. Tudo virou gris. Nada mais consegui fazer de modo tranquilo. Aquela notícia me tirou o prumo. Deixou-me atônito. Mais atormentado que triste. Mais impressionado que chocado. Mais paralisado que agitado. Tanto que reconheci a derrota. Deixei a revisão inconclusa. Contatei a minha editora. Disse-lhe que o artigo sairia assim, sem maior revisão. Mas que com uma adição. Uma dedicatória. Pequena frase. Singela menção. “Para Gabriel Yuji Kuwamoto Silva (1996-2024)”.

Livrei-me assim da situação e submergi subitamente em meditação profunda. Carregada em perplexidades. Não raro acachapantes. Muita vez sem resposta. Quase sempre infinitas. Típicas daqueles momentos em que, sem pedir nem saber, singramos o vazio, marchamos sobre o limbo, visitamos, sem Virgílio, Dante, confrontamos o “fim de partida” tipo Beckett ou, desgraçadamente, como Quevedo, entramos a “arar o mar”.

Imóvel na situação, não vou negar, namorei o ceticismo.

Era impossível acreditar. Violento. Extraordinário. Brutal.

Não: ele, não.

Disse-me, então, em silêncio “não, não pode ser, não pode, não”.

Mas era.

Seria pouco – muito pouco, quase nada – dizer que conheci Gabriel Yuji nos quadros de uma disciplina sombria, pernóstica, macambúzia e calcinante que ofertei à pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados em começos de 2023 e que, a partir dali, teve início, entre nós, uma sincera aproximação e um profundo reconhecimento que, ao fim do tempo, produziriam variadas convivências verdadeiras, fraternais e intensas.

Seria pouco dizer só isso porque nunca tive alunos em cursos de pós-graduação. Em contrário. Fui sempre e apenas um modesto servo bom e fiel. Aquele que mais aprende que ensina. E, porquanto, aquele que sempre cai devedor diante do privilégio de ter diante de si “les meilleurs parmi nous.”

A turma onde encontrei Gabriel era ampla, vasta, criativa, complexa, diversa e plural. Mas, ao fim das contas, era ele e só ele: Gabriel. Síntese de tudo. Marca de todos.

Muitos não vão gostar de ler isso assim. Mas, ao ler dito assim, quem sabe, vão iniciar notar, silenciar, aquiescer e, de fato, reconhecer que sim: era assim. Gabriel dominou tudo. Imantou tudo. Conduziu a situação.

Todos sabem que todos daquela turma me tocaram – e ainda tocam – de modo fortemente especial. Eram – e são – todos rapazes e moças não raramente mais argutos, mais capazes, mais lidos, mais eruditos, mais sábios e mais vividos em tudo que eu.

Tão logo notei ser assim, procurei, às rápidas, um arranjo para nos encerrar. Claro, não eram alunos. Que, então, deveriam ser? Sim: confrades. Viramos todos, então, confrades. Nunca professor/aluno. Nunca aluno/doutor. Tudo ao seu contrário. E com todos os riscos que isso impõe. Pois passamos todos a ser mais que amigos. E, para alguns, quase irmãos.

Não se faz – como sabido – confraria só de iguais. Requer-se sempre a presença de diferentes. Os diferentes que irrigam seu corpo enquanto os iguais acariciam a sua alma. Iguais e diferentes precisamos viver juntos. Mas para tanto vai imperativo que sejamos bons. Confrades são, antes e assim de tudo, bons. Gabriel, assim, entre os bons, sempre foi, pra mim, um moço muito bom. Diferente, inteligente, irreverente, divergente.

Jamais harmonizamos pensamentos. Ele sempre e declaradamente me considerou mais liberal que de fato sou e menos comunista, socialista, esquerdista, marxista, leninista, maoísta, guevarista, revolucionário e carbonário que eu poderia/deveria ser.

Mas, ao fundo, ele e eu sabíamos que éramos, lamentavelmente, nós dois, em verdade, mais brutalmente realistas que os nossos corações conseguiam atender, entender e suportar.

“O mundo”, para mim e ele, sempre foi percebido como “real e, por vezes, brutal, independentemente das ilusões correntemente nutridas sobre ele.” Assim, nem Marx nem Jesus. Quem sabe Nietzsche. Seguramente Cioran.

Não precisa dizer mais nem muito mais.

Nenhuma formalidade jamais existiu entre nós. Interagíamos de peito aberto, com sinceridade e sem cerimônias aziagas.

Ele sabia e sentia que por ele a minha admiração se fazia discreta. Como discretas são as emoções mais cravadas, dedicadas, que calam fundo e, por isso, que chegam para ficar.

O que ele nunca seria capaz de imaginar nem notar era que em seus olhos eu apreendia muito daquilo que eu deveria ter sido e, por alguma razão, ainda não fui. Como reduzir, agora, a minha contrição?

Éramos – distantes das entorpecentes contingências universitárias – vizinhos. Morávamos a três quarteirões um do outro. Descobrimos isso ao acaso. Duas ou três semanas depois que nos avistarmos da primeira vez. Foi, para nós dois, um espanto. A interação enjaulada virou corrente. Liberou geral. Doravante, passamos, assim, a nos ver – em bermudas e mangas de camisa – todas as semanas. Quando não, quase todos os dias. A minha recreação ocorria diante da casa em que ele morava. Exatamente do outro lado da rua. Onde nos víamos sempre. Ao sair e ao chegar.

Vez e outra, ele atravessa a rua para me visitar e parlamentar. O seu encanto impressionava a mim e a todos. A sua vivacidade também. Ele era um vulcão em erupção expelindo inquietação. Impossível não notar. Inconsequente desconsiderar.

Ele lia praticamente tudo que eu escrevia. Mas concordava com quase nada. Não necessariamente pelo conteúdo de minhas temáticas. Mas por isso que ele entendia como sendo a minha estética. Nesse quesito, ele sinceramente desgostava do peso de minhas ironias. Sorria com os deboches. Mas se irritava com as imagens deslocadas que sempre participam de minhas exposições.

Quando a discordância, por tudo isso, ultrapassava os seus limites, ele rompia o silêncio e vinha me falar “pegou pesado”, “contundente”, “implacável”, “não vão te entender”, “indecoroso”, “não vão te querer”, “longe demais”.

Da última vez que nós nos vimos foi num sábado. Depois da lida, adeus expediente, cevar o mate, fim de tarde, tereré, fim de mês. Estávamos os dois numa loja de departamento. Uma loja adjacente onde morávamos.

Tão logo nos avistamos, ele veio me cumprimentar. Estava, como de costume, radiante. Reluzente. Iluminado. Habitado por aquele sorriso impavidamente eloquente, sincero, espontâneo e cheio de verdade que apenas os seres decididamente complexos e bons conseguem ter, esboçar e expressar.

Disse-me, sem rodeios, nessa ocasião “li”, “reli”, “entendi”, “gostei”, “foi generoso”, “apreciei”, “mas”, “poderia ser mais brando”, “menos fleumático”, “mais povão”, “mais coração”, “e, portanto”, “não”, “novamente”, “pegou pesado”, “contundente”, “indecoroso”, “longe demais”.

Em resposta, eu lhe disse, em palavras “tudo bem”, em olhares “vou pensar” e com o sorriso “você tem toda a razão”.

E foi assim, entre nós, em pessoa, a última vez.

Na noite da antevéspera da revelação da desgraça promovida em sua tragédia – no domingo, 21/04, portanto –, a um confrade parceiro em comum eu propunha organizar uma equipe para iniciar uma nova empreitada acadêmica. E, nisso, perguntei ao confrade: “quem poderia?”. E ele de súbito me disse sem hesitar nem pensar: “o Yuji”.

Voltei à carga, no dia seguinte, com o nobre confrade, avançando: “consegue, então, falar com o Yuji?”. Ao que ele me respondeu: “consigo. Vou perguntar a ele ainda hoje (apesar da correria).”

Não deu tempo. Tempo nublado. Curva fechada. Tarde demais.

O Gabriel Yuji – talvez, djavaneando, por “não ter e ter que ter pra dar” – já estava indo. E se foi.

Tem muitos anos que li – e guardei pra mim, pois me marcou – a indignação de Ernesto Sábato e Octávio Paz diante da morte de Jorge Luis Borges. Ambos diziam diante das lembranças do amigo que “ninguém deveria morrer. Menos ainda aqueles que amamos”. Algo muito parecido sentiria e diria ulteriormente o Carlos Fuentes quando da morte do José Saramago – um autor que o nosso eterno confrade Gabriel Yuji Kuwamoto Silva seguramente admirou e gostou.

Esses incontestáveis todos gênios – Sábato, Paz, Fuentes; e, claro, Borges e Saramago – sabiam muito e sentiam demais. Mas diante de passamentos obliteravam as impressões de um londrino, franzino, irreverente, iluminado, divergente, eloquente e vivaz de nome Charlie Chaplin que, malgrado a dor, o sofrimento, o desespero, a humilhação, a perseguição e o degredo, sabia e sentia ainda mais todos e, por isso, jamais deixou de notar, revelar e vaticinar que “muitas pessoas passam por nossas vidas. Algumas ficam um pouco e nos marcam para sempre. Daí então jamais somos os mesmos”.

Voltar a ser o mesmo nunca foi meta nem metáfora. “Deixe a sua meta fora da disputa”. Tem muito de Einstein aí. Mundo quântico. “Mesmo que você feche os ouvidos/E as janelas do vestido/Minha musa vai cair em tentação/Mesmo porque estou falando grego/Com sua imaginação”. Somos todos um. “Choro bandido”. Pois, afinal, “quem somos nós?”

Gabriel passou – pouco ou muito – por nossas vidas e marcou e, por isso, virou parte de nós. E, por ter sido assim, ele vai seguir perpetuamente por aqui. Vivo em mim, vivo em nós.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". daniel.afonso66@hotmail.com

Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". daniel.afonso66@hotmail.com

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